terça-feira, 30 de abril de 2013

TP 05 4 O teu nome é Vinha, Aleluia!

Mural Capela do Colégio Santo Inácio, Salvador BA
O Senhor Jesus fala de si mesmo como a «verdadeira vinha» (Jo 15,1), e ele é a verdadeira vinha na qual todos os discípulos são chamados a dar furto como ramos fecundos que, para serem tais, devem aceitar que sejam não somente cuidados, mas também podados e purificados. Na primeira leitura, os Atos nos recordam um dos momentos mais delicados de toda a história da Igreja, quando o problema da circuncisão exige uma tomada de posição não fácil, e que pede que se coloque em primeiro lugar a fecundidade da vinha, não mais ligada ao sinal feito na carne, mas na circuncisão do coração, assim como os profetas de Israel já tinham muitas vezes anunciado. Intuir, compreender e assumir que alguns sinais – aquele da circuncisão é, certamente, o mais forte ainda hoje para a tradição hebraica – não são mais adequados, e possam chegar a ser, senão de impedimento, pelo menos de enfraquecimento do caminho da fé, é muito difícil e não é automático. Assim também, para a videira e os ramos, carregar a responsabilidade da mútua pertença não é sempre evidente.

Para o ramo permanecer enxertado na videira é questão de vida ou morte, e o Senhor Jesus, comparando-se à vinha, nos diz que ele quer não somente dar-nos a vida, mas dá-la em abundância. Por isso, se faz urgente, de nossa parte, pessoal e todos juntos, compreender quanto seja «necessário» (At 15,5) não «cortar» mas sim, permanecer, de modo a receber a linfa vital, para poder, por nosso lado, dar a vida através dos frutos de uma vida que se doa. O convite é urgente justamente porque é uma questão de vida ou morte: «Permanecei em mim e eu em vós» (Jo 15,4). Neste verbo existe uma noção d fidelidade e de fecundidade, e é justamente este «permanecer» que a circuncisão, sinal para os pais da aliança com Deus, na carne, faz-se sinal bem mais eficaz da aliança de Deus com quem quer que aceite deixá-lo entrar e operar na própria vida, mesmo quando «corta», e sobretudo quando «poda» (15,2).

Permanecer é uma escolha, e é uma escolha exigente e purificante, porque nos liberta da ilusão e da sugestão de uma autonomia, e nos recoloca em um dinamismo e um caminho de profunda e verdadeira comunhão: na realidade, não existe somente a videira, não existem somente os ramos, mas existe também a vinha que, juntos, somos chamados a formar. O olhar a uma vinha em pleno outono não pode ser senão entusiasmante, e mesmo assim, pode arriscar ser estetizante: o que se contempla de tão maravilhoso evoca o trabalho da colheita e o longo tempo de transformação da uva esmagada em bom vinho. Cada vez que nos aproximamos da eucaristia, a linfa divina escorre na nossa vida e a torna sempre mais ligada à própria vida de Cristo, sem a qual somos como ramos mortos e secos que produzem pouca chama, e por isso não servem nem para esquentar um pouco. Um Padre da Igreja exulta diante dos novos batizados e assim exclama: «Cristo, que é a divina vinha, germinou da tumba e produziu o fruto dos novos batizados, como outros tantos bagos de uva na sua Igreja»[1]. Permaneçamos ligados intimamente a Cristo, serenamente em comunhão uns com os outros, e assim o vinho não faltará para ninguém... jamais!

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, 2011, 235-237.




[1] ASTERIO IL SOFISTA, Omelie 14,1.

TP 05 3 O teu nome é Evangelho, Aleluia!


