segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O TETRAMORFO

Visão de Ezequiel, iluminura, Winchester Cathedral, Hampshire, UK, séc. XII
Desde tempo imemoriais, passando por muitas culturas distintas do Mediterrâneo, encontramos a figura do Tetramorfo, ou da esfinge, que une os quatro seres, Homem, Águia, Touro e Leão. A estranheza da figura só contribuiu para sua ampla difusão nos mundo, e mesmo sua assimilação no judaísmo do Antigo Testamento e também no cristianismo do Novo.

Voltemos ao que pode ser a origem cosmológica do símbolo: As constelações que marcam os solstícios e os equinócios, estes quatro momentos importantíssimos no girar do tempo em um ano, são especificamente a constelação de Aquário, a de Leão, Águia e Touro.
Então, temos na origem o significado profundo do tempo cósmico, não aquele que depende de calendários convencionais e arbitrários, mas o fluir do tempo no universo. Os quatro animais ou seres eram os marcos dos dois solstícios e dois equinócios do ano, momentos chave do tempo. A fato de que sejam quatro tampouco é casual, dado que tudo que se refere ao mundo em que vivemos tem este número: um exemplo, na área do espaço, é o dos quatro pontos cardeais, sem os quais não conseguiríamos localizar-nos na superfície do planeta.
Os quatro filhos de Horus, em forma de vasos canópios, onde eram guardadas as entranhas das múmias, segundo o que cada um dos deuses tinham em função com os orgãos. Note-se a semelhança, seja no número seja nos tipos dos animais que os representam.
Nas concepções antigas, toda a criação é composta de quatro elementos: ar, fogo, terra e água. Então temos o quatro no universo, na superfície da terra e no íntimo da matéria: não por acaso se acreditava que o mundo fosse quadrado, porque de fato o é, não fisicamente, mas com o seu sentido quadrilateral.
Palace Guardian Nimrud, Assyria, c. 965 A.C. British Museum
Em Israel, as doze tribos estavam organizadas como as doze constelações que acompanham o sol em seu percurso anual, o zodíaco, e além disto, no acampamento no deserto, estavam agrupadas de três em três, com uma delas afrente, com seu emblema: Isacar, Zabulon, Judá: Leão; Ruben, Simeão e Gad: Homem; Efraim, Manasses, Benjamim: Touro; Dan, Aser, Neftali: Águia.
A tradição judaica faz corresponder a cada um destes seres, as letras do nome divino YHVH: Y corresponde ao Homem, H ao Leão, V ao touro, e a segunda H à Águia[1].
Teofania de Cristo, com a presença da Merkabah, com suas seis rodas. Mosteiro de Bawit, Egito, séc. VI
Ezequiel, seguindo a cultura de seu tempo, contempla a figura do «Carro de Deus» ou «Merkabah», justamente constituído pelos quatro seres vivos, associados às rodas do carro. (Ez 1,4-28) Este carro simboliza as ações divinas no mundo, o lado externo de o Deus indizível. Existe uma relação constante de natural entre o UNO transcendente (YHVH, o polo celeste) e o quaternário de sua manifestação e de sua ação no mundo criado[2]. A mensagem era, antes de tudo, mostrar a seus compatriotas que YHVH não estava materialmente unido ao Templo de Jerusalém, que a ruína do Santuário não levava à ruína da religião; que YHVH podia encontrar-se com o exilados junto aos rios da Babilônia e aparecer-lhes, más misterioso que nunca, no esplendor de uma teofania que superasse, de muito, as anteriores.
Ascensão de Cristo, no meio do Tetramorfo, Ponta de Santa Sabina, séc. IV, Roma.
A interpretação que Santo Irineu (202) deu aos tetramorfos e que a Igreja fez sua depois dele, situa-se no prolongamento da linha do «Merkabah». Na misteriosa aparição que surge no céu entreaberto, no meio dos quatro viventes, Irineu, referindo-se aos símbolos tradicionais d universo na Antiguidade, reconheceu a manifestação universal de Deus aos homens atentos, sendo esta a figura do anúncio de Cristo ao mundo, pelos quatro evangelhos. «Não é admissível que hajam mais de quatro evangelhos, nem tampouco menos. São quatro as regiões do mundo em que vivemos, e quatro os ventos dos pontos cardeais... Por isso é evidente que o Criador de todas as coisas, o Verbo, que está sentado sobre os querubins (os viventes da visão) e sustenta o universo, quando se manifestou aos homens, deu-nos um evangelho sob quatro formas, porém sustentado por um único espírito.... Os querubins tem, com efeito, quatro figuras (leão, toro, águia, homem) e seus semblantes são imagens da atividade do Filho de Deus».
Evangeliário, Madeira e marfim, Séc. XIII, Museo Cluny, Paris - França.
Irineu expõe o parentesco dos evangelistas com os Viventes, mas é uma aproximação arbitrária e não simbólica, que servirá mais para a iconografia que para outra coisa. Como o evangelho de Mateus começa com a anunciação a José, e nele aparecem os anjos, o Homem será o seu distintivo; Como o de Lucas começa no Templo, com a anunciação a Zacarias, depois do sacrifício do Touro, este animal será o seu distintivo. Já Marcos começa seu relato com Jesus indo para o deserto, e neste evangelho, aparece como o Leão de Judá, assim será representado. Finalmente, João começa seu relato nas alturas do Verbo no princípio de tudo, e por isso, associado à ave que mais alto consegue voar: a Águia.
Evangeliário, Etiópia, séc. XIV.
A associação não esgota o forte conteúdo do Tetramorfo, que tem seu referimento original, como dissemos à universalidade da manifestação do Senhor em relação ao mundo. Alguns autores insistirão que é mais importante o número do que a especificação de cada um deles, no que não concordamos plenamente, dado que uma análise das formas, em seus detalhes pode ser também muito rica. Em uma homilia muito famosa de Macário, o Grande, ele nos dá uma visão bastante interessante:


«O beato profeta Ezequiel narra uma visão e uma aparição divina e gloriosa que contemplou (cf. Ez 1,1s; 10,2s), e a descreveu plena de mistérios inefáveis. Viu, de fato, na planície, um carro de querubins, quatro eram os viventes espirituais, dos quais, cada um tinha quatro faces: a primeira era de leão, a segunda de águia, a terceira de touro e a quarta de homem. Cada face era provista de asas, de modo que não se distinguiam nem a parte anterior, nem a posterior. O seu dorso era coberto de olhos, e também o seu ventre, e não havia neles nenhum lugar que não estivesse cheio de olhos, e ao lado de cada face, existiam rodas, encaixadas umas nas outras; e, nas roda, havia um espírito. E viu uma aparência de homem sentado sobre elas; o escapelo de seus pés tinha a aparência de uma safira. O carro levava o querubim, e os seres vivos levavam o Senhor-Condutor que os conduzia. Onde quer que andasse, era sempre na direção de um dos rostos. E viu sob o querubim como que uma mão de homem, que o sustentava e o carregava. 
O que o profeta percebeu como real era verdadeiro e indubitável. Todavia, a visão deixava entrever uma outra realidade e figurava uma coisa misteriosa e divina, um mistério escondido, na verdade, por séculos e gerações (Cf. Col 1,26), mas que tornou-se visível nos últimos tempos (Cf. 1Pd 1,20) através da manifestação de Cristo. O profeta, de fato, contemplou o mistério da alma que recebe o Senhor e se torna o trono de sua Glória ( cf. Mt 19,28; 25,31) [3]

Para Macário, os quatro seres vivos que levavam o carro eram a figura das faculdades que regem a alma. De fato, como a águia reina sobre as aves, o leão sobre os animais selvagens, o touro sobre os animais domésticos e o homem, sobre a criação, assim acontece com as potências da alma, que reinam sobre as outras. Trata-se da vontade, da consciência (moral), do intelecto e da faculdade de amar. Elas dirigem o carro da alma, e nele, Deus repousa. Do que podemos inferir que o ser humano é a Merkabah de Deus no mundo.
Beatus de Fernando I - Liturgia Celeste - Biblioteca Nacional, Madrid - Vit. 14.2, f. 116v
Não se trata simplesmente de uma visão psicologizante, mas em perceber que o ser humano tem quatro dimensões. Quatro modos de ser no mundo, também ligados aos quatro elementos que estão na base de todas as coisas, a terra, o fogo, o ar e a água! Bastante diferente da visão helenística do corpo-alma, a que estamos acostumados.

