Crucifixão branca, Marc Chagall, séc. XX. |
O Deus que ressuscitou Jesus dos
mortos é o mesmo que o «entregou» à morte de cruz. Já no abandono da cruz,
quando Jesus invoca «por quê?», Paulo vê a resposta a este grito: «Ele que não
poupou o seu próprio Filho, mas o deu por todos nós, como não nos dará todas as
coisas, junto com Ele?» (Rm 8,32). O Pai, como Paulo ressalta, abandonou e
entregou à morte o «próprio Filho». Ainda mais energicamente, Paulo sustenta
que «Deus o fez pecado a nosso favor» (2 Cor 5,21), e: «Ele se tornou maldição
por nós» (Gl 3,13). O Pai abandona o Filho «por nós», para se tornar, com isso,
o Deus e Pai dos abandonados. O Pai «dá» o Filho para se tornar, por meio dele,
o Pai daqueles que foram «entregues» (Rm 1,18ss.). O Filho é entregue a esta
morte para se tornar o irmão e o salvador dos condenados e amaldiçoados.
O Filho sofre a morte neste
abandono. O Pai sofre a morte do Filho. À morte do Filho, responde, pois, a dor
do Pai. E, se nesta viagem ao inferno o Filho perde o Pai, em tal juízo, também
o Pai perde o Filho. É colocada em jogo a vida mais íntima da Trindade. Aqui, o
amor do Pai, que se comunica, torna-se dor infinita pelo sacrifício do Filho.
Aqui o amor do Filho, que responde ao Pai, torna-se sofrimento infinito, por
ter sido rejeitado e repudiado pelo Pai. O que acontece no Gólgota atinge a
divindade até a sua profundidade, e conota, pois, a vida trinitária na
Trindade.
Segundo Gl 2,16, porém, o Filho
não foi somente entregue pelo Pai; também ele «deu-se a si mesmo, por mim». No
acontecimento desta «doação», ele não é somente objeto, mas também sujeito. A
sua paixão e morte foram uma passio
activa, uma estrada que ele segue em plena consciência, uma morte que ele
aceita. Segundo o hino cristológico que Paulo retoma em Flp 2, a auto doação do
Filho consiste no seu despojar-se da imagem divina, no seu assumir a figura de
servo, no seu humilhar-se e tornar-se «obediente» até a morte de cruz. Pela
carta aos Hebreus (5,8), ele «aprendeu a obediência através das coisas que
sofreu». Paradoxalmente, sofreu pela oração não atendida, pelo abandono do Pai.
Assim, ele «aprendeu» a obediência e o sacrifício. E isto, em plena sintonia
com a exposição sinótica da história da paixão.
Do ponto de vista teológico,
isto significa uma profunda conformidade de vontade entre o Filho entregue e o
Pai que o entrega. Exatamente este é o conteúdo do relato do Getsêmani. Mas, a
profunda comunhão de vontades tem a sua origem no momento da mais ampla
separação do Filho do Pai e do Pai do Filho, na morte de maldição sobre a cruz,
na «noite escura» desta morte. Sobre a cruz, Pai e Filho são de tal modo
separados um do outro, que se interrompem também as relações que os unem. Jesus
morre «sem Deus». Sobre a cruz, porém, Pai e Filho estão de tal modo unidos, ao
ponto de expressar um único movimento de doação: «quem vê o Filho, vê o Pai»
(Jo 14,9). (...)
Paulo interpretou o
acontecimento do abandono na cruz, da parte do Pai, como sacrifício do Filho e
o sacrifício do Filho como amor de Deus. Aquilo que é o amor de Deus, «do qual,
nada poderá nos separar» (Rm 8, 39), realizou-se sobre a cruz e sobre a cruz
vem experimentado. Aquele Deus que envia o próprio Filho nos abismos e nos
infernos do abandono de Deus, da maldição de Deus e do juízo final, no seu
Filho tornou-se, em todos os lugares e continuamente, presente aos seus. Dando
o Filho, ele doa «todas as coisas», e «nada» poderá jamais nos separar dele.
J. Moltmann, Trinità
e Regno di Dio, 92-93
Um comentário:
Nunca havia refletido que a paixão de Cristo, além de um ato de amor aos homem foi um ato perfeito de amor ao Pai! Maravilhoso, Dom Ruberval!
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