sábado, 23 de maio de 2015

Deus é Deus porque não tem nada

Hospitalidade de Abrãao, tempera sobre tela 64x172 cm. Monastero San Lorenzo, Amandola Itália 2015

«A verdadeira felicidade, a felicidade da pessoa, a felicidade do espírito, em suma, todas as felicidades que tem origem na inteligência e no coração, são bens que não podem ser possuídos. Quando se quer possuir a verdade, ela se perde. Quando se deseja fazer um monopólio dela, limita-se a uma caricatura, quando se queremos possuir o amor, nos tornamos estranhos a ele... Esta felicidade existe somente circulando, comunicando-se em uma desapropriação contínua.

A vida divina que é Trindade não pode ser possuída. Deus é, por excelência, aquele que não possui e não pode ser possuído, a anti-possessão como o anti-narciso. Ele é Deus justamente por este desapropriar-se...

A mais elevada expressão do cristianismo é a descoberta da Pobreza. É a intuição profunda, viva, irradiante da Pobreza de Deus... o Pai não tem nada, não é senão um olha para o Filho. O Filho não tem nada, não é senão um olhar para o Pai. O Espírito Santo não tem nada, não é senão uma aspiração para o Pai e o Filho. Deus é pobre, Deus não tem nada, Deus é Deus porque não tem nada...»
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[1] M. Zundel, À l’écoute du silence, Téqui, Paris 1979, pp. 66 e 101-103; citado in Bible Chrétienne II, 216.

terça-feira, 28 de abril de 2015

O pastor que ordenha a ovelha

Fragmento de Sarcófago romano, séc.III, Museo Pio Cristiano, Vaticano
A ordenha das ovelhas, imagem idílica da abundância paradisíaca, já presente no paganismo, vai conquistar outro significado. Na vida terrena dos patriarcas bíblicos, o leite é um nutrimento essencial e a eles é prometida uma terra «onde corre leite e mel» (Ex 3,8); a promessa é destinada a ser cumprida, em plenitude, somente no paraíso escatológico, onde «o leite escorrerá das colinas» (Gl 4,18). A imagem do leite tem uma dupla perspectiva: o fiel é, na Igreja, desde agora, nutrido com o leite, que é uma antecipação do paraíso (era este o significado da taça de leite com mel que se dava para beber aos neófitos, em alguns ritos batismais) e o será, de forma mais abundante, no além. «Não se poderia encontrar alguma coisa de mais nutritiva e mais doce que o leite; em todo elemento, o nutrimento espiritual lhe é semelhante; doce, porque é dado por graça; nutritivo, porque é vida»; é Cristo que «doa a nós, pequeninos, o leite do amor». « “Eu vos dei leite para beber”, significa: despejei o conhecimento que, partindo da catequese, vos eleva até a vida eterna». Ali teremos nutrimento perfeito, um leite perfeito «que nos foi prometido com o mel, no momento do repouso eterno»[1].
Fragmento de Sarcófago romano, séc.III, Museo Pio Cristiano, Vaticano
Perpétua, martirizada em Cartago em 202, na sua prisão se vê, em sonho, entrar no paraíso. «Subi e vi um imenso jardim e, no meio dele, sentado, um homem com os cabelos brancos, vestido de pastor. Era alto e ordenhava as ovelhas. Ao seu redor, estavam milhares de homens vestidos de branco. Levantou a cabeça, olhou-me e disse: “Bem vinda, minha filha”. Chamou-me e deu-me um pedaço do queijo que fazia. Tomei-o com as mãos unidas e o comi, e todos aqueles que o circundavam disseram: “amém!”. Com este som, despertei, mastigando ainda alguma coisa, que não sei que era, doce»[2]. Das ressonâncias litúrgicas podemos entender que o pastor é o Senhor e é a eucaristia, isto é, Deus mesmo, que Perpétua recebe, sob a forma sacramental, figurada no queijo daquele paraíso bucólico.
Pastor que leva o leite da ovelha. Afresco na Catacumba de S. Calixto, Roma, séc. III