Evangeliário de Lindsfarne, séc. VIII

No centro da primeira leitura encontramos uma palavra que aquece sempre o coração: «Evangelho» (At 14,21). A experiência difícil que os apóstolos são obrigados a viver, e que leva Paulo até ser acreditado «morto» (14,19), não faz senão confirmar sua essência profunda. O núcleo do evangelho pode ser resumido na evocação da grande luta que devia ser sustentada, no interno da primeira comunidade dos fiéis, para poder acolher plenamente, e não simplesmente suportar, a ideia que a «porta da fé» (14,27) estava aberta para todos... mesmo aos «pagãos»! Talvez não consigamos imaginar facilmente o porquê de tantas fadigas para aceitar que pudessem ser admitidos, na comunidade, pessoas não provenientes do mundo hebraico, por mais complexo, composto e diversificado que ele fosse, em si mesmo. Na realidade, era muito difícil compartilhar um caminho de fé com pessoas que não tinham a mesma bagagem espiritual, um comum denominador, nutrido e formado na escola das Escrituras, com a mediação de uma língua, que era considerada sacra, de alguns costumes relacionais, e até mesmo alimentares, completamente desconhecidos e, para muitos, inaceitáveis.

Mesmo assim, o Evangelho foi capaz, não somente de superar estas dificuldades, mas de criar uma nova mentalidade compartilhada, mesmo que nem sempre coincidente. A releitura anual dos Atos dos Apóstolos no tempo pascal pode – talvez, deva – ser, para nós, a ocasião para verificar o nível de compatibilidade do nosso modo de sentir-nos, muitas vezes, assediados e, ainda assim, embaraçados, pelo necessário contato que devemos ter com os «pagãos» do nosso tempo. Se, no passado, isto se referia mais profundamente à esfera da crença e da prática religiosa, hoje, talvez, toca mais fortemente aspectos menos religiosos e mais antropológicos, ligados não a uma diversidade cultual, mas a uma fragmentação existencial e a escolhas de vida e de comportamento, que diversificam notavelmente a sensibilidade e a vida. A pergunta se faz sempre mais urgente, e talvez ainda mais obrigatória: «Como abrir a porta da fé aos novos pagãos, sem impor-lhes pesos inúteis, que arriscam ser incompreensíveis e, muitas vezes, até revoltantes, como poderia ser a circuncisão para um grego ou o comer carne de porco para um hebreu?

A pergunta é tanto grave como difícil de responder de modo claro, preciso e definitivo! Mesmo assim, não podemos, de nenhum modo, subtrair-nos desta responsabilidade, porque se é verdade que «devemos entrar no Reino de Deus através de muitas tribulações» (14,22), é também verdade que devemos continuamente alçar a «vela» (14,26) para não ficar fechadinhos em nossos portos. Diante deste desafio, o Senhor Jesus parece nos dizer, em primeiro lugar: «Não se perturbe o vosso coração e não tenhais medo» (Jo 14,27). Todavia nos recorda que somos chamados a conformar-nos, em tudo, ao modo no qual o Senhor manifestou ao mundo o seu amor pelo Pai, um modo que o tornou capaz de amar como o Pai. Agora, toca a nós ser evangelho para os nossos irmãos... mesmo aqueles que nos parecem assim tão «pagãos».

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, aprile 2013, 304-306.

domingo, 28 de abril de 2013

TP 05 1 Às Quartas feiras, milagre

Cirineu ajuda Jesus, Mural "Criação e Via Crucis" Cripta da Catedral de Ponta Grossa, PR. 1994
Aquela tarde perguntou a Gabriela – um dos pequenos personagens de um romance de Gerard Bessiere – seu amigo Jacinto:

– Que fez hoje na escola?

– Fiz um milagre – respondeu a menina.

– Um milagre? Como?

– Foi no catecismo.

– E, como foi que fez o milagre?

– Temos como professora a uma senhorita que está muito doente. Não pode fazer nada sozinha, somente falar e sorrir.

– E o quê aconteceu?

– A senhorita falava dos milagres de Jesus. E as crianças disseram: ‘Não é verdade que existam milagres. Porque se existissem, Deus já teria te curado’.

– E ela, quê disse?

– Disse: ‘Sim, Deus faz também milagres para mim’. E as crianças perguntaram: ‘Quê milagre Ele fez?’

– E então?

– Então ela disse: ‘Meu milagre são vocês!’ ‘Porque?’, lhe perguntamos. E ela disse: ‘Porque vocês me levam a passear, nas quartas-feiras, empurrando minha cadeira de rodas’. Compreendeu? Fazemos milagres todas as quartas à tarde. A senhorita disse também que haveriam muito mais milagres se a gente quisesse fazê-los.

– E você, gosta de fazer milagres?

– Gosto. Tenho vontade de fazer um montão deles. Primeiro pequenos. Quando eu crescer farei maiores.

– Todas as quartas?

– Quero fazê-los todos os dias, toda a vida.

– Não parece que a vida é também um milagre?

– Não. – disse Gabriela – A vida é para fazer milagres!

Gabriela tem razão, a vida é para fazer milagre, às quartas, às quintas e aos domingos. A vida não é para sentar-se esperando que Deus faça milagres espetaculares, não é para limitar-se a confiar que Ele resolva nossos problemas, mas para começar a fazer este milagre pequenino que Ele colocou já em nossas mãos, o milagre de amar-nos e ajudar-nos. Quê é mais milagroso, devolver a vista a um cego ou a felicidade a um amargurado? Será mais prodigioso multiplicar os pães do que saber reparti-los bem? Mais espetacular mudar a água em vinho do que o egoísmo em fraternidade? Se os homens dedicássemo-nos a construir milagres pequeninos na metade do tempo que gastamos em sonhá-los espetacularmente, seguramente o mundo já estaria caminhando muito melhor.

E o milagre de amar podem fazê-lo todos, crianças e grandes, pobres e ricos, sãos e enfermos. Prestem bem atenção, a um homem podem privá-lo de tudo, menos de uma coisa: de sua capacidade de amar. Um homem pode sofrer um acidente e não poder nunca mais andar, Porém não existem acidentes que nos impeçam de amar. Um enfermo mantém integral sua capacidade de amar: pode amar o paralítico, o moribundo, o condenado à morte. Amar é uma capacidade inseparável da alma humana, algo que conservará sempre, inclusive o mais miserável dos homens.

Somente no inferno não se poderá amar. Porque o inferno é literalmente isso: não amar, não ter nada para compartilhar, não ter a possibilidade de sentar-se junto a alguém e dizer-lhe: “ânimo!”.

Porém, enquanto vivemos não existem correntes que aprisionem o coração, a não ser as do próprio egoísmo, que é como uma antecipação do inferno. “Os verdadeiros criminosos – dizia Follereau – são os que passam a vida dizendo «eu» e sempre «eu»”.

E ao contrário, ali onde se ama, começou-se a construir alguma coisa do céu, com golpes de milagres. Definitivamente, os milagres, para Jesus, eram antes de tudo “os sinais do Reino”, e qual é o melhor sinal de um Reino de Amor total do que começar amando, com amores pequeninos como os de Gabriela e de suas companheiras de escola?

José Luiz Martin Descalzo, Razones para el Amor.

sábado, 27 de abril de 2013

TP 04 7 O teu nome é Extremidade, Aleluia!

Envio dos apóstoles às extremidades da terra, Mural superior, Umbertide, Itália, 2001.
Paulo toma, cada vez mais adequadamente, consciência da sua missão, e nos ajuda a ter sempre mais clareza sobre aquela que é a missão da Igreja como comunidade de fiéis: «Eu te coloquei para ser luz das gentes, para que leves a salvação até as extremidades da terra» (At 13,47). Trata-se não somente de se luz, mas de saber apontar a luz para que ilumine longe, iluminando um raio o mais amplo possível. Pode-se colocar a lanterna sob os próprios pés e não ver, na realidade, nada e ninguém, mas podemos usá-la para apontar para longe e descobrir novas presenças e abrir-se a novos encontros. Uma comunidade de fé que tem medo das «extremidades» arrisca não ser mais a Igreja de Cristo. Na primeira leitura de hoje somos colocados diante do próprio risco de perder o contato com a amplidão do dom da fé. O inestimável dom que recebemos nos impele a ser não guardiães que excluem, como se fôssemos “leões de chácara” ou os encarregados da segurança. O papel deles – e muitas vezes a sua glória e orgulho – é deixar a maior parte das pessoas de fora e deixar entrar somente uma mínima parte de privilegiados.

