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Mosaico Ravenna, séc. VI |
A Palavra de Deus nos faz dar um pequeno passo atrás para desvelar-nos, através do Evangelho de Mateus, o que aconteceu antes do que nos é contado duas vezes em dois dias durante esta semana: a traição de Judas, o qual «foi ter com os sacerdotes e disse: “Quanto me dareis para que eu o entregue?” (Mt 26,14-15). Somos colocados diante de um abismo, não somente do coração humano, mas do abismo ainda mais insondável do coração de um discípulo, do nosso coração de discípulos. Não terminaremos nunca de refletir e interrogar-nos o suficiente sobre as motivações profundas que levaram Judas a trair seu Mestre e, talvez, até mesmo, sem dar-se contas de que o traía. Foram muitos os escritores e os artistas que buscaram imaginar e explicar este gesto de absoluta negação de qualquer relação.
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óleo sobre tela, Caravaggio, séc. XVII, Dublin. |
A palavra do Senhor Jesus não intervém para prevenir ou bloquear a traição de Judas, mas simplesmente toma posição para não deixar o discípulo sem saber o que verdadeiramente está acontecendo, antes de tudo e acima de tudo, no profundo de seu coração. Judas se apresenta aos sacerdotes com uma proposta: «... para que eu lhes entregue», e ainda: «... buscava a ocasião propícia de entregar Jesus» (26,16). O Senhor Jesus, na solene e comovente moldura da ceia pascal, preparada com cuidado não somente particular, mas único, esclarece a todos – e sobretudo a Judas – aquilo que está verdadeiramente acontecendo. De tal modo se revela que o que está sucedendo é o que deve suceder: «Em verdade em verdade vos digo: um de vós me trairá» (26,21). Judas pensa entregar o Mestre, o Senhor Jesus revela ao discípulo que não pode entregar o que já se entregou livremente. Por isto, Judas, na total confusão de seu coração perdido e obscurecido, coloca, com uma certa ingenuidade e sinceridade, a pergunta: «Rabbí, talvez sou eu?» (26,25). Judas pensa que está entregando – o jogo de palavras nas línguas antigas é fortíssimo – e é informado por Jesus que é um traidor; Judas pensa ser o sujeito do seu ato de entregar, que parece quase um último movimento de protagonismo possível contra o sempre mais claro anti-protagonismo histórico do Mestre, e descobre, ao invés, que é sujeitado, no senso de ser um prisioneiro da sua desilusão e de sua raiva, que o transformaram em um instrumento mais do um protagonista.
Na realidade, o verdadeiro drama de Judas, que arrisca ser o nosso próprio drama, é aquele de não ter sido nunca um verdadeiro discípulo, por não ter aceitado o próprio lugar e papel. O que o profeta Isaias indica como a atitude própria do «discípulo» (Is 50,4) desaparece no apóstolo Judas, que na realidade dá um passo atrás no abrir «o ouvido» (50,5), preferindo perder-se na ilusão de poder até mesmo dirigir o destino de seu Mestre. O Senhor Jesus, esclarecendo e revelando que «o Filho do homem se vai, como está escrito sobre ele» (Mt 26,24), faz desabar a ilusão de Judas de ter assumido um papel na história.
A Palavra de Deus nos fala de um dos apóstolos que, a um certo ponto, decide não ser mais «discípulo»; o perigo de cair nesta mesma armadilha não é desprezível para nenhum de nós, para a própria Igreja, chamada a ser em tudo conforme o coração de seu Esposo e Senhor. Não devemos esquecer jamais que quando se vende alguém, na verdade, não se faz outra coisa que vender a si mesmo. Judas «vende» o seu Mestre pelo preço de um escravo ou de uma mulher. Judas tem necessidade de desprezar o Mestre para supervalorizar a si mesmo, mas o Senhor não é escravo, exatamente porque quer ser um servo. Aquele terrível «Ai» que nos aterroriza poderia ser traduzido por «coitado!». Judas escolhe entregar Jesus sem dar-se conta que Jesus se entrega por ele, para dar-lhe ainda um pouco de tempo para escutar verdadeiramente.
Semeraro, MichelDavide, Messa Quotidiana, Bologna aprile 2015, 19-21.