[1] Clemente de Alexandria, Pedagogo 1, 36, 1-4; 40, 2.
[2] Paixão de Perpétua e Felicidade, 4.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O Cordeiro Pastor



«Justamente como ovelhas, estávamos nós perdidos; por isso Ele foi conduzido à morte como uma ovelha e, como um cordeiro, permaneceu calado diante dos tosquiadores. Como o pastor, quando vê as ovelhas dispersas, toma uma e a conduz para a pastagem escolhida, atraindo, assim, todas as outras, assim também o Verbo de Deus, tendo visto o gênero humano perdido, tomou e fez sua a forma de escravo, e com aquela forma, atraiu a si toda a humanidade, conduzindo, para as pastagens divinas, as ovelhas que pastavam mal e eram expostas aos lobos. Eis porque o nosso Salvador assumiu a nossa natureza, sofreu a paixão e ressuscitou»
Cirilo de AlexandriaSull’Incarnazione del Signore 28.
Igreja de San Clemente al Colosseo, Mosaico s. XIII, Roma, Itália.

domingo, 5 de abril de 2015

Descida aos infernos, Antiga homilia no Sábado Santo (S. IV)

Anastasis, Capela do Mosteiro de San Lorenzo, Amandola, Itália, 2012.
Que está acontecendo hoje? Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos.

Ele vai antes de tudo à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Faz questão de visitar os que estão mergulhados nas trevas e na sombra da morte. Deus e seu Filho vão ao encontro de Adão e Eva cativos, agora libertos dos sofrimentos.
Icone da Anastasis, Mosteiro da Ressurreição, Ponta Grossa Paraná, Brasil, 2002.
O Senhor entrou onde eles estavam, levando em suas mãos a arma da cruz vitoriosa. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, exclamou para todos os demais, batendo no peito e cheio de admiração: “O meu Senhor está no meio de nós”. E Cristo respondeu a Adão: “E com teu espírito”. E tomando-o pela mão, disse: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará.

Eu sou o teu Deus, que por tua causa me tornei teu filho; por ti e por aqueles que nasceram de ti, agora digo, e com todo o meu poder, ordeno aos que estavam na prisão: ‘Saí!’; e aos que jaziam nas trevas: ‘Vinde para a luz!’; e aos entorpecidos: ‘Levantai-vos!’
Eu te ordeno: Acorda, tu que dormes, porque não te criei para permaneceres na mansão dos mortos. Levanta-te dentre os mortos; eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra das minhas mãos; levanta-te, ó minha imagem, tu que foste criado à minha semelhança. Levanta-te, saiamos daqui; tu em mim e eu em ti, somos uma só e indivisível pessoa.
Por ti, eu, o teu Deus, me tornei teu filho; por ti, eu, o Senhor, tomei tua condição de escravo. Por ti, eu, que habito no mais alto dos céus, desci à terra e fui até mesmo sepultado debaixo da terra; por ti, feito homem, tornei-me como alguém sem apoio, abandonado entre os mortos. Por ti, que deixaste o jardim do paraíso, ao sair de um jardim fui entregue aos judeus e num jardim, crucificado.

Vê em meu rosto os escarros que por ti recebi, para restituir-te o sopro da vida original. Vê na minha face as bofetadas que levei para restaurar, conforme à minha imagem, tua beleza corrompida.

Vê em minhas costas as marcas dos açoites que suportei por ti para retirar de teus ombros o peso dos pecados. Vê minhas mãos fortemente pregadas à árvore da cruz, por causa de ti, como outrora estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do paraíso.

