domingo, 31 de março de 2013

46 TUDO É TRANSBORDANTE DE LUZ

Descida aos infernos, Aquarela e Nanquin, Roma 2000-
Sobre a cruz, o Verbo feito carne, assumindo nossa finitude, abre-a desde dentro sobre o infinito.

Cristo, de fato, através da própria morte, através das nossas mortes, através de nossa condição de morte, não retorna sozinho ao seu Pai, que doravante se tornou nosso. “Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12, 32). O crucificado tornou-se incandescente pelo fogo do Espírito. Ao seu contato, os laços da morte e do inferno se rompem. Uma mão violenta arranca Adão, a infinidade de “Adões”, cada um de nós, de sua solidão, inviolável como os muros que a circundam. Não existem mais muros, tudo está aberto; os dois “Adões”, o primeiro e o último, se abraçam na imensidade. Tudo experimenta a reviravolta: todo desespero que se interpunha entre Deus e Deus, entre Deus e Deus feito homem, e logo, entre Deus e o homem, toda esta separação se consuma na unidade do Pai e do Filho, no “retorno” glorioso do Filho ao Pai, retorno do cordeiro que se carregou de todo o pecado do mundo. O inferno e a morte afundam-se, como uma insignificante gota de ódio, no abismo do fogo da divindade. As portas dos infernos foram arrancadas de suas dobradiças, e a luz do Tabor passa através delas. “Tudo agora é transbordante de Luz, céus e terra, e os infernos juntos”, diz a liturgia bizantina. A vida, a luz, o Espírito jorram afinal, fluem de um Deus que não é mais estranho, estrangeiro, quase demasiado pleno e pesado, um Deus que nos esmagaria; nascem, ao invés, de um Deus crucificado, aniquilado , de um Deus esvaziado de amor, para que o outro seja e que encontre em Deus, o espaço da própria liberdade liberada. Mais abaixo de nossa vergonha, de nossa dúvida, das nossas desventuras, onde somente conseguimos balbuciar: “Creio, mas aumentai minha fé” (Mc 9, 24), não existe mais nada, mas o Crucificado-Glorificado que nos torna participantes de sua Glória.

É certo, o homem continua a ser crucificado, e Cristo o é com ele: mas doravante, exatamente no abissal de nossa angústia, “tudo está consumado”, o Deus encarnado ressuscita, nos ressuscita. Cristo se afundou a uma profundidade tal que, cada queda nossa, por pouca que seja a nossa fé, é uma queda nEle. Basta abandonar-se – ó pobreza, humildade, confiança de criança – a este Deus encarnado, abandonado, glorificado, basta descobrir, mais abaixo de nossas baixezas, este Deus crucificado destroça as portas de nosso inferno, para saber, de uma maneira tal que o coração exulta, que o Reino já está em nós e no meio de nós; paz, luz, alegria, não existe mais exterioridade, somente rostos.

O rosto de Deus no homem, aquele rosto que a sagrada Síndone (Santo Sudário) desvela ao ocidente noturno de nossos dias, aquele rosto no limite da decomposição e da glória – “Tenho sede” (Jo 19, 30) - ; O rosto de Deus no homem nos consente de descobrir o rosto do homem em Deus e de serví-lo em cada homem.

Um rio de fogo, a história autêntica, aquela da comunhão dos santos – que são os pecadores perdoados – arrasta séculos e mundos na direção da Cruz, tornada para sempre, das profundidades abissais dos infernos aos sumos vértices dos céus, a Árvore da Vida.

O. Clément, I visionari, 11-12.

sábado, 30 de março de 2013

45 Os infernos finalmente pertencem a Cristo

Descida aos infernos, Rolo do Exultet, séc. X, 11 - Vat. lat. 9820 - Biblioteca Apostolica Vaticana 
Se o Pai deve ser considerado como o criador da liberdade humana, com todas as suas previsíveis consequências, então a Ele pertence originariamente o juízo, e portanto, também o inferno; e quando envia ao mundo o Filho, para salvá-lo ao invés de julgá-lo, e para tal fim, «concede a ele todo juízo» (Jo 5,22), então, qual consequência extrema da liberdade criada, deve ser também, introduzir o Filho no «inferno». Mas o Filho pode ser introduzido no inferno somente enquanto morto, no Sábado Santo.

Este ingresso nos infernos é necessário, para que os mortos «devem escutar a voz do Filho de Deus» e, escutando esta voz, «viver» (Jo 5,25). O Filho deve visitar tudo o que, no domínio da criação, é imperfeito, informe, caótico, para fazê-lo passar ao seu domínio, porque Ele é o redentor. É quanto declara Irineu: «por isso desceu nas regiões inferiores da terra, para ver, com seus olhos, o que na criação ainda estava incompleto»(Adv. Haer., 4, 22, 1).

Esta visão do caos, operada pelo Homem-Deus, tornou-se, para nós, a condição da nossa visão da Divindade. A sua exploração das profundidades últimas transformou aquela que era uma «prisão» em um «caminho». Assim declara Gregório Magno: «Cristo desceu nas profundidades últimas do mar, quando foi ao mais profundo inferno, para reconduzir, de lá, as almas dos seus eleitos. Antes da redenção, as profundidades do mar não eram um caminho, mas uma prisão... Mas Deus transformou aquele abismo em uma estrada... É chamado também “o abismo mais profundo”, porque como os abismos do mar não podem ser perscrutados pelo olhar de nenhum homem, assim o segredo do inferno não pode ser apreendido por nenhum conhecimento humano» (Mor., 29).

Mas o Senhor pode atravessar o mais profundo inferno porque não é impedido de nenhuma ligação com o pecado, e é «livre entre os mortos». Gregório, depois, dos abismos do Sábado Santo dirige sua contemplação a descida do Redentor na perdição do coração pecador: a mesma descida se repete cada vez que o Senhor desce nas profundidades dos «corações desesperados».

Seguindo Gregório, também Isidoro de Sevilha fala da «estrada nas profundidades do mar», que abre aos escolhidos a estrada do céu (1 Sent., 14, 15). Porque o Filho atravessa o caos, em virtude da missão recebida do Pai, em meio às trevas daquilo que é contrário a Deus, está objetivamente «in paradiso», e isto pode ser expresso com a imagem do triunfo. Assim afirma Prodo de Constantinopla: «hoje Cristo veio à prisão, como rei, hoje ele despedaçou a porta de bronze e sua fechadura de ferro; ele que foi engolido como um morto ordinário, devastou o inferno, em Deus»(Serm., 6, 1). Tomou posse dos infernos, como sublinha Tomás de Aquino (Expos. symb., a 5). Os infernos, finalmente pertencem a Cristo.
H.U. von Balthasar, Pâques, le mystère,168-169.

quinta-feira, 28 de março de 2013

44 Obediente até a morte de Cruz


Crucifixão branca, Marc Chagall, séc. XX.