Uma ajuda, nesta reflexão quadrilateral, vem de Pierre Weil[4], na qual, seguindo a intuição do tetramorfo das culturas mediterrâneas, associa apropriadamente os três seres às dimensões do homem: o Touro à parte vegetativa, o Leão à irascível, e a Águia à intelectiva.

Interpretação de Weil sobre o tetramorfo, com os geniais desenhos de Roland Tompakow.
O autor desenvolverá uma inteligentíssima leitura destas dimensões em relação com nosso corpo, mostrando como temos uma linguagem própria, muito para além das palavras, em cada mínimo gesto de nosso rosto ou corpo. O limite da visão de Weil é o fato de que ele não leve em consideração o número, que desde sempre foi o que marcou o símbolo. Ele vai definir que o quarto elemento, o Homem, é a somatória dos outros três, mas isto nunca acontece no campo da linguagem simbólica, ainda que possamos ter a complexa posição de um quarto elemento que seria também um quinto, por simbolizar os quatro juntos, não é o que se trata aqui. Por isso, à reflexão de Weil acrescentamos a visão de Macário nos primeiros séculos do cristianismo, em que o Homem-Anjo representaria a dimensão espiritual do ser humano, aquela parte que deseja e anseia pelo transcendente, mesmo que não religioso propriamente dito. É aquela parte de nosso ser que tem nostalgia da Beleza original. Muito da “religião” do mundo sem religião é direcionada para as artes, os concertos são como cerimônias sacras, os museus como novos templos, tudo levando a experiências de comunhão que vão além do simplesmente físico, racional ou afetivo. O mesmo pode acontecer com ideologias ou a política encaradas com fanatismo.
Tetramorfo em uma única figura. Afresco em um dos mosteiros Meteora, Grécia.
Poderíamos então concluir que o Touro trabalha por todos, o Leão ama por todos, a Águia busca as razões para todos, e o Anjo realiza a comunhão profunda por todos.

Sintetizando, nas manifestações de Deus, chamadas teofanias, encontrarmos os quatro seres vivos, o Tetramorfo, com múltiplas funções, como vimos acima: como Merkabah, carro de Deus, simbolizando sua mobilidade e presença junto de seu povo, através de símbolos cósmicos justamente para mostrar que este “estar com” vai infinitamente além do mero planeta Terra; Os seres simbolizam as doze tribos do Povo Eleito, resumidas nos quatro que estão à frente, assim como as quatro letras do Nome Divino, que como o carro, revelam, sem desvelar, a Presença invisível. Finalmente, também os quatro elementos que compõe o universo, a terra, o fogo, o ar e a água, com seus equivalentes das quatro dimensões humanas, das áreas vegetativa, irascível, intelectiva e
espiritual, que aparecem como moldura de um quadro, como janela de um Mistério maior: O Senhor se manifesta não somente para uma das dimensões do ser humano, mas para todas elas simultaneamente.
O equilíbrio de uma existência é justamente aquele de que cada dimensão cumpra sua função, e os Padres da Igreja, e também os Pais do Deserto, vão mostrar que as doenças do cristianismo estarão sempre em conexão com a falta de harmonia entre os quatro seres dentro de nós, pois somos a Merkabah de Deus no mundo.
[1] Champeaux, G. et Sterckx, S. Le monde des Symboles. St. Léger Vauban: Zodiaque, 1972, 510.
[2] Hani, J. , El simbolismo del templo Cristiano, José J. De Olañeta Editor, Barcelona, 1983, 81-82.
[3] Macario il Grande, Hom I, 1-3, PG 34, 451AB; Les homélies spirituelles de saint Macaire, Spiritualité Orientale n. 40, Abbaye de Bellefontaine 1984, 89-91.
[4] Weil, P. O corpo fala. Petrópolis: Vozes, 2005.