domingo, 15 de março de 2020

A Água pede de beber

O encontro de Jesus com a samaritana é bastante conheci­do (João 4, 1-30) e apresenta um paradoxo: Jesus, a água viva, pede de beber à samaritana. Esse não é o único paradoxo, nem a única “incoerência” desse texto que mistura fonte com poço, perguntas sem respostas e res­postas a perguntas que ninguém fez. Ao beber na fonte cristalina do texto original, pode-se des­cobrir a riqueza de um itinerá­rio iniciático apresentado pelo evangelista, oculto pela subjeti­vidade de muitos tradutores.
Logo no início, ao anunciar a intenção de Jesus de ir da Ju­déia para a Galiléia, as traduções dizem que para tanto: “era-lhe necessário passar pela Samaria (4,4)”, ou “era-lhe preciso” ou “tinha de passar”. Muitos vêem nisso uma obrigação geográfica: o caminho era por ali, não tinha jeito. Não é verdade. Na reali­dade, Jesus nem devia, nem pre­cisava. Poderia tomar outro caminho, como a maioria dos judeus fazia: Por exemplo, seguir o vaie do Jordão — onde água e sombras eram abundantes — e evitar esses heréticos, que eram para os judeus, os samaritanos. Basta olhar um mapa da região e constatar. Jesus mesmo recomenda aos discípulos evitar a Samaria (Mt 10,5). Em Lucas (9, 51-56), os discípulos que atravessam a Samaria são mal recebidos.
Mas Jesus já os distinguia: o único dos dez leprosos curados, que volta reconhecido, era samaritano (Lc 17, 11-19) e na parábola do bom samaritano ele os opõe aos levitas do templo (Lc 10, 30-37). No texto grego origi­nal, Jesus devia, tinha de passar (êdei) no sentido de quem tem um objetivo. Jesus tinha um pro­jeto de ir a Galiléia. A passagem da Judéia na Samaria lembra a profecia de Isaías, em que os reinos separados serão um dia reconciliados. Em Jesus acaba­rá a separação, a divisão de Is­rael e Judá. O rei justo — sobre o qual repousará o Espírito de Deus — “ajuntará os banidos, ou desterrados de Israel, reunirá ou congregará os dispersos de Judá” (Is 11,12 cf. Os 2,2; Jo 3,18; 35,50; Ex 37,1 6-24). E nes­se contexto que se deve enten­der porque Ele deve passar pela Samaria. Seu ensinamento era também para os excluídos, os impuros, os heréticos e os que tentam viver sua fé no meio de nações pagãs. Como nós, nos dias de hoje, cercados pelo ne­opaganismo e pelas heresias.
O episódio é polissêmico, rico em significados, já que, como nos neopagãos de hoje em dia, o ouvido dessa mulher não estava totalmente fechado. Ainda havia abertura, pois ela era habitada pelo desejo. E para ela serão revelados, progressivamente, os mistérios da oração “em espírito e verdade”. Existe um itinerário iniciático, muito bem construído por João, que leva das verdades adquiridas e relativas, contidas em nós, para a Verdade infinitamente mais elevada e vasta que nos contém.
Como numa espécie de séti­mo dia da criação, Jesus descan­sa. Cansado do caminho, ele Senta à beira do poço (4,6). San­to Agostinho diz que é Deus quem se cansou, pois está nessa estrada há séculos, milênios... em busca da humanidade. Deus está em busca do homem. Onde Ele poderia parar, pousar, repou­sar? No poço de nosso coração, na alma de cada um de nós. Tal­vez cada um já tenha vivido o essencial da experiência místi­ca e espiritual: a descoberta de que não somos nós, mas é Deus quem nos busca. Era Deus quem nos buscava esse tempo todo. Mas como é difícil deixar-se achar, deixar-se amar “tal como somos”. A estrada é longa até esse ponto da aceitação total.
E aproximadamente a sexta hora, meio-dia, em que o sol abrupto não deixa sombras, nem lugar para elas. E nessa hora da sede e do desejo. E nesse momento de uma luci­dez que deixa pouco lugar para as mentiras. E quando estamos na beira do poço, em nossa pior hora. É ali que Jesus nos espera. Na fonte (pegé) do nos­so ser. Onde a vida surge, na saída, na sua gratuidade. O poço é o símbolo do coração humano. A vida nos leva a des­cer nas suas profundezas para descobrir a fonte. Estar no fun­do poço exige silêncio. Sen­tar na beira do poço é ficar na escuta, em estado de resso­nância. E o que vamos escu­tar? O silêncio nos prepara para ouvir a voz que murmu­ra no fundo das águas: dá-me de beber. O silêncio nos traz essa experiência.
Paradoxo: a água pede de beber. Jesus é a fonte que tem sede de ser bebida. Corno en­tender esse chamado de Deus? A Fonte pede para ser reconhecida, pede tempo e atenção. Dá-me do teu silêncio, da tua solidão. Essa é nossa água, que podemos ofertar a Deus. Quem está disposto a dedicar para Deus uma parte do tempo de silêncio que entrega à televisão? Deus pede nosso silêncio, atenção e contemplação. É sempre uma surpresa ser cha­mado do fundo do Ser. Sentir-se esperado, desejado, por um Si que é mais que o nosso si-mesmo. Por um Todo Outro que si-mesmo. Pelo Desconhe­cido das profundezas. E desse primeiro despertar nasce o es­panto: Por que eu? Por que “mim”? Isso é outra história, outro paradoxo, que a samari­tana também vai descobrir. Mas hoje nos basta o convite a um pequeno voto de silêncio, como entrega gratuita a um Deus que, no fundo de nosso coração, pede de beber.
Evaristo Eduardo de Miranda “Corpo: Território do Sagrado” ed. Loyola

Nenhum comentário: