A análise é do escritor e crítico literário
italiano Giorgio
Montefoschi, em artigo
publicado no jornal Corriere della Sera, 18-02-2013. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Sabemos que o pai, Louis Hillesum, é um
professor de latim e grego, tímido, interessado principalmente nos seus
estudos; que a mãe Riva (Rebeca) é de origem russa, emigrou para
a Holanda depois de um pogrom e tem um caráter difícil, marcada pela loucura;
que os dois meninos, Jaap, de 15 anos, e Mischa, de 11 (se
tornarão: um médico, e o outro, um refinado pianista), têm grandes problemas
psíquicos; e que Etty, a menina morena de 17 anos, que, com olhos
intensos, tem uma péssima relação com os pais e está passando pela "idade
ingrata" em que lutamos com nós mesmos.
Tudo isso, porém, tem uma importância relativa. O
que conta, no retrato fotográfico em que os Hillesum exibem com
confiança o seu decoro burguês, é a sua "normalidade": a
homogeneidade de milhões – desta vez – de famílias europeias não judaicas, mais
ou menos bem de vida, mais ou menos felizes. Passar-se-iam 12 anos, e os Hillesum,
sem saber naquele momento, juntamente com outros seis milhões de judeus ignaros
e inocentes, seriam varridos da face da terra.
O percurso espiritual de Etty Hillesum,
considerada por muitos como uma das almas mais elevadas do século XX, não pode
ignorar a tragédia do povo judeu. Provavelmente ela não teria ocorrido dessa
forma, ou até mesmo teria permanecido sem expressão – um "fácil
idílio" com Deus, cultivado atrás de uma escrivaninha, em uma cômoda sala
com muitos livros e sempre belas flores, e do lado de fora os quietos canais de
Amsterdã – se a sua vida não houvesse sido "jogada na dor".
Conhecemo-lo através de um exíguo número de Lettere
[Cartas] (publicadas pela editora Adelphi), escritas principalmente do
campo de repartição de Westerbork, ao longo de um ano (de 14 agosto de
1942 a 7 de setembro de 1943: data da partida de Etty e dos seus para Auschwitz),
e por um interminável Diário de mais de 800 páginas compactas (publicado também
integralmente pela Adelphi), que vai do dia 8 de março de 1941 a 12 de outubro
de 1942: 17 meses, um tempo muito breve (como observado por Barban e por
Dall'Acqua), no qual a lagarta se torna borboleta e se cumpre uma
transformação incrível.
O dia 8 de março de 1941 marca um momento
fundamental na existência de Etty Hillesum: o encontro com Julius
Spier. Spier, judeu alemão de 54 anos, que se refugiou na Holanda depois de
ter deixado sua esposa e dois filhos, noivo de uma jovem garota, Hertha (que
emigrou para a Inglaterra em 1938), é uma psicoquirólogo (um psicanalista que
parte, para a sua análise, do estudo da mão), seguido na sua formação e
apreciado por Jung. Não é um homem bonito: é robusto, corpulento, mas
tem uma boca extremamente sensual e dois olhos que "transpassam o
tempo". Até aquele momento, antes de conhecê-lo, Etty viveu
desordenadamente: se formou sem entusiasmo em jurisprudência; teve experiências
sexuais e sentimentais que a deixaram insatisfeita (atualmente ela tinha um
relacionamento fixo com Han Wegerif, um senhor de nada menos do que 62
anos); desperdiçou os seus talentos. Agora, em determinados momentos, ela sente
que as suas ideias são "muito vagas, pendem como vestidos muito
largos" do seu corpo; em outros, gostaria de "desaparecer, se
dissolver, fundir-se harmoniosamente com a terra e o céu"; sofre pelo caos
que reina em si mesma; busca um homem para possuir por toda a vida e, ao mesmo
tempo, sabe que essa posse absoluta não é a posse do Absoluto; invoca a Deus,
que ela intui que está dentro de si mesma, mas tem a impressão de que é uma fonte
coberta por pedras e areia. Spier, que em Amsterdã tem um certo
sucesso, é o homem do destino. Os seus métodos terapêuticos, na verdade, são
(como destacam Barban e Dall'Acqua) bastante estranhos e, no
mínimo, discutíveis. Baseiam-se (além da leitura da mão) na convicção de que
corpo e alma estão estreitamente ligados e devem viver em harmonia. Para que os
seus pacientes possam alcançar essa harmonia, libertando-se das regressões e
dos medos que os bloqueiam, Spier faz uma luta com eles. Uma luta propriamente
dita: física, até mesmo violenta. É realmente um método estranho e, se
quisermos, no limite da deontologia médica: porque, quando a paciente é uma
mulher, é inevitável ou quase que da luta, do contato convulsivo dos corpos, se
passe para outros gestos, talvez para carícias relutantes. É exatamente o que
acontece com Etty, que muito logo se sente atraída Spier ("A
sua boca, de repente, era tão selvagem e demoníaca, e floresceu com
