terça-feira, 8 de março de 2011

06 Cacos para um mosaico



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Nesta madrugada de carnaval, enquanto no país se desfilava pelos grandes sambódromos, líamos as atas do martírio destas duas santas africanas dos primeiros séculos, Perpétua e Felicidade. Mães de família, cristãs autênticas, de quem o narrador, vencido pela força de sua personalidade, diz que só puderam ser mortas porque decidiram morrer. O relato é belo, e conta de outros mártires também, num espetáculo de sangue e violência, a paz destas pessoas, de quem conseguiram arrancar tudo, menos o seu tesouro mais precioso: sua fé.
Muitas igrejas em Roma são adornadas com mosaicos antigos e belíssimos. Os pavimentos tem verdadeiros tapetes de mármores preciosos. Recordo-me que ficava muito impressionado diante destes arrebatadores pavimentos cosmatescos. Sabia que suas pedras eram reutilizadas de antigos monumentos romanos. Por isso, eram duplamente belos, no mínimo. Tinham adornado grandes palácios e templos romanos, e antes disso tinham vindo de muito longe, carregados por escravos, talvez de outros palácios e templos de outras culturas e religiões. Pedras de cores fortes, de belos veios, de resistente fascínio. Quando o império caiu, aos poucos, elas caíram juntas. A nova civilização surgia, e elas se levantaram com ela. Já eram fragmentos, fruto da decadência e dos terremotos, e foram artisticamente fragmentadas, agora com uma arte precisa, para que contassem aos olhos dos homens, os mistérios do cristianismo. Para mim, elas falavam de múltiplas formas, dentro do discurso de seu artífice e do seu próprio.
Encontrei um pequeno fragmento de um destes mosaicos, no lixo de uma igreja em restauração, no setor histórico de Roma. É pórfiro verde, e veio de muito longe, é muito duro e belíssimo. Ele estava sozinho, exatamente como eu, no dia em que o encontrei. Só Deus sabe em que desenho maravilhoso ele estava, o amor que recebeu de seu artífice, quando o escolheu para aquele exato lugar, onde sua cor e forma eram necessárias para traduzir o intraduzível. Muito mais tarde, ele voltou a fazer parte de um mosaico que realizei na capela do Santíssimo Sacramento da Catedral de Ponta Grossa, ele esperou - e as pedras sabem esperar - sua hora e sua vez!
Terminando o mosaico, lembrava do título e introdução do livro de Adélia Prado: “Cacos para um vitral”, prosa de uma das maiores poetisas da língua portuguesa. «Restos de poesia dão excelente prosa!» diz ela. A autora descreve os acontecimentos prosaicos da vida de uma dona de casa, como pedaços de vidro, coloridos e transparentes, que unidos, formam figuras e beleza inigualável. Nosso irmão, D. Beda, realizou vitrais extraordinários para nosso mosteiro, com restos de vidro colorido que ganhamos de uma firma de vitrais. Nas caixas são coisa poeirenta, mas nos conjuntos, iluminados e juntos, contam coisas que nenhuma palavra poderia conseguir.
Lembrava ainda de um comentário de uma amiga, que viu o mosaico sendo feito e me disse de um filme, onde uma mãe fazia um mosaico sobre uma mesa, com os cacos de toda louça que era quebrada por seus filhos, e que sua filha a criticava por essa mania bizarra, e depois de sua morte, decide continuar o mosaico da mãe...
Pensava em tantas existências que foram destroçadas por tragédias inevitáveis, por perdas irreparáveis, pensava em mim mesmo, feito em pedaços diante de algumas marteladas da vida, na escultura que ela vem realizando, descobri que os pedacinhos perdidos eram úteis! Que depois da desordem vinha a ordem, que a Segunda natureza, reconstituída, ficava mais bonita que a primeira. Que os fragmentos de realidades tão caras seriam úteis, sem deixar sua história para trás, apenas ocultando-a em seu redimensionamento, como meu pórfiro verde, que era feliz pelo que foi e viveu, e pelo que é e pelo que ainda será. Estar quebrado não é para nada agradável, e a sensação de estar separado em caixinhas, menos ainda. Mas descobri, no papel do artífice, o amor que ele tem por cada pedacinho de suas pedras. Ele aprende a amá-las, porque se não as conhece, não poderá descobrir seu melhor lado, aquele que ficará à mostra; outros 5 lados ficarão dentro da parede, cumprindo sua função também. Ele revela um mistério ao mesmo tempo que o vela. Os dedos do artífice passam continuamente pelas suas pedrinhas, até mesmo ferindo-se em suas pontas agudas. Seus olhos aprendem a contemplá-las, em seus variados lados, em suas cores. Todas são importantes, as bem comportadas (cubinhos ) e as “informais”, todas tem seu lugar, no seu tempo. Ele as ama, e reserva algumas para as tarefas especiais, ou porque são muito belas, ou porque são muito tortas.
No dia em que contemplamos, de novo, o martírio destes cristãos africanos, vidas despedaçadas, carnes e roupas rasgadas, batismo de sangue, ao mesmo tempo, vemos o conjunto maravilhoso do testemunho que deram. O Pai, o Eterno Artífice, com os dedos do Espírito Santo, deu forma com estes pedaços, ao belíssimo Rosto de Cristo que vive e sofre nos seus membros, ganha, mesmo perdendo, a batalha contra a superficialidade e o mal no mundo, e permanecem, diante de nossos olhos, obra prima da Criatividade Divina, no paradoxo dos acontecimentos humanos.



Cosmatesco é uma palavra que vem dos autores destes mosaicos, a família Cosmato, ou a sua corporação, responsável por muitíssimos trabalhos na Itália nos séculos XIII e XIV.