Adormeci na cruz e por tua causa a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado. Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança que estava dirigida contra ti.
Levanta-te, vamos daqui. O inimigo te expulsou da terra do paraíso; eu, porém, já não te coloco no paraíso mas num trono celeste. O inimigo afastou de ti a árvore, símbolo da vida; eu, porém, que sou a vida, estou agora junto de ti. Constituí anjos que, como servos, te guardassem; ordeno agora que eles te adorem como Deus, embora não sejas Deus.
Está preparado o trono dos querubins, prontos e a postos os mensageiros, construído o leito nupcial, preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados, abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde toda a eternidade”.
(PG43,439.451.462-463, Séc.IV)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

43 Quarta feira Santa: Judas, o obscuro


Mosaico Ravenna, séc. VI
A Palavra de Deus nos faz dar um pequeno passo atrás para desvelar-nos, através do Evangelho de Mateus, o que aconteceu antes do que nos é contado duas vezes em dois dias durante esta semana: a traição de Judas, o qual «foi ter com os sacerdotes e disse: “Quanto me dareis para que eu o entregue?” (Mt 26,14-15). Somos colocados diante de um abismo, não somente do coração humano, mas do abismo ainda mais insondável do coração de um discípulo, do nosso coração de discípulos. Não terminaremos nunca de refletir e interrogar-nos o suficiente sobre as motivações profundas que levaram Judas a trair seu Mestre e, talvez, até mesmo, sem dar-se contas de que o traía. Foram muitos os escritores e os artistas que buscaram imaginar e explicar este gesto de absoluta negação de qualquer relação. 
óleo sobre tela, Caravaggio, séc. XVII, Dublin.
A palavra do Senhor Jesus não intervém para prevenir ou bloquear a traição de Judas, mas simplesmente toma posição para não deixar o discípulo sem saber o que verdadeiramente está acontecendo, antes de tudo e acima de tudo, no profundo de seu coração. Judas se apresenta aos sacerdotes com uma proposta: «... para que eu lhes entregue», e ainda: «... buscava a ocasião propícia de entregar Jesus» (26,16). O Senhor Jesus, na solene e comovente moldura da ceia pascal, preparada com cuidado não somente particular, mas único, esclarece a todos – e sobretudo a Judas – aquilo que está verdadeiramente acontecendo. De tal modo se revela que o que está sucedendo é o que deve suceder: «Em verdade em verdade vos digo: um de vós me trairá» (26,21). Judas pensa entregar o Mestre, o Senhor Jesus revela ao discípulo que não pode entregar o que já se entregou livremente. Por isto, Judas, na total confusão de seu coração perdido e obscurecido, coloca, com uma certa ingenuidade e sinceridade, a pergunta: «Rabbí, talvez sou eu?» (26,25). Judas pensa que está entregando – o jogo de palavras nas línguas antigas é fortíssimo – e é informado por Jesus que é um traidor; Judas pensa ser o sujeito do seu ato de entregar, que parece quase um último movimento de protagonismo possível contra o sempre mais claro anti-protagonismo histórico do Mestre, e descobre, ao invés, que é sujeitado, no senso de ser um prisioneiro da sua desilusão e de sua raiva, que o transformaram em um instrumento mais do um protagonista.