sensualidade (...) A carne, eu só queria a carne") e se apaixona. Mas Julius
– que é um homem culto, religioso, sensível e honesto no seu desejo para
fazer com que emerja em cada indivíduo a parte mais profunda e verdadeira do
seu ser – também se apaixona por Etty. Assim, entre os dois, se cria uma
situação extremamente complexa e contraditória, feita de pulsões eróticas e
inibições, explosões sentimentais e sentimentos de culpa (Spier não quer
deixar a sua namorada, Etty continua fazendo amor com Han, até
engravida e aborta), na qual, em essência, esse homem e essa jovem mulher que
poderia ser sua filha põem a si mesmos como um obstáculo (talvez necessário)
para conseguir um amor diferente, ao qual, no entanto, tendem cegamente como a
algo misterioso, ainda obscuro, indefinido. Enquanto isso, a situação dos
judeus piora. Em junho de 1942, são promulgadas também na Holanda as leis de Nuremberg:
começam as perseguições, as deportações. Os judeus devem ser aniquilados,
desaparecer. E eis que Deus chama. Desce no coração de Etty: onde já
habita. Um dia, de repente, Etty se encontra (não decidiu fazê-lo) ajoelhada no
meio da sala. Um dia, lê o trecho da Carta de Paulo aos Coríntios sobre
a caridade e sente que essas palavras são "como varas" na dureza do
seu coração. Novamente cai de joelhos. As ameaças e o terror crescem, as
barbáries se acumulam. E, lentamente, as pedras e a areia se erguem do coração
de Etty, e aquela fonte escondida brota com um poder inaudito. É o amor
de Deus: que Etty reconhece em todo ser humano, começando pelos seus
carnífices, e na vida. Uma vida que, mesmo nesse abismo de desespero, não
consegue deixar de considerar como plena de significado e maravilhosamente
bela. Uma noite, está no seu leito e, através da janela, olha para o céu e as
árvores. E escreve: "A guerra, os campos de concentração (...) tudo isso
existe, eu sei, mas, em um momento de abandono, eu me encontro no peito nu da
vida, e os seus braços me circundam tão doces e protetores, e as batidas do seu
coração eu ainda não sei descrever: tão lento e regular e tão doce, quase
abafado, nunca tão fiel, como se nunca tivesse que parar, e também tão bom e
misericordioso". Em outra página, ela escreve: "Acho a vida bela e me
sinto livre. Os céus se estendem dentro de mim, assim como acima de mim.
Acredito em Deus e nos homens, e ouso dizer isso sem falso pudor". Mais
adiante, ela escreve ainda: "Uma coisa é certa: deve-se contribuir para
aumentar a reserva de amor sobre esta terra. Cada migalha de ódio que se
acrescenta ao ódio exorbitante que já existe torna este mundo inóspito e
inabitável". Agora, os eventos progridem. Etty poderia se esconder,
fugir. Não o faz. Primeiro como empregada do Conselho Judaico, depois
como prisioneira destinada ao extermínio, entra no campo de Westerbork.
O que ela vê com os seus olhos, o que ouve com os seus ouvidos, é o horror:
fome, miséria física e mental, degradação, humilhação de todos os tipos,
crianças arrancadas dos berços, esposas separadas dos maridos para sempre. E,
todas as segundas-feiras, a chegada daquele trem composto por carros de gado
que é preciso encher com seres inocentes e que na terça-feira parte para a
morte. Etty não se isenta de nada. Spier morreu de câncer, e o
seu amor já é todo pelos outros: pelo seu próximo, sustentado por aquela fonte
que continua jorrando no seu coração. Mas Deus está no coração de todos.
"Uma coisa, porém, torna-se cada vez mais
evidente em mim", escreve Etty um dia, já diante da inevitabilidade
do seu destino, "isto é, que Tu não podes nos ajudar, mas que somos nós
que devemos Te ajudar, e desse modo ajudamos a nós mesmos. A única coisa que
podemos salvar nestes tempos, e também a única que realmente importa, é um
pequeno pedaço de Ti em nós mesmos, meu Deus. E talvez também possamos
contribuir para desenterrar-Te dos corações de outros homens. Cabe a nós Te
ajudar, defender até o fim a Tua casa em nós".
Estamos no auge do caminho espiritual dessa jovem
judaica que lia os Salmos e os Evangelhos: ajudar Deus. Uma ideia
maluca e revolucionária, como apontam Barban e Dall'Acqua, que
subverte a relação do ser humano com o seu Criador.
Etty Hillesum morreu
em Auschwitz em novembro de 1943. Do trem, ela conseguiu jogar um cartão
postal endereçado à sua amiga Christine van Nooten. Estava escrito:
"Deixamos o campo cantando".
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517842-etty-hillesum-reencontrar-a-vida-no-turbilhao-do-holocausto
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