O Deus que ressuscitou Jesus dos mortos é o mesmo que o «entregou» à morte de cruz. Já no abandono da cruz, quando Jesus invoca «por quê?», Paulo vê a resposta a este grito: «Ele que não poupou o seu próprio Filho, mas o deu por todos nós, como não nos dará todas as coisas, junto com Ele?» (Rm 8,32). O Pai, como Paulo ressalta, abandonou e entregou à morte o «próprio Filho». Ainda mais energicamente, Paulo sustenta que «Deus o fez pecado a nosso favor» (2 Cor 5,21), e: «Ele se tornou maldição por nós» (Gl 3,13). O Pai abandona o Filho «por nós», para se tornar, com isso, o Deus e Pai dos abandonados. O Pai «dá» o Filho para se tornar, por meio dele, o Pai daqueles que foram «entregues» (Rm 1,18ss.). O Filho é entregue a esta morte para se tornar o irmão e o salvador dos condenados e amaldiçoados.
O Filho sofre a morte neste abandono. O Pai sofre a morte do Filho. À morte do Filho, responde, pois, a dor do Pai. E, se nesta viagem ao inferno o Filho perde o Pai, em tal juízo, também o Pai perde o Filho. É colocada em jogo a vida mais íntima da Trindade. Aqui, o amor do Pai, que se comunica, torna-se dor infinita pelo sacrifício do Filho. Aqui o amor do Filho, que responde ao Pai, torna-se sofrimento infinito, por ter sido rejeitado e repudiado pelo Pai. O que acontece no Gólgota atinge a divindade até a sua profundidade, e conota, pois, a vida trinitária na Trindade.
Segundo Gl 2,16, porém, o Filho não foi somente entregue pelo Pai; também ele «deu-se a si mesmo, por mim». No acontecimento desta «doação», ele não é somente objeto, mas também sujeito. A sua paixão e morte foram uma passio activa, uma estrada que ele segue em plena consciência, uma morte que ele aceita. Segundo o hino cristológico que Paulo retoma em Flp 2, a auto doação do Filho consiste no seu despojar-se da imagem divina, no seu assumir a figura de servo, no seu humilhar-se e tornar-se «obediente» até a morte de cruz. Pela carta aos Hebreus (5,8), ele «aprendeu a obediência através das coisas que sofreu». Paradoxalmente, sofreu pela oração não atendida, pelo abandono do Pai. Assim, ele «aprendeu» a obediência e o sacrifício. E isto, em plena sintonia com a exposição sinótica da história da paixão.
Do ponto de vista teológico, isto significa uma profunda conformidade de vontade entre o Filho entregue e o Pai que o entrega. Exatamente este é o conteúdo do relato do Getsêmani. Mas, a profunda comunhão de vontades tem a sua origem no momento da mais ampla separação do Filho do Pai e do Pai do Filho, na morte de maldição sobre a cruz, na «noite escura» desta morte. Sobre a cruz, Pai e Filho são de tal modo separados um do outro, que se interrompem também as relações que os unem. Jesus morre «sem Deus». Sobre a cruz, porém, Pai e Filho estão de tal modo unidos, ao ponto de expressar um único movimento de doação: «quem vê o Filho, vê o Pai» (Jo 14,9). (...)
Paulo interpretou o acontecimento do abandono na cruz, da parte do Pai, como sacrifício do Filho e o sacrifício do Filho como amor de Deus. Aquilo que é o amor de Deus, «do qual, nada poderá nos separar» (Rm 8, 39), realizou-se sobre a cruz e sobre a cruz vem experimentado. Aquele Deus que envia o próprio Filho nos abismos e nos infernos do abandono de Deus, da maldição de Deus e do juízo final, no seu Filho tornou-se, em todos os lugares e continuamente, presente aos seus. Dando o Filho, ele doa «todas as coisas», e «nada» poderá jamais nos separar dele.
J. Moltmann, Trinità e Regno di Dio, 92-93

43 Amou-os até o fim

Ceia e Lava piedi - 1418-1422 - Bíblia de Mkrtich Naghash 
«Jesus, tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim» (Jo 13, 1), Amou-os até o fim, até a profundidade máxima e até o termo, até o fim daquele amor infinito, até o mesmo ser de Deus. Exatamente na sua simplicidade, esta expressão atinge as alturas máximas, o coração mesmo do mistério de salvação, que se funda sobre o mistério da Santíssima Trindade. Jesus revela o amor perfeito e infinito do Pai celeste, que cria e salva o mundo, enviando o Filho ao mundo, na carne, na condição humana mais humilde. «Deus amou tanto o mundo, ao ponto de dar o seu Filho único, afim de que, quem nele creia, não morra, mas tenha a vida eterna. Deus não mandou o Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por meio dele» (Jo 3, 16-17).

«Amou-os até o fim»: na linguagem de João esta palavra “fim” (telos) anuncia também a paixão, o amor infinito do Filho, que assumiu, em perfeita obediência, a natureza humana, até a espoliação total, até a morte e a morte de cruz (cf. Flp 2, 8). «Não há maior amor que dar a vida pelos próprios amigos» (Jo 15, 13).

«Amou-os até o fim». Mas a morte não é a última palavra, as trevas não podem sufocar a luz. «Por isso, o Pai me ama, porque eu dou a minha vida, para retomá-la de novo. Tenho o poder de dá-la e o poder de retomá-la de novo. Este mandamento, eu o recebi de meu Pai» (Jo 10, 17-18). Tenho o poder de dar a vida e o poder de retomá-la de novno. Tal é a força inaudita da ressurreição, que tem origem sobre a cruz e no sepulcro. Cruz vitoriosa, sepulcro vivificante! «Amou-os até o fim», isto é, fez os seus participarem de sua vida, através de sua morte. «Pelo batismo fomos sepultados com ele em sua morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dos mortos pela ação gloriosa do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova» (Rm 6, 4).

«Amou-os até o fim», até a vitória sobre a morte, sobre o último inimigo, afim de que a vida nova viva nos nossos corpos mortais. «Amou-os até o fim» manifesta também o amor infinito do Espírito Santo, que revela o rosto de glória de Cristo ressuscitado, e que nos faz participar, através da humilhação do Filho eterno, da glória de sua ressurreição, amor infinito do Espírito Santo, o qual nos arrasta após Jesus, sumo sacerdote, nosso precursor (cf. Hb 6, 20), até à direita do Pai celeste, e que permanece conosco para sempre.

A vinda do Espírito Santo, do qual Jesus é o precursor, é verdadeiramente o termo e a plenitude do amor da Trindade, amor revelado e oferecido como comunhão, nele a vida mesma de Deus escorre nos nossos membros, unifica-nos, renova-nos e purifica-nos. O Espírito Santo é o grande purificador, vem fazer sua morada em nós, a purificar-nos de toda impureza, de todo pecado, de todo mal. Santificar-nos, chamar-nos à purificação é exigência própria do amor de Deus; sem esta purificação, o nosso amor mesmo, os nossos gestos e nossos dons são opacos, pesados. O amor é humilde, mas exigente.

É bom recordar o contexto trinitário do amor e da humilhação da última ceia e do lava-pés. Amor e humilhação, amor perfeito e total abaixamento, são duas realidades inseparavelmente unidas nos gestos humanos mais cotidianos, como nos momentos mais sublimes da redenção de Cristo. Amor e humilhação que tem suas raízes na vida mesma de Deus, na sua natureza inefável. (...) O amor de Cristo continua no hoje da vida da Igreja. Mas, como pode a Igreja, por seu lado, amar até o fim, como pode o cristão, profundamente imerso nos problemas, nos conflitos, nas tensões, nas contradições e nas incertezas do mundo, como pode amar até o fim?

«Eu vos dei o exemplo para que, como eu fiz, fazei-o vós também» (Jo 13, 15). O Lava-pés continua, de uma geração a outra, em uma cadeia de amor que não deve romper-se. Este gesto indica a qualidade da humildade de nosso amor, revela a humanidade, a verdade, a ternura de nosso coração, o frescor, a espontaneidade, e talvez também, a loucura de nosso serviço aos irmãos. Amar até o fim é, para a Igreja, revelar ao mundo o Rosto de Cristo.

B. Bobrinskoy, Il les aima jusqu'au bout, 354-358.

quarta-feira, 27 de março de 2013

42 O Filho do Homem se vai, como está escrito sobre ele

anônimo séc. XII
«Enquanto estavam à mesa e comiam, Jesus disse a eles: “em verdade vos digo, um de vós, aquele que come comigo, me trairá”» (Mc 14, 18). Um dos doze..., dos comensais..., o amigo! Assim, em Jesus não se cumpre somente a palavra profética do Servo de Deus, mas também a palavra do Salmista: «até o amigo, em quem confiava, que comia do meu pão, alçou contra mim o calcanhar» (Sl 41, 10; Jo 13, 18). No destino de Jesus se cumpre também o destino do homem justo dos salmos.

Jesus se vê abandonado no círculo dos seus doze. Um o entregará, um comensal o trairá. Será uma morte produzida pela infidelidade e traição, uma morte amarga, solitária. Mas também a ela, Jesus dá a sua aprovação. O discurso de Jesus tem, antes de tudo, um efeito especial no círculo dos doze: «então, começaram a entristecer-se e a dizer, um depois do outro: “serei, talvez, eu?” (Mc 14, 19). Os seus discípulos se sentem tocados pelo seu discurso. Também esta palavra é uma palavra irrevogável para eles, eles a levam a sério. Não a rejeitam, indignados, não a evitam, mas deixam-se examinar por ela. Aceitam-na: «começaram a entristecer-se». E depois, nem mesmo olham ao outro, mas, um depois do outro, pergunta: «serei, talvez, eu?». Não estão nada seguros de sua fidelidade pessoal. Cada um acredita ser possível, em si mesmo, uma traição a Jesus. No momento, não estão conscientes de nenhuma culpa. Todavia, não consideram exclusa a possibilidade de cair em uma semelhante terrível culpa. Eles nunca compreenderam verdadeiramente Jesus, opuseram-se, como todos, ao seu caminho na direção da Paixão, a oposição deles tornou-se tanto mais forte quanto mais estavam perto de Jerusalém, e mais urgente se fazia o seu anúncio; até mesmo, ao final, diante da cruz, abandonaram-no, depois que Pedro, que já o tinha declarado Messias, recusou-se a reconhecê-lo. Não é por casualidade que lhes veio este único sentimento: eles não estão mais seguros de si mesmos, e não acusam, imediatamente a um outro, mas perguntam a Jesus: «Mestre, serei eu?». A palavra de Jesus tem muito valor para eles, ainda, e os atinge.

Jesus não responde à sua pergunta, não diz quem é o traidor, não retira aos discípulos a sua salutar e humilhante ignorância. Antes de tudo, repete somente a sua palavra profética, colocando-a, com isso, ainda mais fortemente, na moldura de um banquete: «E ele lhes disse: “um dos doze, aquele que comigo, põe a mão no prato”» (Mc 14, 20). (...) Jesus não se detém sobre aquele que lhe causará um do estreito grupo dos discípulos, olha o seu caminho, querido por Deus, e ao juízo que incumbe ao seu traidor: « O filho do homem se vai, conforme diz a Escritura a respeito dele»(MC 14, 21). Ele cumpre a vontade de Deus, assim como ela está contida da Escritura do Antigo Testamento. Somente por este motivo, alguém consegue «trair» Jesus. Em grego, a palavra que é traduzida com «se vai» não tem o significado de «morrer». Marcos e Mateus a utilizam, por este motivo, somente aqui. Em João, pois, ela adquire uma grande importância. Esprime a necessidade e a liberdade do caminho de Jesus na direção da cruz, a irrevocabilidade que Jesus assume na vontade do Pai. Este caminho deve se percorrido, e Jesus o percorre.

R Schlier, La passione secondo Marco, 32-34.

terça-feira, 26 de março de 2013

41 Judas, um dos doze

«Eis que se aproxima o traidor» (Mt 26, 47). Nem mesmo um olhar para a multidão que se aproxima, para as espadas e os bastões dos inimigos. Eles não teriam nenhum poder! O olhar de Jesus vai somente para aquele que provocou esta hora de trevas. Também seus discípulos devem saber onde está o inimigo. Por um momento, tudo está nas mãos daquela única pessoa, o traidor, a História da Salvação e do mundo. «Eis aquele que me trai», e na noite, os discípulos reconhecem nele, com horror, Judas, o discípulo, o irmão, o amigo.

«enquanto falava ainda, eis que Judas, um dos doze, chegou, e com ele, uma grande multidão de gente armada de espadas e bastões» (Mt 26, 47).

Agora vemos que permanecem somente duas pessoas como protagonistas. Os discípulos e os guardas se retiram, são dois grupos que não estão à altura do que devem fazer. Somente duas pessoas são aqueles que fazem a sua obra como será feita.

Jesus e Judas. Quem é Judas? Este é o problema. É um dos problemas antiquíssimos e insistentemente meditados e re-meditados no cristianismo. Mas, antes de tudo, fiquemos no que diz o mesmo evangelista a este propósito: «Judas, um dos doze». Conseguimos colher um pouco do horror com o qual o evangelista escreveu esta pequena frase? Judas, um dos doze; quê mais poderia acrescentar? E, verdadeiramente, com isto não estava dito tudo, todo o obscuro segredo de Judas e, ao mesmo tempo, o mais profundo horror por esta ação? Judas, um dos doze; isto significa: era impossível que acontecesse isto, era totalmente impossível, e mesmo assim, acontece. Não, aqui não existe nada para explicar, nem para entender. É absolutamente inexplicável, incompreensível, permanece totalmente mistério e, mesmo assim, aconteceu. Judas, um dos doze, não significa somente um que, dia e noite, estava junto de Jesus, um que tinha-se feito seu discípulo, que tinha sacrificado alguma coisa por isso, que tinha deixado tudo para estar com Jesus, um irmão, um amigo, um homem de confiança de Pedro, de João, do próprio Senhor. Mas, existia alguma coisa ainda mais incompreensível. Jesus mesmo tinha chamado e escolhido Judas! E isto é o verdadeiro mistério, porque Jesus sabia, desde o início, quem o teria traído. No evangelho de João, diz Jesus: «não fui eu quem vos escolhi? Os doze? E mesmo assim, um de vós é um diabo» (Jo 6, 70). Judas, um dos doze! O leitor, a este ponto, se sente constrangido a olhar, com a máxima consternação, não somente a Judas, mas também ao Senhor que o escolheu. E aqueles que escolheu, ele os amou. Fez participar de toda a sua vida, e Judas foi um deles. (...)

Jesus sabia, desde o início, quem o teria traído! João, além disso, está em grau de referir um sinal estremamente misterioso do apego de Jesus a Judas. Na noite da última ceia, Jesus dá a Judas o pedaço de pão, embebido no molho, e a este sinal da máxima familiaridade, Satanás entra em Judas. Então, Jesus diz a Judas, com uma oração, que é ao mesmo tempo, uma ordem: «aquilo que deves fazer, faze-o, o mais rápido possível» (Jo 13, 27). Nenhum outro compreendeu aquilo que estava acontecendo. Tudo permanceu entre Jesus e Judas.

Judas, um dos doze, escolhido por Jesus, admitido à familiaridade com Jesus, amado: isto significa, talvez, que Jesus quer mostrar e provar, também a aquele que o trai, o seu próprio amor? Significa que ele deve também saber que, no fundo, não existe nada a trair em Jesus? E também que Jesus ama profundamente a vontade de Deus, que se cumpre na Paixão, ama também aquele, que com sua traição, lhe abre a estrada, que agora, por um momento, tem nas mãos o destino de Jesus? Significa que ele o ama com o executor da vontade de Deus, mesmo sabendo da ameaça que cai sobre aquele que a torna efetiva? É um grande mistério insondável: Judas, um dos doze.

D. Bonhoeffer, Predica su Giuda, 532-534.

segunda-feira, 25 de março de 2013

40 Uma obra boa para o pobre

Unção com o perfume caríssimo em Betânia, miniatura do Monte Athos, séc. XI.
«Então, Jesus disse: “deixai-a; porque incomodá-la? Ela cumpriu uma boa obra para mim!”» (Mc 14, 6). A unção que a mulher fez em Betânia, com todo o seu «desperdício», é, pois uma «boa obra». (...)

Mas também o amor generoso por Jesus, como demonstrou a mulher, é uma boa obra deste gênero. De fato, o verdadeiro amor pelos pobres pressupõe o amor por Jesus, por aquele Jesus que, por nós, se apressa no caminho da morte, por aqule Jeus que veio «dar a própria vida em resgate por muitos» (Mc 14, 45).

«Os pobres, de fato», diz Jesus, «os tereis sempre convosco, e podeis fazer-lhes o bem quando o quiserdes, mas a mim, não me tereis sempre». Por isso, a compreensão do que fez a mulher e do que foi dito: «Ela fez o que estava em seu poder, ungindo, em antecipação, meu corpo para a sepultura» (Mc 14, 7-8). Ajudar os pobres e amar a Jesus e fazer-lhe este último favor, coisa que a mulher não sabia, mas agora vem a saber de Jesus, não são uma contradição e não se excluem. «Podeis fazer-lhes o bem quando o quiserdes». A veneração, o amor, o amor generoso por Jesus, não impedem, de fato, ajudar os pobres. «Necessitados não faltarão nunca no país», já se diz no Dt 15,11. Existe sempre a ocasião para fazer isto, seja que eles habitem perto ou longe. E cada um deve aproveitar a ocasião. Lázaro está sempre diante da porta, mas não podemos contrapor esta ajuda à veneração de Jesus e ao amor por ele.