Na realidade, o verdadeiro drama de Judas, que arrisca ser o nosso próprio drama, é aquele de não ter sido nunca um verdadeiro discípulo, por não ter aceitado o próprio lugar e papel. O que o profeta Isaias indica como a atitude própria do «discípulo» (Is 50,4) desaparece no apóstolo Judas, que na realidade dá um passo atrás no abrir «o ouvido» (50,5), preferindo perder-se na ilusão de poder até mesmo dirigir o destino de seu Mestre. O Senhor Jesus, esclarecendo e revelando que «o Filho do homem se vai, como está escrito sobre ele» (Mt 26,24), faz desabar a ilusão de Judas de ter assumido um papel na história. 
A Palavra de Deus nos fala de um dos apóstolos que, a um certo ponto, decide não ser mais «discípulo»; o perigo de cair nesta mesma armadilha não é desprezível para nenhum de nós, para a própria Igreja, chamada a ser em tudo conforme o coração de seu Esposo e Senhor. Não devemos esquecer jamais que quando se vende alguém, na verdade, não se faz outra coisa que vender a si mesmo. Judas «vende» o seu Mestre pelo preço de um escravo ou de uma mulher. Judas tem necessidade de desprezar o Mestre para supervalorizar a si mesmo, mas o Senhor não é escravo, exatamente porque quer ser um servo. Aquele terrível «Ai» que nos aterroriza poderia ser traduzido por «coitado!». Judas escolhe entregar Jesus sem dar-se conta que Jesus se entrega por ele, para dar-lhe ainda um pouco de tempo para escutar verdadeiramente.
Semeraro, MichelDavide, Messa Quotidiana, Bologna aprile 2015, 19-21.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Elogio de Abraão - Soren Kierkegaard

Detalhe do Mural da História da Salvação, Cláudio Pastro, na Igreja do Mosteiro São Geraldo, Morumbi São Paulo.
  Se o homem não possuísse consciência eterna, se um poder selvagem e efervescente produtor de tudo, grandioso ou fútil, no torvelinho das paixões obscuras, existisse só no fundo de todas as coisas; se sob elas se escondesse infinito vazio que nada pudesse encher, que seria da vida senão o desespero? Se assim fosse, se um vínculo sagrado não cingisse a humanidade; se as gerações se não renovassem como se renovam as folhas das florestas; se umas atrás das outras se fossem extinguindo como o canto dos pássaros nos bosques, atravessando o mundo como a nave o oceano, ou o vento o deserto estéril e cego; se o esquecimento eterno, sempre esfomeado, tivesse força suficiente para lhe arrebatar a presa espiada, quão vã e desoladora seria a vida! Mas tal não é o caso. Do mesmo modo que formou o homem e a mulher também Deus formou o herói, o poeta ou orador. O poeta não pode cumprir aquilo que o herói realiza: só lhe resta admirá-lo, amá-lo e rejubilar com ele. Entretanto não é menos favorecido do que este porque o herói é, por assim dizer, o melhor de si mesmo, aquele de quem está enamorado, feliz por não ser herói, para que o seu amor seja feito de admiração. O poeta é o gênio da recordação. Nada mais pode fazer do que recordar; nada mais senão admirar o que foi cumprido pelo herói.

Ama-o também com amor igualmente fiel, porque também para ele, herói, o poeta é o melhor do seu ser, como débil recordação certamente, mas tão transfigurado como ele. Por isso não será esquecido daqueles que foram grandes. E, se é preciso tempo, se ainda as nuvens da incompreensão dissipam a figura do herói, virá todavia aquele que o amou e tanto mais fielmente se unirá a ele quanto maior for o seu atraso.

Não! Nada será perdido dos que foram grandes; cada um a seu modo e segundo a grandeza do objeto que amou. Porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos. A história celebrará os grandes homens, mas cada um foi grande pelo objeto da sua esperança: um engrandeceu-se na esperança de atingir o possível; um outro na esperança das coisas eternas — mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior. Os grandes homens hão-de sobreviver na memória dos vindouros, mas cada um deles foi grande pela importância do que combateu. Porque aquele que lutou contra o mundo, foi grande triunfando do mundo, o que combateu consigo próprio foi grande pela vitória que alcançou sobre si — mas aquele que lutou contra Deus foi o maior de todos. Tal é a suma dos combates travados na Terra: homem contra homem, um contra mil; mas aquele que luta contra Deus é o maior de todos. Tais são os combates deste mundo: um chega ao termo usando da força, o outro desarma Deus pela sua fraqueza. Viu-se os que se apoiaram em si próprios de tudo triunfarem e os outros, fortes da sua força, tudo sacrificarem — mas o maior de todos foi o que acreditou em Deus. E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor — mas Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a si próprio.

Pela fé Abraão abandonou a terra de seus maiores e foi estrangeiro na terra prometida. Abandonou uma coisa, a sua razão terrestre, por outra, a fé; se refletisse no absurdo da viagem, nunca teria partido. Pela fé foi estrangeiro na terra prometida onde nada evocava o que amou, onde a novidade das coisas imprimia na alma a tentação dum doloroso arrependimento. Contudo ele era o eleito de Deus, aquele em que o Eterno se revia! Em boa verdade, se fosse deserdado, banido da graça divina, teria compreendido melhor esta situação que parecia escarnecê-lo e à sua fé. Também houve no mundo quem vivesse desterrado da pátria amada. Não foi esquecido, como não se esqueceram as suas queixas entretecidas ali onde ele, na sua melancolia, procurou e encontrou o que tinha perdido. Abraão não nos deixou lamentos. Condoer-se alguém e chorar com o que chora é humano, mas é maior o que crê e mais reconfortante ainda contemplar o crente.

Pela fé Abraão obteve a promessa de que todas as nações da terra seriam abençoadas na sua posteridade. Passava o tempo, mantinha-se a possibilidade e Abraão cria. Passou o tempo, tornou-se absurda a esperança, Abraão acreditou. Por ele se viu no mundo o que era ter esperança. Passou o tempo, a tarde atingiu seu ocaso, e este homem nunca teve a covardia de a renegar; por isso jamais será esquecido. Conheceu depois a tristeza, e a amargura, em vez de o decepcionar como a vida, fez por ele tudo o que pôde e, nas suas esperanças, deu-lhe a posse da sua enganada esperança. Conhecer a tristeza é humano, humano ainda é partilhar do desgosto dos aflitos, mas crer é mais reconfortante do que contemplar o crente. Abraão não nos deixou lamentos. Não contou tristemente os dias à medida que o tempo passava, não observava Sara inquieto para ver se os anos cavavam sulcos no seu rosto, não parou o curso do sol para impedir o envelhecimento de Sara e com ela sua esperança. Para apaziguar o desgosto não entoou a Sara um triste cântico. Tornou-se velho e Sara foi escarnecida na sua terra. Contudo era o eleito de Deus e o herdeiro da promessa de que todas as nações seriam abençoadas na sua posteridade. Não valera mais que não fosse o eleito de Deus e o herdeiro da promessa de que todas as nações seriam abençoadas na sua posteridade. Não valera mais que não fosse o eleito de Deus? Que significa ser o eleito de Deus? É ver recusado o desejo de juventude na primavera da vida, para só obter tal favor na velhice, depois de grandes dificuldades. Mas Abraão acreditou e guardou firmemente a promessa a que teria de renunciar se houvesse vacilado. Teria dito então a Deus: Porventura não é da tua vontade que meu desejo se realize; renuncio ao meu voto, o único que contava para a minha felicidade; minha alma é reta e não guarda secreto rancor pela tua recusa. Não teria sido esquecido por isso, muitos se teriam salvo pelo seu exemplo, mas nunca chegaria a ser o pai da fé. Porque é grande renunciar ao mais querido voto, mas maior ainda é mantê-lo depois de o ter abandonado. Grande é alcançar o eterno, mas maior ainda é guardar o temporal depois de a ele ter renunciado. Os tempos foram cumpridos. Se acaso Abraão não acreditasse, Sara morreria sem dúvida de desgosto, e ele, roído de tristeza, não compreenderia a graça, e dela teria sorrido como de um sonho de juventude. Mas Abraão acreditou e, por isso, se manteve jovem, porque aquele que espera sempre o melhor envelhece na decepção e o que aguarda sempre o pior mais depressa se gasta, mas o que crê conserva eterna juventude. Bendita seja, pois, esta história! Porque Sara, em avançada idade, foi ainda suficientemente jovem para desejar as alegrias da maternidade, e Abraão, apesar dos seus cabelos brancos, foi suficientemente jovem para desejar ser pai. À primeira vista o milagre parece consistir em o sucesso se verificar segundo a sua esperança, mas, no profundo sentido, o prodígio foi Abraão e Sara terem sido bastante jovens para desejar; foi a fé que manteve neles o desejo e, com ele, a juventude. Ele viu a satisfação da promessa e obteve-a pela fé e isso sucedeu em concordância com a promessa e segundo a fé: porque Moisés golpeou a rocha com a sua vara mas não acreditou.
Detalhe do Mural da História da Salvação, Cláudio Pastro, na Igreja do Mosteiro São Geraldo, Morumbi São Paulo.


Houve então alegria na casa de Abraão e Sara foi a esposa das bodas de ouro.

No entanto, esta felicidade não duraria muito; uma vez mais Abraão devia ser posto à prova. Tinha lutado contra esse manhoso poder a que coisa nenhuma escapa, contra o inimigo que, ao longo dos anos, não cessa de vigiar, contra o ancião que a tudo sobrevive, tinha, enfim, lutado contra o tempo e conservado a fé. E Deus pôs Abraão à prova e disse-lhe: toma o teu filho, o teu único filho, aquele que amas, Isaac; vai com ele ao país de Morija e, ali, oferece-o em holocausto sobre uma das montanhas que te indicarei.
Detalhe do Mural da História da Salvação, Cláudio Pastro, na Igreja do Mosteiro São Geraldo, Morumbi São Paulo.



Estava tudo perdido. Oh! Desgraça terrível, maior ainda do que o desejo que nunca foi atendido! Assim o Senhor se divertia com Abraão! Eis que, depois de ter realizado milagrosamente o absurdo, queria agora ver sua obra reduzida a nada. Que loucura! Mas Abraão não se riu, como Sara, quando a promessa lhe foi anunciada. Setenta anos de fiel expectativa para tão curta alegria da fé satisfeita! Quem é, pois, aquele que arranca o bastão das mãos do ancião, quem é ele para exigir que o velho pai o quebre por si mesmo! Quem é ele, para tornar inconsolável um homem de cabelos brancos, exigindo-lhe que seja instrumento da própria infelicidade! Não há compaixão por tão venerável ancião nem pela inocente criança! E no entanto Abraão era o eleito de Deus e era o mesmo Senhor que lhe infligia a provação. Tudo então se ia perder!
Ilustração de Gocha Kakabadze Art

O renome magnífico da raça futura, a promessa à posteridade de Abraão, tudo isso não passara de fugitivo clarão divino que ele devia apagar agora. Esse fruto magnífico tão antigo como a fé no coração do patriarca, e anterior em muitos anos a Isaac, esse fruto da vida de Abraão, santificado pela oração, amadurecido na luta, essa bênção nos lábios do pai, esse fruto, ia ser-lhe arrebatado e perder todo sentido: que sentido, na verdade, podia encerrar a promessa, quando se impunha sacrificar Isaac! Hora de tristeza essa, e ditosa apesar de tudo, em que Abraão levantando pela última vez a testa venerável, resplandecente como a do Senhor, deveria dizer adeus a tudo quanto amava, recolhendo o espírito para dar a bênção cuja virtude se prolongaria por toda a vida de Isaac — essa hora não chegaria nunca! Porque Abraão deveria dizer adeus ao filho, permanecendo cá embaixo; separá-los-ia a morte, mas fazendo de Isaac a sua presa. No leito de morte, o ancião não podia estender alegremente a mão ao filho para o abençoar, mas, cansado da vida, erguer o braço sobre ele em gesto assassino. E Deus punha-o à prova. Desgraça! Desgraça para o mensageiro portador de tal notícia. Quem ousava ser o emissário de tão grande desolação? Mas era Deus que o punha à prova.

