quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

02 O retorno do exílio


O retorno do filho pródigo, nos confessionários da Igreja da Divina Misericórdia, San Bartolomeo al Mare, Liguria, Italia

A parábola do filho pródigo nos mostra o tempo do arrependimento como o retorno do homem do exílio. O filho pródigo, como sabemos, partiu para um país distante, e lá dissipou tudo quanto possuia. Um país longínquo! Esta é a única definição da nossa condição humana, que devemos assumir e tornar nossa, quando começamos a encaminhar-nos na direção de Deus. Um homem que nunca tenha feito esta experiência , ainda que por breve tempo, que não se sentiu jamais exilado, longe de Deus e da verdadeira vida, não compreenderá jamais o que é o cristianismo. E aquele que se sente perfeitamente «em casa» neste mundo e na vida deste mundo, e que nunca foi ferido por uma saudade irrefreável de uma outra realidade, não compreenderá que coisa é o arrependimento.
O arrependimento é frequentemente identificado com uma enumeração fria e «objetiva» de pecados e transgressões, com a «confissão de culpabilidade» diante de uma acusação legal. Confissão e absolvição são vistas como atos de natureza jurídica. Mas esquece-se de uma realidade essencial, sem a qual nem a confissão, nem a absolvição tem o mínimo significado real ou a mínima eficácia: o sentimento de alienação de Deus, da alegria da comunhção com ele, da verdadeira vida que é criada e doada por Ele. É fácil, de fato, confessar que não jejuei nos dias prescritos, que esqueci-me das orações ou que fiquei muito irritado. Toda uma outra coisa é, ao contrário, render-me contas de que eu perdi e deturpei a minha beleza espiritual, que estou bem longe de minha verdadeira morada, da minha verdadeira vida, e que alguma coisa de muito precioso, de puro e de belo foi irremediávelmente quebrado na mesma trama de minha existência. Exatamente isto é o arrependimento, e somente isto, e por isso mesmo, é também um desejo profundo de retornar, de operar uma inversão de marcha, de reencontrar a casa perdida. Recebi de Deus riquezas maravilhosas: antes de tudo a vida e a possibilidade de desfrutá-la, de dar-lhe um senso, de enchê-la de amor e de conhecimento; depois, no batismo, a vida nova de Cristo mesmo, o dom do Espírito Santo, a paz e a alegria do Reino eterno. Recebi o conhecimento de Deus, e nEle, o conhecimento de todas as outras coisas e o poder de ser filho de Deus. E, tudo isso eu o perdi; tudo isto eu o perco continuamente, não somente nos «pecados» e nas «transgressões» particulares, mas no pecado de todos os pecados: desviando o meu amor de Deus, preferindo o «país longínquo» (lc 15, 13) à beleza da casa do Pai. (...)

Na liturgia da Igreja do Oriente, nas laudes do domingo do filho pródigo, canta-se o salmo 136, triste e nostágico, o salmo do exílio. Os hebreus o cantavam durante a sua prisão naBabilônia, lembrando-se de Jerusalém, a sua cidade santa. Este tornou-se, para sempre, o canto do homem que se dá conta de seu exílio longe de Deus e que, nesta processo de acordar, retorna a ser homem: um ser que não pode sentir-se plenamente satisfeito por nenhuma coisa neste mundo decaído, e que é, por natureza e vocação, um peregrino do Absoluto. Este salmo mostra a Quaresma como uma peregrinação e arrependimento, como retorno.

Schmemann, A., La grande Quaresima, 18-20.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

TQ 00 4 Converter ... em cinzas

Pecado em três momentos: Desobediência, culpando-se a si mesmos, fugindo de Deus.
Iluminura síria, séc. VI, Viena, Nationalbibliotek, ms Theol. gr 31 pictura I

Na oração, com a qual se abençoam as cinzas que serão impostas sobre a cabeça dos fiéis, no início da quaresma, elas são indicadas como «austero símbolo». Como cada símbolo, também as cinzas, com o qual a Igreja latina começa o tempo propício de conversão e de preparação para a Páscoa, tem a função de dar o quê pensar e fazer pensar: «Recorda-te que és pó...» é a fórmula mais tradicional que acompanha este gesto. 
A oração da Igreja não somente nos ajuda a ler o símbolo das cinzas, mas também a interpretá-lo na justa direção soteriológica[1] – como imagem da salvação – e certamente não como atitude de aniquilamento e esvaziamento do homem. A oração acompanha o coração do fiel para assumir o gesto da imposição das cinzas, de modo claramente orientado: «Para que, através do itinerário espiritual da quaresma, cheguem completamente renovados, a celebrar a Páscoa de vosso Filho» (oração da benção). A segunda oração opcional do Missal romano esclarece ainda melhor o horizonte interpretativo do símbolo, quando diz: «O exercício da penitência quaresmal obtenha-nos o perdão dos pecados e uma vida renovada, à imagem do Senhor ressuscitado». 
As cinzas nos revivem o drama das origens (Gn 3,19) e nos rememoram a divina reação ao drama da nossa liberdade, que não pode – nem poderá jamais – fugir do olhar do «teu Pai, que vê o que é secreto» (Mt 6,8). Aquele olhar que tinha acompanhado ternamente a nossa criação e a nossa inserção no mundo – apenas criado por amor a nós e para nossa alegria – fez-se cuidadosa e trêmula pergunta, própria de um coração amante: «Onde estás?» (Gn 3,9). Como explica Pe. Lassus: «É justamente esta voz que, cada ano, ressoa na manhã da quarta-feira de cinzas, quando nos vem recordada a brevidade da vida e o inelutável Dia. 
Não nos podemos mais esconder entre os ramos, nem mimetizar-nos com as folhagens, mas torna-se necessário apresentar-se nus na presença do Vivente»[2]. Neste sentido, a palavra do apóstolo, que nos apresenta este tempo nas vestes mais belas e atraentes de «um tempo favorável» próprio como «o dia da salvação» (IICor 6,2), pode ser acolhida como um convite para reduzir em cinzas todas as máscaras com as quais buscamos conter o «medo» (Gn 3,10) herdado de nosso pai comum Adão. E ainda, acolhendo a afirmação do profeta, que nos recorda como e quanto o nosso Deus «é misericordioso e benigno, tardo na ira e rico de benevolência, e que se compadece daquele que sofre» (Gl 2,13), podemos coroar nossa cabeça com as cinzas de todas as nossas falências, de nossas pobrezas e dos nossos desejos frustrados. Tudo isto que, normalmente temos medo de assumir, pode ser transformado – em virtude e sob o olhar «secreto» (Mt 6,18) do Pai de Jesus – em cinzas que, mesmo recordando nossos mais verdadeiros jejuns existenciais, são sempre cada vez mais, cinzas perfumadas, dignas de homens e mulheres do «rosto» (6,17) sempre mais conforme à «imagem do Senhor Ressuscitado» (oração da benção das cinzas). Não nos resta senão que recebê-las alegres e decididamente no caminho para enfrentar as etapas desta «santa viagem» (Sl 83,6).

Fra Michel Davide, in Messa quotidiana, febbraio 2009, EDB Bologna.
[1] Soteriológico é um tema que está relacionado diretamente com a missão de Salvação de Jesus Cristo. Soter quer dizer salvador.
[2] Lassus, L.-A., «Costruire sa fidélité», in Assemblées du Seigneur 13 1975, 50.