Ele não só possui o seu direito, mas é ordenado. A nós, contrariamente a tudo o que se possa dizer, é ordenado também de nos dirigirmos a Ele, de ter confiança nEle, de honrar o seu Nome, de esperar nEle, de rezar a Ele, de deixar-nos exortar, consolar e julgar por Ele, e de lhe demonstrar o nosso amor, com todas as nossas forças. Este amor por Jesus precede, em certo sentido, aquele outro amor pelos pobres. É a fonte e o fundamento do amor pelos pobres; este brota daquele. O amor pelos pobres, se é amor verdadeiro, é o fruto do amor por Jesus. Quem é Jesus? A mulher que fez a unção em Betânia o intuiu e por isso o ungiu: ele é aquele que abraça a morte por nós, aquele que nos carrega, no amor, até a sua morte, até no sepulcro. Também ele é um pobre. Ele é o Pobre. É pobre por nós. É aquele do qual o apóstolo disse: «de rico que era, fez-se pobre por vós, para vos enriquecerdes através da sua pobreza» (2 Cor 8, 9). Isto foi intuido pela mulher -, ou talvez, dizendo melhor: isto intuiu o amor da mulher – e percebeu que Jesus nos faz ricos como ninguém ou nada, neste mundo, poderia fazer, e por isso «fez o que estava em seu poder fazer» e versou, sobre os pés de Jesus, toda sua riqueza. Respondeu ao amor de Jesus, com um generoso sinal de amor. Assim o seu amor por Jesus ganhou o posto de um sinal profético. Para aquele que consegue ver, na unção de Jesus, ela antecipou a unção de Jesus morto por nós, unção pela qual, na manhã de páscoa, as mulheres não chegaram em tempo ao sepulcro. Ela, consciente-inconsciente, viu o seu sofrimento, a sua cruz, o seu sepulcro, o seu amor por nós, e com a sua oferta, o agradeceu. De um agradecimento semelhante daqueles que se sabem assegurados pela obra da paixão de Jesus, de um semelhante amor agradecido brota, pois, também o amor desinteressado pelos pobres, que «não faltarão nunca no país».

«Em verdade, vos digo que, em todos os lugares, em todo o mundo, onde será anunciado o evangelho, se contará também este fato, em recordação do que ela fez» (Mc 14, 9). O evangelista não disse o seu nome. Ele pode ser esquecido, e permanece recordado sempre junto de Deus. Não é o seu nome que é glorificado por Jesus, mas a sua ação é elogiada e é anunciada, no evangelho, e como evangelho, em todo o mundo, e até o fim do mundo. Ela deve recordar a nossa memória aquele que, sobre a via da paixão e de sua morte, merece um semelhante amor, e deve convidar-nos ao mesmo amor por Ele.
H. Schlier, la passione secondo Marco, 20-23

domingo, 24 de março de 2013

39 Eis que o teu Rei vem a ti

Entrada de jesus em Jerusalém e encontro com Zaqueu, tempera sobre madeira, 2002.
Uma semana antes da Páscoa, os fiéis festejam o Domingo de Ramos. Neste dia recordam o ingresso de Jesus em Jerusalém, ingresso pleno de glória e de humildade. O povo acolhe Jesus como um rei, com exclamações de alegria e levam nas mãos ramos de palmeira.

O evangelho diz que «a cidade toda estava em agitação» (Mt 21, 10), mas este rei não tem nenhum poder senão aquele do amor, não doa nada senão liberdade e alegria, não pede nada, senão este mesmo amor e esta mesma liberdade.

«Eis que o teu rei vem a ti, manso» (Zc 9, 9). Este texto do profeta Zacarias é citado pelo evangelho (Mt 21, 5) e esta mesma profecia é lida durante a liturgia de Domingo de Ramos. É neste encontro entre a humildade e a soberanidade, entre o poder e o amor, entre a glória e a liberdade, reside o significado eterno deste evento evangélico e faz o todo desta festa. Como outrora, também o mundo atual exalta o domínio, o poder, o sucesso, o conflito. Outrora, como agora, cada um quer reinar sobre o outro, mandar, dirigir, exaltar o próprio poder. «Os reis das nações as dominam, diz o Senhor, e os grandes exercitam o seu poder sobre elas. Não será assim entre vós» (Mt 20, 25-26). (...)

Jesus avança para Jerusalém; é o Senhor pobre, que não tem uma pedra onde repousar a cabeça. Envia dois discípulos para que lhe conduzam um pequeno asno, sobre o qual se assenta: e está aqui todo o seu triunfo, toda sua glória. Ao seu encontro lhe vem multidões imensas e toda a cidade ressoa como as saudações tradicionalmente reservadas aos reis: «hosana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor!» (Mt 21, 9).

Jesus ensinava: «Conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres» (Jo 8, 32). Todo o seu ensinamento prova que não existe nenhum poder no mundo que possa despedaçar, de dentro, e escravizar aquele que conhece a verdade e que, nela obteve a liberdade. Pode-se tranformar um país em uma prisão, e obrigar as pessoas a tremer por uma dezena de anos. Chega o momento, no qual a verdade triunfa e o poder treme. É necessário, de novo, mobilizar os escravos do poder, para que gritem: «Crucifica-os, aniquila-os, cale a boca destes criminosos!»

O Domingo de Ramos nos diz que o reino da liberdade, do amor e da verdade se levantou sobre esta terra. Cristo entrou em uma cidade deste mundo. Ensinou que é necessário sermos livres, aqui e agora, que é necessário amar, aqui e agora, que todo medo deve ser vencido pelo amor, que o homem realiza a sua eternidade neste mundo, criado por Deus, pleno da beleza de Deus.

Cada vez que, no ofício de vigílias da liturgia oriental, na noite de Domingo de Ramos, em um dos momentos mais solenes e alegres, os fiéis, que enchem a igreja, levantam os ramos iluminados pelas velas e fazem, de novo, ressoar o grito: «Hosana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor!», naquele instante não se faz simplesmente memória daquilo que aconteceu tanto tempo atrás, em um passado longínquo. Com aquelas palavras, os presentes prometem ser fiéis ao único rei e ao único reino, prometem ser fiéis à liberdade, à verdade e ao amor que ele anunciou, ou mais simplesmente, reafirmam e anunciam a liberdade divina do homem.

O Domingo de Ramos é a festa do Reino de Deus, que já começou a manifestar-se. É claro que sabemos que, depois da luz e alegria deste dia, depois deste triunfo e desta glória, mergulharemos na tristeza e nas trevas da Semana Santa. O poder não esquecerá e não perdoará o triunfo de Cristo, e o condenará à morte, e fará de tudo para extirpar ainda o último brotinho de seu terrível ensinamento, porque lhe é insuportável seu apelo à liberdade, ao amor e à verdade.

O Domingo de Ramos é «antecipação da Cruz», como proclama um canto desta festa, mas nós já sabemos que, das profundezas da Sexta-feira Santa, sobre a estrada do Gólgota, enquanto Cristo está caminhando para o sofrimento e a Cruz, chegam até nós as suas palavras: «Pai, é chegada a hora: glorifica o teu Filho, para que o Filho te glorifique» (Jo 17, 1-2).

A. Schmemann, Le dimanche des Rameaux, 23-25.

sábado, 23 de março de 2013

38 Conversão da necessidade em desejo

A posição da orante, anterior ao cristianismo, revelava, como um reflexo no rosto e no corpo, a Realidade invisível que o falecido, ou o que tinha essa experiência mística, "via" no seu encontro com a Divindade.
Livia como orante - I séc. a.C. (Aurea Roma 2000 598)
A oração, como já explicava Santo Agostinho, é uma atividade de conversão: não muda o desígnio de Deus, mas muda-nos, conduzindo-nos a aceitá-lo e consentir nele. É na oração, pois, que se cumpre esta espécie de alquimia, se podemos assim dizer, que transforma as nossas «necessidades» em «desejo». Trata-se não tanto de «desejos» no plural, que poderiam ser somente outras tantas manifestações de necessidades, mas deste único desejo, que consiste no estar tensos na direção do que, sozinho, tranformará o nosso vazio em plenitude; em linguagem cristã, o estarmos tendidos na direção daquele que é o único necessário.

As nossas necessidades nos fazem buscar uma satisfação por nós mesmos; o desejo, ao contrário, é aquela atitude de oferta que nos faz tender na direção do outro, por ele mesmo. O símbolo desta passagem das necessidades ao desejo é o silêncio, no qual, depois de ter feito o pedido de coisas a possuir, para consumir, não recebemos resposta; aceitamos, então, que seja cumulado somente aquele desejo que Deus mesmo colocou no nosso coração, e que seu Espírito não cessa de expressar, com suas aspirações inexprimíveis, às quais nos é pedido, simplesmente, que nos associemos. Libertando-nos de nossas necessidades, libertamos o nosso desejo. O silêncio de Deus, o nosso silêncio de consentimento com o seu silêncio nos libertam da linguagem de nosso egoísmo e colocam em seu lugar a linguagem do amor.

Tais distinções podem nos ajudar a interpretar as infinitas variações sobre temas complementares dos silêncios e das palavras de Cristo e dos cristãos, a que se dedicaram os autores espirituais de todos os tempos. No tempo no qual vive em Maria, «o Verbo eterno se confina no silêncio», «a onipotência é inativa como se nada pudesse» (Guerric d'Igny, In Ann., 3, 4); sobre a cruz, Jesus provará desencorajamento e confiança, ao mesmo tempo. Abandona-se no mesmo instante em que é abandonado; o seu grito é contemporaneamente, segundo Mateus e Marcos, lamento e pedido: «Meu Deus, meu Deus, porquê?», e segundo Lucas, é uma afirmação mais forte que o silêncio do Pai, no momento no qual lhe responde: «Nas tuas mãos, entrego meu espírito...».

Entre o silêncio do infante, que não pode ainda falar, e aquele do moribundo, que logo não poderá mais fazê-lo nesta vida, existe o espaço, no qual estão situadas todas as palavras que Cristo nos dirige para convidar-nos ao amor. Palavras de homem dirigidas a homens. Para expressar o próprio mistério, Jesus fez uso das nossas palavras, da linguagem do seu tempo e de seu ambiente. Partiu das necessidades de quantos lhe estavam em torno, das necessidades de todos os homens, para transformar-lhes em desejo. E, para ensinar-nos a fazê-lo, passou por cima das próprias necessidades, renunciou a satisfazê-las, a começar por aquela, tão profunda em todos, de não morrer. Jesus é estado puro de desejo: consentimento ao desejo do Pai, aceitação da sua vontade a respeito dele.

Jesus mudou as suas imagens, a sua linguagem de mediação das alegrias e dos sofrimentos dos homens, para ensinar-nos a elevar-nos acima deles, partindo deles. Não nos é pedido, na oração, de esquecê-los, e nem menos, parar muito sobre eles, mas de tranformá-los. É normal, é muito natural, que nós comecemos com o falar de nós a Deus, antes de chegar a falar dEle com Ele mesmo.

As nossas necessidades se tornam a ocasião na qual nasce o nosso desejo de encontrá-lo, de cumular o desejo que Ele tem por nós. Neste buscar-se reciprocamente, é Ele quem tem toda a iniciativa.

J. Leclercq, Silence et parole..., 191-192.

sexta-feira, 22 de março de 2013

37 A oração, fruto do arrependimento

S. Pedro arrependido, Frei Agostinho da Piedade OSB, 1636, Mosteiro de S. Bento, Salvador BA.
A verdadeira oração, aquela que nós somos, a nível de nossa existência profunda, não pode existir senão como fruto da conversão. É ali que desemboca o caminho de conversão. Antes deste momento da conversão, a oração poderia ser nada mais que uma empresa do homem em busca de Deus. O fiel, então, se empenharia, com todas as suas energias, na tentativa de orientar cada uma das suas faculdades na direção de um Senhor que se esconde. Um esforço digno de mérito, certamente. Ele buscaria fazer de Deus, o objeto de sua inteligência, poderia ainda, por assim dizer, esforçar-se por produzir algum sentimento, mas o resultado de uma tal ascese seria sempre passageiro e superficial. Se, antes, o coração não se purificou, e não se inflamou, por si mesmo, na oração, todo esforço pela oração permanece estéril.

A oração deve nascer da conversão. Eis que, de improviso, ela brota e se torna logo um rio, que nada poderá barrar. É o fruto imediato da compulsão de coração. Katanyssein e compungere, de fato, significam, literalmente, perfurar, transpassar. O olhar misericordioso de Deus perfura e transpassa o coração. O corpo, então, efunde-se em lágrimas, e o coração em oração. «Quando choras», anota Isaac o Sírio, «os teus pensamentos dão o primeiro passo no caminho da vida eterna» (Discorso, 15). O novo nascimento está próximo.

Primeiramente, esta oração brota do profondo da angústia, desafoga a própria miséria. É um grito de ajuda, um implorar pelo perdão. Mas, na medida que vai inundando o coração com o seu fluir incessante, mais se pacifica e se reconcilia, por assim dizer, com o pecado. Mais que isso, ela termina por desviar o olhar da própria fraqueza, para fixá-lo unicamente no rosto de misericórdia.

O arrependimento se transmuta, então, pouco a pouco, em uma alegria humilde e discreta, um temor amoroso, e enfim, em ação de graças. A culpa não é negada, nem dissimulada, mas se converte em perdão.

Lá, onde abundava o pecado, a graça não cessa de superabundar (Cf. Rm 5, 20). Tudo o que o pecado havia destruído, a graça restitui a um incomparável esplendor. Se a oração leva, ainda. Sinais da culpa e da miséria, trata-se, definitivamente, de uma felix culpa, de uma culpa assumida e envolvida pelo amor. A oração, então, está próxima de tornar-se uma incessante eucaristia.

A. Louf, Repentir et expérience de Dieu, 41-42.

quinta-feira, 21 de março de 2013

36 Toda nossa oração é em Cristo

Cristo com a iconografia do filósofo romano, Catacumbas de Comodila, Roma, séc. IV.
Se os salmos são Palavra de Deus, então é Deus mesmo que fala nestas orações, é Ele quem reza. Deus que ora e Deus que atende a oração: um problema que somente Jesus encontra a solução. Ele é o nosso porta-voz, seja no tempo de sua humilhação, seja na sua elevação eterna. Ele reza por nós diante do trono de Deus. Cristo, o Filho de Deus tornado homem, reza ao seu Pai. Ora na posição de nosso irmão, que nos conhece. Não pronuncia esta oração em nosso lugar, como se não pertencesse, também Ele, a nossa raça, como se não estivesse conosco; Ele, de fato, fez sua a nossa oração e, em uma intercessão eterna, a faz sua todos os dias, lão onde se prega em seu nome. Isto nos leva a ver a diferença essencial que intercorre entre a oração cristã e todas as outras orações. A oração cristã não é uma oração imediata, como se, assim diretamente, nós pudéssemos encontrar, na oração, aquele acesso a Deus que nos foi rejeitado por outras vias; como se Deus tivesse que agir, em relação a nós, através de seu mediador, e nós pudéssemos, graças a nossa oração, saltar este mediador. A nossa oração é uma oração transmitida por
Cristo, que é o mediador. O fato que nós possamos atingir Deus na oração não é uma evidência religiosa: é um fato tornado possível unicamente por Cristo. Nenhuma oração encontra a estrada para Deus se Jesus Cristo, o nosso intercessor, não a toma e a diz por nós; nenhuma oração encontra esta via senão é pronunciada no nome de Jesus Cristo. Não se trata de uma fórmula, mas de uma realidade: a nossa oração é ligada ao homem Jesus Cristo, à sua vida, à sua morte e ressurreição, ligada ao ato anterior e já consumado de Deus, à Palavra, pronunciada por Deus, que nos absolve. Porque Deus se fez homem e sofreu conosco, foi provado em todas as coisas, como nós, na angústia e na morte, e «nos dias de sua carne, ofereceu orações e súplicas com fortes gritos e lágrimas» (Hb 5, 7); por isso e nisto somente, nós temos a graça da oração.

A oração cristã existe, pois, unicamente em base da Palavra de Deus, pronunciada em Jesus Cristo e, em base da intercessão eterna de Jesus Cristo pela sua comunidade. Vale dizer que a oração cristã é uma oração ligada à Sagrada Escritura. O verdadeiro presuposto da oração cristã é o fato de que Deus permaneça também lá, aquele que fala, isto é, o sujeito; o fato de que ela seja a Palavra de Deus, isto é a oração de Jesus Cristo, o grande sacerdote.

Ora, os Salmos exprimem, precisamente este dado de fato, enquanto se apresentam a nós como oração da comunidade de Deus e como Escritura Santa. Isto significa muito simplesmente que é Cristo mesmo aquele que reza nos Salmos, e que nós repetimos estas orações no nome de Jesus Cristo. Não tem sentido, pois, conceber as orações dos Salmos como orações de imediatez, como se fôssemos nós o sujeito; trata-se, ao contrário, de compreender e de rezar os Salmos como oração de Jesus Cristo na comunidade, ou como as orações da comunidade no nome de Jesus Cristo.

D. Bonhoeffer, Textes choisis, 204-205.

quarta-feira, 20 de março de 2013

36 Rezar é reconhecer-se criatura

Santa Inês em atitude de oração, vidro dourado do séc-IV
Como se é, assim se reza. No dirigir-se a Deus nos mostramos como somos. Quem nunca reza, tentou afastar-se de si mesmo, porque se afastou de Deus. Mas, ainda que possa estar fora da realidade, é muito mais real do que aquele que reza a Deus com um coração falso e mentiroso.

O pecador que teme dirigir-se a Deus, que busca negá-lo com o seu coração, está mais perto, talvez, de confessá-lo do que o pecador, que em pé, diante dele, sente orgulho de seu pecado, porque pensa que seja uma virtude. O primeiro é mais honesto do que se crê, porque reconhece o seu estado e confessa que Deus e ele não estão de acordo entre si. O segundo, não só mente a si mesmo, mas busca também fazer Deus mentir, chamando-o a aprovar sua mentira. Eis o fariseu da parábola, o santo homem que praticava muitas virutdes, mas que mentia diante de Deus, porque acreditava que sua piedade o tornasse melhor que os outros. Desprezava os pecadores e adorava um falso Deus, que os desprezava e a ele mesmo.

A oração ´é inspirada por Deus nas profundidades de nosso nada. É o moto da confiança, de gratidão, de adoração ou de sofrimento que nos põe diante de Deus, fazendo-nos vê-lo e a nós mesmos na luz de sua verdade infinita, e nos impulsiona a pedir-lhe misericórdia, força de alma e ajuda material, da qual, todos temos necessidade. Quem faz uma oração tão pura que não pede nunca nada a Deus, não sabe quem seja Deus, e nem sabe quem ele mesmo seja, porque não reconhece a necessidade que tem de Deus.

Toda verdadeira oração confessa, de qualquer maneira, a nossa dependência absoluta do Senhor da vida e da morte, é, pois, um contato vivo e profundo com aquele que reconhecemos, não só como Senhor, mas como Pai. Quando rezamos de verdade, somente então exitimos de fato. Desta, que é uma das atividades mais perfeitas, o nosso ser se encontra levado a uma alta perfeição. Quando cessamos de rezar, tendemos a recair no nada. É verdade que continuamos a existir, mas assim com a principal razão de nossa existência está na consciência e no amor de Deus, quando interrompemos o nosso contato com ele, ou nos adormentamos ou morremos. É claro que não podemos ter, sempre nem frequente, uma clara percepção dele. Para ser espiritualmente desperto basta somente ter aquela habitual consciência dele, que envolve, em uma atmosfera espiritual, todas as nossas ações, sem, no entanto, atingir formalmente nossa atenção, exceto em alguns momentos, de uma percepção mais viva. Mas, se Deus nos abbandona tão completamente que não somos mais capazes de pensar nele, com amor, eis-nos, então, espiritualmente mortos. Th. Merton, Nessun uomo è un'isola, 59-61

terça-feira, 19 de março de 2013

35 S. José da boca fechada

José é um daqueles seres que me dão medo, e não porque sejam maus e perigosos ou de uma superioridade esmagante, mas porque me parecem misteriosos, como o próprio Deus. José, o homem da boca fechada, o homem interior! Se pelo menos tivesse dito alguma coisa, uma palavra, poderíamos talvez adivinhar o fundo de sua alma, o senso da sua estranha vida. Mas ao contrário, não temos nada, nem no momento da tempestade, do “temporal”, como dizem os nossos irmãos gregos, nem na ocasião do nascimento do Menino, nem em Jerusalém, quando avançava tranqüilamente com as duas rolinhas de nada, que serviriam para resgatar o Cordeiro... Está simplesmente ali, parado, com os grandes olhos, doces e tranqüilos, ainda mais arregalados, ou talvez iguais aqueles de sua cara esposa, permanecendo a escutar o canto do velho Simeão, que está no limiar de morrer, não tendo mais nenhuma razão de continuar desde o momento que viu... Nada no momento da fuga para o Egito, e nada em Nazaré, nem mesmo quando o Menino foi perdido. E depois, absolutamente nada... o desaparecimento total e definitivo, na ponta dos pés, como os grandes tímidos que não querem que se lhes preste atenção, que se fale deles. Sim, tudo isto dá muito o que pensar!

As primeiras eras do cristianismo não buscaram fender este silêncio. Somente Bernardo colocará uma tímida pergunta: “Quis? Qualis?” “Quem é? Que homem é?” Nada mais. Será necessário esperar os tempos modernos para que todos queiram saber alguma coisa, e até mesmo se abra uma cátedra de “Josefologia” (mas fiquem tranqüilos, que isto é no Canadá!), e José, malgrado toda esta indiscrição , não diz nada, não dirá nada, não fará revelações, permanecerá o homem da boca fechada, o homem do interior. E porque me meto a falar dele? Porque não deixá-lo em seu silêncio, como deixo os peixes no mar? Depois de tudo, se isto lhe agrada, deixa falar e fazer, sem abrir a boca....

Mas não é dele que quero falar, nem espero que me fale. Quero somente contemplar o seu silêncio, mergulhar nele, impregnar-me dele até o ponto de suplicar que não nos diga absolutamente nada, que não nos apareça nunca...

José da boca fechada é o homem do interior; faz parte daquela coorte de silenciosos para os quais, falar é perder tempo, é sobretudo trair o Intraduzível, o Inefável. Naturalmente quando estas pessoas dizem alguma coisa, arriscam de fazer tremer o mundo, como Sto. Tomás de Aquino, aquele boi mudo da Sicília, de quem troçavam os estudantes do mestre Alberto, na Universidade de Paris.

José da boca fechada é o homem que começa onde Jó terminou, quero dizer, nasce com a mão tapando a boca. Tem um senso enorme de Deus, do seu Ser sem medida e de sua loucura de Amor. Não o vejo pedindo explicações ao Inexplicável. A única vez na qual penetra o mundo da dúvida, quis unicamente desaparecer, sem nenhuma palavra: “Vai, amada minha!” O anjo de Deus simplesmente lhe deu um empurrão. Depois de tudo, José é um homem: “Não temas pois de tomar Maria como esposa; o que nela foi gerado é obra do Espírito Santo!” (Mt 1, 20).

Depois do retorno do Egito, José desaparece. Acreditem-me: esta morte, este transitus do beato José não tem nada de triste. Não houve nenhuma declaração, nada de novissima verba desde o momento que tampouco houveram priora verba. O seu silêncio é o mesmo de Deus. É cheio da violência do Amor.

L. –A. Lassus, L. –A., Pregare è una festa, 80-82.

segunda-feira, 18 de março de 2013

A Casta Susana, no livro de Daniel

Detalhe do Mural "Árvore da Vida", Paróquia São Sebastião, Ponta Grossa PR, 1991.


13 1Havia um homem, de nome Joaquim,
que estava residindo na Babilônia. 2Era casado com uma mulher de nome Susana, filha de Helcias, mulher bonita e muito religiosa. 3Seus pais, gente correta como eram, ti­nham educado a filha na Lei de Moisés. 4Joaquim era um homem muito rico e tinha um espaçoso bosque junto à sua casa. Os judeus costumavam reunir-se ali, porque Joaquim era o mais respeitado de todos eles.

5Para aquele ano tinham sido nomeados como dirigentes, dois anciãos do povo, dos quais o Senhor disse: “A injustiça brotou na Babilônia, vinda dos anciãos que pareciam go­vernar o povo”. 6Essesdois freqüentavam a casa de Joaquim, pois era ali que as pessoas­ iam procurá-los quando tinham alguma coisa­ a resolver. 7Acontecia que, quando o povo ia-se embora, por volta do meio dia, Susana saía para dar umas voltas no bosque do seu marido. 8Os dois anciãos todos os dias viam Susana sair para dar seu passeio e assim co­meçaram a cobiçá-la. 9Perverteram o pensamento, desviaram o olhar para não enxergarem a Deus do céu, nem se lembrarem dos procedimentos corretos. 10Estavam os dois to­talmente caídos por ela, só que um não contava ao outro a sua paixão, 11pois tinham vergonha de revelar seus desejos de manter relação com ela. 12Todos os dias ficavam espe­rando ansiosamente pelo momento em que ela passeava. Certo dia disseram um ao outro: 13“Vamos para casa que já é hora do almoço!”­ Saíram e um para cada lado, 14mas logo em seguida deram meia volta e retorna­ram juntos­ ao mesmo lugar. Foram, então,­ obrigados a contar um ao outro o motivo pelo qual tinham voltado e acabaram confessando­ sua paixão. A partir daí, combinaram procurar juntos uma boa oportunidade de pegá-la sozinha.

15Estavam os dois à espreita de uma ocasião­ oportuna, quando, um dia, ela saiu só com as duas meninas, como nos outros dias, e teve vontade de tomar banho no bosque porque estava fazendo calor. 16Não havia mais ninguém, a não ser os dois anciãos que estavam escondidos observando Susana. 17Ela disse às meninas: “Tragam-me sabão e perfumes e fechem o portão do bosque que vou tomar um banho!” 18Fazendo o que a patroa mandara, as meninas fecharam os portões do bosque e saíram por uma porta lateral, a fim de buscar o que lhes tinha sido mandado, sem notar os dois anciãos, que estavam bem escondidos. 19Bastou as meninas saírem, os dois anciãos deixaram o esconderijo e foram­ ao encontro de Susana. 20Disseram-lhe: “Olha! Os portões do bosque estão fechados­ e ninguém está vendo a gente. Nós estamos te desejando, concorda com a gente: Vamos manter relações! 21Se não concordares, nós acusaremos que um rapaz esteve aqui contigo­ e que foi por isso que mandaste saírem as me­ninas.” 22Susana suspirou e disse: “A situação para mim está difícil por todos os lados: Se eu fizer isso aí, estou condenada à morte, se não fizer, sei que não escapo das mãos dos senhores. 23Mas prefiro dizer não, e cair nas mãos dos senhores, a cometer um pecado contra o Senhor”. 24Em seguida ela gritou bem alto, mas os dois anciãos também gritaram contra ela. 25Um dos dois correu e abriu os portões do bosque.

26O pessoal de casa, ao ouvir os gritos no bosque, veio correndo pela porta lateral, a ver o que tinha acontecido a Susana. 27Os dois an­ciãos contaram, então, a sua estória. Os em­pregados ficaram muito envergonhados, porque nunca tinham ouvido falar qualquer coisa­ desse tipo contra Susana.

28No outro dia, quando o povo se reuniu na casa de seu marido Joaquim, os dois anciãos vieram com a cabeça cheia de planos malvados contra Susana, a fim de condená-la à morte. 29Disseram, pois, na presença do povo: “Mandai chamar Susana, filha de Hel­cias, esposa de Joaquim!” Mandaram chamá-la. 30Ela veio e com ela vieram também seus pais, seus filhos e todos seus parentes. 31Ela era muito delicada e de bonita aparência. 32Su­sana estava com o rosto coberto. Aqueles­ canalhas mandaram tirar-lhe o véu só para po­derem inebriar-se com a sua beleza. 33Os que estavam ao lado dela e todos os que a es­tavam vendo puseram-se a chorar.
Detalhe do Mural "Árvore da Vida", Paróquia São Sebastião, Ponta Grossa PR, 1991.
34Os dois anciãos ficaram de pé diante do povo e puseram as mãos sobre a cabeça de Su­sana.35Chorando ela olhava para o céu, pois seu coração confiava no Senhor. 36Disse­ram, pois, os dois anciãos: “Estávamos nós dois passeando pelo bosque, quando veio Susana, acompanhada pelas duas meninas. Logo depois ela fechou os portões do bosque e mandou as meninas se retirarem. 37Foi quando veio ao seu encontro um rapaz, que até então estava escondido, e se deitou com ela. 38Nós estávamos no outro canto do bosque e, ao vermos aquela imoralidade, corremos para o lado deles. 39Vimos os dois agarrados um ao outro, mas não pudemos segurar­ o rapaz, que era mais forte do que nós. Ele conseguiu abrir o portão e fugir. 40A Susana, porém, nós seguramos e perguntamos quem era o tal rapaz, mas ela não o quis dizer. É o que temos a testemunhar”. 41A multidão acreditou neles, pois eram anciãos do povo e, ainda mais, dirigentes. E decidiram condenar­ Susana à morte.
 
42Em alta voz, assim exclamou Susana: “Ó Deus eterno, que conheces o que está escondido, que tudo vês antes que aconteça, 43tu sabes muito bem que deram um testemunho falso contra mim! Vou morrer, mas sem ter feito nada daquilo de que me acusaram.”

44O Senhor atendeu ao seu clamor: 45No mo­mento em que era conduzida para a morte,­ o Senhor despertou o espírito santo de um jovem rapaz de nome Daniel. 46Ele gritou bem alto: “Não tenho nada a ver com a morte des­sa mulher, estou inocente!” 47O povo inteiro voltou-se para ele dizendo: “Que foi o que você disse?”

48De pé no meio deles assim falou Daniel: “Como sois idiotas, israelitas! Sem julgamento e sem formar uma idéia clara acabais de condenar à morte uma mulher israelita! 49Voltai para o tribunal! Foi falso o testemunho desses homens contra ela!” 50Todo o po­vo­ voltou correndo. Os anciãos disseram a Daniel: “Vem sentar-te no nosso meio e explica para nós, pois Deus já te deu maturidade suficiente.” 51Daniel disse: Colocai os dois um bem distante do outro, que vou julgá-los.­ 52Depois de terem isolado um do outro, Daniel disse ao primeiro deles: “Ó homem envelheci­do na malícia, agora teus pecados vão aparecer, tudo o que já vinhas praticando, 53ao dar sentenças injustas, condenando o inocente e deixando sair livre o culpado, quando a palavra do Senhor é : ‘Cuidado para não condenar­ à morte o inocente e o justo!’ 54Agora, pois, se viste mesmo, dize debaixo de que árvore viste os dois se entretendo?” Ele respondeu: “Debaixo de uma aroeira.” 55Daniel disse: “Pois mentiste exatamente contra a tua própria­ cabeça. O anjo de Deus já recebeu a ordem de serrar-te ao meio”. 56Depois de mandar em­bora este, Daniel fez vir o outro. Disse-lhe: “Geração de Canaã, não de Judá! A beleza feminina te desnorteou, a paixão te fez perder a cabeça. 57Era assim que fazíeis com as mulheres de Israel e elas, como medo, se entregavam aos vossos desejos, mas esta filha­ de Judá resistiu às vossas indecências! Dize-me, então, debaixo de que árvore apanhaste os dois se entretendo?” Ele respondeu: “Debaixo de um carvalho”. 59Daniel disse: “Pois acabas de mentir exatamente contra tua cabeça. Com a espada na mão, o anjo de Deus está esperando para cortar-te ao meio e acabar com os dois”. 60Toda a multidão começou a aclamar e dar louvores a Deus que salva os que nele confiam.

Detalhe do Mural "Árvore da Vida", Paróquia São Sebastião, Ponta Grossa PR, 1991.
61Em seguida todos se levantaram contra os dois anciãos, pois Daniel tinha provado por suas próprias bocas que eles estavam mentindo. Fizeram com eles o que queriam fazer com Susana, 62de acordo com a Lei de Moisés. Foi assim que naquele dia condenaram os dois à morte, salvando uma pessoa inocente. 63Por causa de sua filha Susana, Helcias e sua mu­lher, juntamente com Joaquim, o marido dela, e todos os parentes louvaram a Deus, já que nada de indecente se encontrou nela. 64Daniel,­ por seu turno, tornou-se grande diante do povo a partir daquele dia.
 

domingo, 17 de março de 2013

33 A força do perdão

Toda relação humana tem sua história, seu desenvolvimento, os seus períodos, suas crises. E isto tanto mais é verdade quanto mais ela é viva; porque tanto mais os dois estão próximos, a ação de um toca o outro imediata e diretamente. Assim que é fácil ferir-se. Então se decide: se a relação não Poe continuar, ela se dissolve; mas se aquele que foi ferido tem a força de ir até o fundo da raiz da relação, pode dar-lhe, a partir de lá, um novo início. Não se pode retomar simplesmente como era antes; se a ligação permanece viva, deve tornar-se maior. Isto significa, então, perdão criador.

Mas também, se não acontece um verdadeira ofensa, uma ferida real, não sucede que, em toda relação humana, em dado momento, um dê nos nervos do outro, simplesmente por ser como é? Nós mesmos não criamos o outro, apenas o encontramos...

Nenhuma relação pode prosperar se não se está disposto a deixar que o outro seja aquilo que é; e a superar continuamente, com o espírito de perdão, as dificuldades inerentes ao seu ser e a colher, de tal modo, a substância do que a relação significa.

Mas isto não que dizer que tratemos de igual modo o bem e o mal? Que digamos que o que é justo não é mais justo, e o que é errado não é mais errado? Que desculpemos o mal na conduto do outro, para simplificar um pouco a vida? Certamente, não. Se foi cometido um erro, permanece um erro, e o que não era justo, permanece injusto. O verdadeiro perdão só pode vir da verdade. Mas ele de ser mais forte que a verdade – até mesmo: mais forte que a realidade. Originado pelo espírito de amor, deve dominar a desilusionante realidade, como Deus dominou nossos pecados. Ele reconheceu o homem, que lhe desconcertou a criação, em toda sua realidade malvada: mas a acolheu de novo no seu amor, guiando-o no reino da redenção: igualmente devemos também nós acolher continuamente no amor, através do perdão, as criaturas a nós confiadas, isto é, as pessoas com as quais tratamos.

Naturalmente, nossa força pessoal sozinha não basta: e é preciso lembrar-se sempre disto. Se alguém diz: Eu não posso perdoar o outro naquilo que ele me fez – a justa resposta não é: «tu deves faze-o, portanto esforça-te!» --, mas: Cristo te obteve do Pai o grande perdão; nele tu podes conseguir aquela força para exercitar o teu pequeno perdão. Somente na união com aquele que nos resgatou de nossa culpa, podemos conceder com aquela do próximo, de outra maneira, o perdão se deforma em prudência e diplomacia.

As grandes atitudes cristãs podem ser sempre interpretadas em sentido secularista: da esperança se deduz a confiança em um futuro melhor; da humildade, a discrição, da preocupação pelo Reino de Deus, o trabalho no campo da civilização e assim por diante. Assim acontece também com o perdão, quando procede somente do humano: torna-se pura disposição a superar, por amor da convivência, o que aconteceu. O perdão, do qual fala a oração do Senhor, pretende outra coisa e muito mais alta; mas isto pode realizar-se somente se atiram-se as suas raízes lá onde o ato tem origem, isto é, na atitude de Cristo, que nos liberou o perdão do Pai.

R. Guardini, Preghiera e verità , pp. 158. 160-161.

sábado, 16 de março de 2013

32 Em silêncio orante

S. José, Ivan Polverari, Itália
O silêncio tem uma dupla maneira de se impor a nós: provém de nossa pobreza ou brota de uma plenitude. Freqüentemente é necessário que o silêncio nos chegue através do sentimento de nossa pobreza. Isto acontece muito simplesmente quando nos damos contas de não somos capazes de pronunciar a palavra como se deveria. Jesus se mostrou severo em confronto com as palavras inúteis pronunciadas pelo fiel com leviandade (cf. Mt 12,36). A palavra foi dada ao homem para dar testemunho da Palavra de Deus, para dar graças e bendizer a Deus. Porém, nossas palavras tornaram-se uma das ocasiões mais fáceis para ofender a Deus e para ferir os irmãos. Uma certa discrição no falar é sinal de que somos conscientes disto e que desejamos sinceramente não pronunciar outras palavras se não aquelas que chegaram à maturidade em nosso coração. Um tal silêncio provem, antes de tudo, de um vazio em nós, mas de um vazio lucidamente aceito.

Mas existe um outro silêncio: aquele que brota de uma plenitude que existe em nós. Santo Isaac, o sírio, escrevia: «esforça-te, antes de tudo, por calar-te. Disto nascerá em nós o que nos conduzirá ao silêncio. Que Deus te conceda, então, de sentir o que nasce do silêncio. Se fazes assim, levantar-se-á em ti uma luz que não sei explicar. (...) Da ascese do silêncio nasce, no coração, com o tempo, um prazer que impele o corpo a permanecer pacientemente na paz. E vêm as lágrima abundantes, primeiro no sofrimento, depois no êxtase. O coração então sente o que discerne no profundo da contemplação maravilhosa».

Este silêncio é já oração, segundo o mesmo autor, «a linguagem dos séculos vindouros». Ele testemunha a plenitude da vida de Deus em nós, plenitude que deve renunciar a toda palavra humana para exprimi-la de maneira adequada. Por um certo tempo, somente as palavras da Bíblia conseguem ainda a expressá-la um pouco, mas depois chega o momento, no qual somente o silêncio pode dar conta da extraordinária riqueza que nos foi dado descobrir no nosso coração. É um silêncio que se impõe com doçura e com força, ao mesmo tempo, mas vem do interior. A oração se torna a lei, por ela mesma. Ela faz compreender quando é necessário calar e quando é necessário falar. É puríssimo louvor, e ao mesmo tempo, irradiação. Um silêncio assim não fere jamais a ninguém. Estabelece, ao seu redor, uma zona de paz e quietude, na qual Deus é percebido como presente, de maneira irresistível. «Conserva o teu coração na paz», dizia Serafim de Sarov, «e uma multidão, ao teu redor, se salvará».

A. Louf, La voie cistercienne, 97-98.

sexta-feira, 15 de março de 2013

31 A Palavra nasce do silêncio

O silêncio não existe, em nossa vida, por si mesmo. É direcionado a alguma coisa. O Silêncio gera a palavra. Uma inteira vida de silêncio é direcionada a uma declaração definitiva, que não pode ser expressa em palavras, uma declaração de tudo aquilo pelo qual vivemos.

Vida e morte, palavras e silêncio, nos foram dadas por causa de Cristo. Em Cristo morremos para a carne e vivemos para o espírito. Nele morremos para as ilusões e vivemos para a verdade. Falamos para confessar Ele, e permanecemos em silêncio para meditar sobre Ele e entrar mais profundamente no seu silêncio, que é, ao mesmo tempo, o silêncio da morte e da vida eterna, o silêncio da noite da Sexta Feira Santa e a paz da manhã de Páscoa. (...)

Neste silêncio se esconde uma pessoa: Cristo, Ele mesmo escondido assim como é proferido, no silêncio do Pai. Se enchemos a vida de silêncio, então vivemos de esperança e Cristo vive em nós e dá muita consistência às nossas virtudes. Então, quando chegar o momento, nós o confessaremos abertamente diante dos homens e a nossa confissão tem um grande significado, porque radicou-se em um profundo silêncio. Este desperta, nas almas daqueles que nos escutam, o silêncio de Cristo, assim como também eles se tronam silenciosos, e começam a maravilharem-se e a escutar. Isto porque começaram a descobrir o se verdadeiro ser.

Se a nossa vida se expande externamente em palavras inúteis, nunca escutaremos nada nas profundidades de nosso coração, onde Cristo vive e fala em silêncio. Seremos sempre um nada e, ao final, quando chegar para nós o tempo de declarar que e quê coisa somos, nos encontraremos sem palavras no momento da decisão crucial: porque teremos dito tudo, e estaremos esgotados nos discursos, antes de ter tido alguma coisa a dizer.

Deve haver um tempo, no dia, no qual quem faz projetos, esquece os seus planos e age como se não os tivesse. Deve haver um tempo, ao longo do dia, no qual, quem deve falar está em absoluto silêncio e a sua mente não formula mais proposições, e ele se pergunta: elas tinham algum significado?

Deve haver um tempo, no qual, o homem de oração vai rezar como se rezasse pela primeira vez na vida; no qual o homem que tomou decisões, deixa-as de lado, como se fossem todas frustradas, e aprende uma sabedoria diferente: distinguindo o sol da lua, as estrelas da obscuridade, o mar da terra firme, e o céu noturno do dorso de uma colina.

No silêncio aprendemos a fazer distinções. Quem foge do silêncio foge também das distinções; não deseja ver demasiadamente claro, prefere a confusão.

Um homem que ama a Deus, ama necessariamente também o silêncio, porque teme perder o seu senso de discernimento.

Th. Merton, Nessun uomo è un'isola, 266-269.