Relevo na Igreja Santa Maria Maggiore, Tuscania, séc. XIII

A sua fé se reportasse à vida futura, ter-se-ia, com facilidade, despojado de tudo, para sair prontamente dum mundo a que já não pertencia. Mas não era desta espécie a fé de Abraão, se acaso isso é fé. A bem dizer não se trata aí de fé, mas apenas de remota possibilidade que adivinha o seu objeto no horizonte longínquo, embora dele separado por um abismo onde se agita a desesperação. Mas a fé de Abraão era para esta vida; acreditava que iria envelhecer na sua terra, honrado e benquisto do seu povo, inolvidado pela geração de Isaac, o seu mais caro amor nesta vida, a quem abraçava com afeto tal que é insuficiente dizer que cumpria fielmente o dever de pai segundo o espírito do texto: o filho a quem amas. Jacó foi pai de doze filhos e só a um amou; Abraão teve somente um, aquele a quem amava.
Detalhe do Mural da História da Salvação, Cláudio Pastro, na Igreja do Mosteiro São Geraldo, Morumbi São Paulo.
Mas Abraão acreditou sem jamais duvidar. Acreditou no absurdo. Se tivesse duvidado, agiria de outro modo, teria mesmo realizado um ato magnífico. Acaso poderia ter feito outra coisa? Dirigir-se-ia à montanha de Morija; partida a lenha, teria acendido a pira, puxado da faca e gritado assim a Deus: Não menosprezes este meu sacrifício; de todos os meus bens não é este o mais precioso, bem o sei; que significa de fato a vida de um velho em comparação com a do filho da promessa? Mas é o melhor que posso oferecer-te. Faze com que Isaac nunca de tal se aperceba para que a juventude o conforte. Depois enterraria a faca no próprio peito. O mundo tê-lo-ia admirado e nunca o seu nome seria esquecido; mas uma coisa é suscitar justa admiração e outra ser a estrela que guia e salva o angustiado.

Mas Abraão acreditou. Não rogou para enternecer o Senhor a seu favor; nunca se antecipou em súplicas senão quando o justo castigo desabou sobre Sodoma e Gomorra.

Lemos na Escritura: E Deus pôs Abraão à prova e disse-lhe: Abraão, Abraão, onde estás? E Abraão respondeu: estou aqui! Tu, a quem o meu discurso se dirige, fizeste outro tanto? Não clamaste às montanhas escondei-me! e às vertentes desabai sobre mim quando viste chegar de longe os golpes do destino? Ou se foste mais forte, não te preguiçou o pé ao avançar pela boa senda? Não suspiraste ao recordar os antigos caminhos? E quando soou o momento da chamada, guardaste silêncio ou respondeste, talvez muito baixo, num murmúrio? Abraão, porém, não respondeu assim; alegre e corajosamente, pleno de confiança e em voz cheia exclamou: Aqui estou! — Lê-se ainda e Abraão levantou-se muito cedo. Apressou-se como quem vai para uma festa e, de madrugada, avança para o local designado, na montanha de Morija. Nada disse a Sara nem a Eliezer: de resto quem o compreenderia? E a tentação, por natureza, não lhe havia imposto voto de silêncio? — Partiu a lenha, amarrou Isaac, acendeu a pira, tirou a faca! Meu caro auditor! Muitos pais, ao perder seu filho, julgaram ficar sem o mais precioso tesouro do mundo e despojados de toda a esperança futura; mas nenhum foi o filho da promessa no sentido em que Isaac o foi para Abraão. Muitos pais perderam os filhos; mas perderam-nos pela mão de Deus, pela insondável e imutável vontade do Todo-poderoso. Outro é o caso de Abraão. Prova mais dura lhe estava reservada; a sorte de Isaac encontrava-se na sua mão ao empunhar a faca. Tal era a situação do ancião diante da sua única esperança! Mas ele jamais duvidou, não relanceou o olhar angustiado à direita e à esquerda, não importunou o céu com súplicas. Sabia que o Todo-poderoso o punha à prova, sabia que este era o sacrifício mais duro que se lhe podia exigir, mas sabia também que nenhum sacrifício é demasiadamente pesado quando Deus o pede — por isso puxou da faca.
Sacrifício de Abraão, Caravaggio, 1603. Galleria degli Uffizi, Firenze, Itália.



Quem foi que deu força ao braço de Abraão? Quem lhe manteve a mão direita erguida e a impediu de cair de novo, impotente? Sente-se o espectador desta cena paralisado. Quem foi que deu força à alma de Abraão e o impediu de cegar a ponto de não ver Isaac nem o cordeiro? É o espectador desta cena que se sente cego. — No entanto é raro, sem dúvida, o homem que fica paralisado e sem ver e, mais raro ainda, o homem que relata com dignidade o sucedido. Todos nós o sabemos hoje: tratava-se de uma prova e de uma prova apenas.

Se, na montanha de Morija, Abraão tivesse duvidado, se, irresoluto, olhasse em redor, se, ao puxar a faca, por mero acaso, se apercebesse da presença do cordeiro, e se Deus lhe permitisse sacrificá-lo em lugar de Isaac — então teria voltado para casa e tudo volveria ao que fora antes, teria Sara perto de si, conservaria Isaac e, apesar de tudo isso, que transformação! O regresso não passaria de fuga, a salvação mero acaso, a recompensa confusão e o seu porvir, talvez, a perdição. Não teria dado testemunho nem da sua fé, nem da graça de Deus, mas teria mostrado como é terrível subir a montanha de Morija. Abraão não seria esquecido, nem tão pouco a montanha de Morija. Ela seria então citada, não como o Ararat, onde descansou a arca, mas como um lugar de assombro: Foi ali — diriam — que Abraão duvidou.
Detalhe do Mural da História da Salvação, Cláudio Pastro, na Igreja do Mosteiro São Geraldo, Morumbi São Paulo.
Abraão, pai venerável! Quando de regresso a casa, vindo de Morija, não foi preciso dedicar-te um panegírico para te consolar duma perda: não é verdade que havias ganho tudo e conservado Isaac? Daqui em diante o Senhor nada mais te exigiu e viram-te bem feliz à mesa com teu filho, sob o mesmo teto, como lá em cima, para toda a eternidade. Abraão, pai venerável! Milhares de anos decorre-ram desde esses dias sombrios, mas não é necessário um tardio admirador para arrancar, pelo amor, a tua memória às potências do esquecimento, porque todas as línguas te recordam. E no entanto recompensas a quem te ama por forma mais magnânima do que ninguém; lá em cima o tornas bem-aventurado em teu seio, e cá embaixo cativas-lhe o olhar e o coração com o prodígio da tua ação. Abraão, pai venerável! Segundo pai do gênero humano! Tu que foste o primeiro a sentir e a manifestar essa prodigiosa paixão que desdenha a luta terrível contra a preciosa arremetida dos elementos e das forças da criação para combater contra Deus, tu que primeiramente sentiste esta paixão sublime, expressão sagrada, humilde e pura, do divino frenesi, tu que constituíste justa admiração dos pagãos, perdoa a quem intentou cantar em teu louvor, se não soube bem desempenhar a sua tarefa. Falou humildemente, segundo o secreto desejo do seu coração; falou brevemente, como convinha; mas nunca esquecerá que te foram necessários cem anos para receber, contra toda a expectativa, o filho da velhice e que tiveste de puxar da tua faca para conservar Isaac — tão pouco esquecerá que, aos cento e trinta anos, não havias ido mais longe do que a fé.
Coleção Pensadores, Ed. Abril, São Paulo 1979, 200-209.
Tradução Maria José Marinho
Detalhe do Mural da História da Salvação, Cláudio Pastro, na Igreja do Mosteiro São Geraldo, Morumbi São Paulo.