Adoro rituais. Eles me ensinam a descobrir o novo naquilo que sempre é. Rituais não se repetem. Não são círculos que se fecham em si mesmos, mas espirais que ascendem, em direção ao Magis.
Há possibilidade de rito ou mesmice em tudo o que fazemos e vivemos. Como professor, já preparei uma mesma aula e a ministrei (chique a palavra; ministrar) a diversas turmas, da mesma série, repetidamente. Para mim, cada uma daquelas aulas era um rito novo.
O segredo da novidade estava na interação com os alunos. O conteúdo era o mesmo, o esquema, até as brincadeiras que um bom professor introduz na sua fala para tornar a aula menos massante e pesada, mas a relação com o outro faz toda a diferença.
Naquela turma, há aquele aluno, sentado na fileira do canto, perto da janela. Quando começo minha aula, seus olhos brilham. Adivinho nele a curiosidade vital, cheia de perguntas instigantes, que desafiam o professor que sou a ser cada vez melhor.
Há o outro lado. A turma difícil, o aluno do fundão. Enquanto faço minha exposição, risos clandestinos cruzam o espaço entre as carteiras. Tenho que ficar atento à matéria, à forma como apresento a matéria e o escasso interesse de alguns dos ouvintes. É aquela aula da qual saio exausto, tenso, mas com a sensação de conquista, como quem acabou de enfrentar a escalada de uma montanha e chegou ao cume.
Há rituais que nos relaxam como uma sessão de massagem, outros que nos tensionam como uma reunião de condôminos para discutir as contas e despesas do prédio.
Em todos eles, sempre, o que faz diferença é a relação que estabelecemos com o outro.
Um rito eucarístico, por exemplo, pode ser uma experiência de profunda comunhão ou imensa solidão. A missa é encontro eclesial em torno de uma mesa. Nela, o Cristo se reparte e convida ao compartilhamento. Por isso se diz; “felizes os convidados para a ceia (ou a mesa) do Senhor...”.
A assembléia, então, se move em direção à mesa. Em procissão, as pessoas se aproximam, se tocam, convergindo para o mesmo ponto. A comunhão ali ritualizada é imagem e convite à comunhão a ser vivenciada no dia a dia.
Missas e outros ritos podem ser, também, uma experiência de isolamento e distanciamento. Ainda há pessoas que ali vão para cumprir uma obrigação, um preceito, de olho no relógio, pés e coração na direção da porta de saída. O outro, ao lado, é um incômodo. Há quem diga que é melhor ir à igreja quando ela está vazia.
Igreja vazia... o avesso da comunhão, a morte do ritual do encontro.
Mas há ritos, também, fora das igrejas. O sagrado é maior que templos ou instituições.
Ir à padaria, por exemplo, num sábado ou domingo pela manhã, bem cedinho, é um ritual sagrado que faço com prazer e gosto. A rua recém amanhecida, o sol se espreguiçando no berço de nuvens e montanhas do meu belo horizonte, o frescor da madrugada ainda presente, resistente, na brisa, nas folhas das árvores.
Fregueses madrugadores como eu, sempre os mesmos, as meninas atarefadas do outro lado do balcão, o pão quentinho, tostado, os sentidos todos atentos a essa inundação de cores, aromas, rumores, a água na boca diante da cesta de pães de queijo fumegantes...
Estendo a mão para escolher os mais atraentes. Um rapaz, ao meu lado, faz o mesmo gesto e esbarra em mim. Sorri, pede desculpas, dá um passo atrás.
- O senhor me desculpe, passei quase a noite toda acordado...
(Que mania as pessoas tem, de uns tempos pra cá, de me chamar de senhor...)
- Espero que tenha sido por uma boa causa! - brinca o menino moleque em mim.
- Mariana, dois meses, chorou a noite toda. Cólicas...
Num átimo, lembro-me das muitas noites mal dormidas ou indormidas, ao redor do berço dos meus três bebês, num ritual de fraldas a trocar, mamadeiras, massagens na barriguinha, funchicória na chupeta, o carinho sonolento, os passos titubeantes pelo quarto às escuras levando nos braços o tesouro maior da vida de um pai, de uma mãe.
- Ah, então foi por uma ótima causa!
Ele, num sorriso cansado mas sincero, entende e confirma:
- É, uma ótima causa a Mariana...
O rito não terminou. Na saída, passa por mim um senhor (outro) passeando com um cachorro. Não o conheço, nunca o vi. Mas nossos olhos se cruzam e ele entende e apreende em mim, num átimo, um sorriso de leveza e felicidade que sobrevive e transborda. Também sorri e me dá um raro e natural “bom dia”. Respondo com a mesma intensidade.
Pronto; aquele simples “bom dia” do sujeito anônimo foi o “Amém” que eu precisava para fechar o rito matinal que me tira do anonimato da cidade grande e me faz humano, entre humanos.
Sigo em frente, amanhecidamente humanizado, pronto para os outros tantos e muitos ritos do dia, dos dias, da vida que me espera e convida para celebrar a vida que vibra no sagrado cotidiano que se faz altar dos meus sonhos.
Prof. Eduardo Machado
Jornal de Opinião Edição 1133
Arquidiocese de Belo Horizonte/MG
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