Este papel os faz sentir – um pouco pateticamente – mais próximos dos poderosos que eles deixam passar, sem darem-se contas de que, na realidade, estão mais próximos a quem, com tanta violência, não deixaram entrar, ao ponto de empurrá-los para fora. Não é assim para os discípulos do Ressuscitado, chamados a ser facilitadores e não porteiros rígidos e intransigentes. A evocação das «nobres senhoras piedosas», unidas aos «notáveis da cidade» que «suscitaram uma perseguição contra Paulo e Barnabé e os expulsaram de seu território» (13,50) perturba, justamente, o sono de nossa boa consciência. O perigo é que nós – justamente nós – arriscamos ser como eles e não como Ele! Frequentemente nos colocamos em defesa de nossas amadas fronteiras interiores e exteriores, esquecendo assim o apaixonado dever de não só testemunhar até as extremidades da terra, mas de sermos capazes de evangelizar as extremidades de nosso coração, até atingirmos os extremos confins dos corações de todos. Poderemos assim intuir melhor que coisa podemos e devemos pedir, em obediência à exortação do Senhor Jesus, que ainda uma vez repete: «Quem crê em mim, também ele realizará as obras que eu realizo e realizará outras maiores que estas, porque vou para o Pai», e acrescenta: «E qualquer coisa que pedireis em meu nome, eu a farei, para que o Pai seja glorificado no Filho» (Jo 14,12-13). Estas palavra são a reação do Senhor Jesus à súplica de Felipe: «Senhor, mostra-nos o Pai e basta» (14,8). A resposta do Senhor parece dizer que não basta e não deve bastar nunca. A graça da fé que recebemos é um convite constante a «extremizar-nos» continuamente, para dilatar, sem nunca estreitar, a luz do evangelho, que é para todos. Ai de nós se encolhermos o evangelho!

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, aprile 2013, 275-276.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

TP 04 6 O teu nome é Realização, Aleluia!

Cristo eixo do universo, Mausoléu de Gala Placídia, Ravena, séc. VI
Cara estrela, cada um de nós, tem seu lugar junto dele, garantido!
Paulo não teme proclamar, com uma certa insistência, alguma coisa que certamente não podia ser indolor aos seus ouvintes: «Os habitantes de Jerusalém, de fato, e os seus chefes não reconheceram Jesus e, condenando-o, cumpriram as vozes dos Profetas que se leem todos os sábados» (At 13,27). O «cumprimento» parece passar através da negação e da rejeição, mas se poderia dizer que isto não é indispensável, mesmo se muitas vezes, parece inevitável. Mesmo assim, esta palavra do apóstolo é muito importante, porque nos dá a possibilidade de não deixar-nos esmagar e desanimar pelas nossas próprias resistências à graça, transformando-as, assim, em autênticas ocasiões de graça. Paulo, com aquela paixão que o caracteriza, conclui dizendo que «a promessa feita aos pais se realizou» (13,32). Esta palavra é capaz de abrir-nos à esperança, porque podemos crer e esperar que, não obstante tudo e através de tudo, o desígnio de Deus vai se realizando na nossa existência e naquela de nossos irmãos, e então esta realização acontece apesar de nós e através de nossas próprias debilidades e resistências.

A palavra do Senhor Jesus, de particular ternura, não faz senão confirmar-nos na esperança de estar em um processo que conhecerá a sua realização: « Não se perturbe o vosso coração. Tende fé em Deus e tende fé em mi, também. Na Casa do meu Pai existem muitas moradas» (Jo 14,1-2). Em outras palavras, tem lugar para todos e talvez, ainda mias significativamente, existem vários modos para levar a cumprimento aquela graça que nos habita incondicionalmente, e bem mais profundamente que nossa percepção sensível. O Senhor não nos diz: «Eu digo a verdade». Mas diz de si mesmo: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» (14,6). Isto ressoa como um convite a aceitar compartilhar a aventura de um caminho, na certeza que ele chegará a uma realização, a qual, na verdade, já se realiza no presente de uma comunhão radical: «Eu vos tomarei comigo, para que onde eu estiver, estejais também vós»(14,3).

O nosso caminho, através dos dias da alegria pascal, torna-se, para o discípulos que somos e que estamos nos tornando, esperança de futuro; ele é marcado por um horizonte claro e desejável, que é a comunhão com o Cristo ressuscitado, a qual nos permite reatar todas as relações quebradas e feridas da nossa história. Diante de nós está, pois, um futuro assinalado pela esperança de poder se reencontrar, e de realizar o projeto de comunhão e de recíproca pertença. Esta certeza é o que pode dar ao nosso passo um caminhar mais sereno e alegre, pelo motivo de uma promessa amorosa que nos acompanha e nos atrai: «Vos tomarei comigo!». A pergunta de Tomé é legítima: «Senhor, não sabemos onde vais; como podemos conhecer o caminho?» (14,5). Na realidade, o que o Senhor nos revela através da figura do «onde» é o «como» de uma vida que se torna já aromatizada pelos perfume da ressurreição. Trata-se de começar a fazer exatamente como o Mestre: tomar conosco cada irmão e irmã que encontramos no caminho e transformar a história em uma caravana de esperança. Se pensamos bem, é verdade: «A promessa feita aos pais se realizou» (At 13,32).

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, aprile 2013, 265-267.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

TP 04 5 O teu nome é Cura, Aleluia!

São Marcos evangelista, mosaico do séc. XIII, Basílica de San Marco, Veneza, Itália.
Na festa do evangelista Marcos, que acontece no coração do tempo pascal, nos é dado reler um texto que nos é muito querido para a evocação das aparições do Ressuscitado e que também, curiosamente, corresponde justamente àquela parte que os exegetas modernos pensam não ser do evangelista identificado com o discípulo de Pedro (cf. 1Pd 5,13), mas de uma outra mão. E mesmo assim, é justo aqui que podemos captar a mensagem que nos permite compreender, de um modo mais profundo, o mistério e o papel dos evangelista na vida da Igreja, como diz o trecho evangélico que lemos nesta festa: «Estes serão os sinais que acompanharão aqueles que creem...» (Mt 16,17). No texto, estão elencados alguns, mas talvez se poderia acrescentar, justamente entre estes, também os evangelhos de cujo gênero, Marcos é o «inventor». De fato, através da leitura amorosa do evangelho, nunca faltou, ao longo dos séculos, a possibilidade de entrar em contato com o mistério de Cristo. Não se trata, pois, de conhecer as circunstâncias, as palavras e os gestos realizados por Jesus durante a sua vida, mas de ter acesso a uma relação com Ele, capaz de animar a nossa existência, até o pondo de transformá-la. De resto, é assim que o texto se conclui: «O Senhor agia junto com eles e confirmava a Palavra com sinais que a acompanhavam» (16,20). Se existe um momento, no qual, seguramente, «O Senhor agia junto com eles», é aquele no qual os evangelista, em solidão ou in solido com outros discípulos, redigiram os evangelhos, de cuja fonte continuamos a beber a nossa fé que, ao longo dos séculos e ainda hoje, continua a dar tantos frutos de caridade e de beleza. Talvez um dos traços mais característicos dos evangelistas - e pois também de Marcos – é a capacidade de fazer-se mediador de uma Palavra que salva, que cura, que ilumina, que orienta, que consola.

Tudo isto é possível somente se alguém é altamente sensível à exortação do apóstolo Pedro: «Revesti-vos todos de humildade uns para com os outros, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá a graça aos humildes» (1Pd 5,5). Se isto foi necessário para os evangelistas, o é ainda mais para nós que, do evangelho queremos viver. O tesouro do evangelho é confiado a corações frágeis e vacilantes, desde sempre. Como esquecer o versículo, precedente ao texto que lemos nesta festa, é uma reprovação feita aos apóstolos pela sua incredulidade... e isto não impede a Jesus de colocar-se em suas mãos, em seus corações, pensamentos, em seus gestos, para ser anunciado a todos... e hoje ainda está em nossas mãos, nos nossos corações, nos nossos pensamentos, nos nossos gestos. Não esqueçamos que anunciar o evangelho é um dom, antes e acima de tudo, para nós, e é na medida que ilumina e transforma a nossa vida é que pode ser dom para os outros, ao ponto de tornar-nos, também a nós, «sinais» para os outros: sinais capazes de designar, no sentido de referir-se a um Outro, para além de nós mesmos. Não se trata de fazer milagres, trata-se aceitar a ressurreição. O apóstolo Pedro, na primeira leitura desta festa, fala de «cura» (1Pd 5,7). O evangelho é a memória de como e de quanto Deus, no seu Filho Jesus, tenha tido tanto cuidado conosco, que nós, de agora em diante, podemos cuidar uns dos outros «com um beijo de amor fraterno» (5,14). O evangelho é a guia para aquele longo caminho que nos diz respeito, pessoalmente, um caminho através no qual nós aprendemos a deixar-nos guiar por Cristo Senhor, tornando-o presente na história e nos acontecimentos de nosso tempo.

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, aprile 2013, 257-259.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

TP 04 4 O teu nome é Serviço!

Os apóstolos parecem amadurecer sempre mais naquela que é a lógica do evangelho, e por isso, eles se mantém dóceis à obra do Espírito e sempre disponíveis a retomar continuamente o caminho. Esta disponibilidade aos sinais do Espírito comporta o saber mudar os próprios projetos, vivendo cada passo da própria existência naquela que poderíamos chamar, hoje, uma lógica de «serviço» (At 12,24). O primeiro sinal de uma autêntica atitude de serviço parece ser aquela de não concentrar-se demasiado sobre o que se deve dizer, mas falar e anunciar, estando atentos ao que deve ser escutado e o que deve ser acolhido. Assim, encontramo-nos em um momento muito importante no caminho da autocompreensão da comunidade dos fiéis: «Reservai para mim, Barnabé e Saulo, para a obra para a qual eu os chamei» (At 13,2). Evoca uma obra para a qual alguém está reservado, e à qual, eles devem dedicar o melhor deles mesmos e de suas energias, mas, na realidade, não especifica muito a que coisa isto possa ou deva servir precisamente.

O Senhor Jesus rejeita este regime de preto no branco, no qual continuamente somos chamados a oferecer, até o fim, o próprio serviço, sem sermos capazes de controlá-lo e digerí-lo. A motivação, se por um lado é simples, pelo outro, é muito exigente. Estar à serviço comporta a consciência de não ser, nunca e de nenhum modo, nem a origem, nem o próprio fim do próprio serviço: « Porque não falei por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, ele é quem me ordenou que eu devia dizer e falar» (Jo 12,49). Ainda mesmo quando o ministério da Palavra se torna o próprio chamado e o serviço específico, a escuta permanece a coisa mais importante e aquela que deve ser, de todas as maneiras, dominante.

É, de fato, a escuta que permite esta contínua passagem para a «luz» (12,46) na qual experimentamos a superação das trevas do nosso egoísmo e nos abrimos ao que nos está de frente, com uma disponibilidade, que se aproxima muito de uma sadia curiosidade. O texto dos Atos dos Apóstolos nos recorda não somente a disponibilidade generosa dos apóstolos em cumprir o «seu serviço» (At 12,25), mas também a sua abertura para mudar o serviço, aceitando que exigências novas – menos seguras e mais incertas – possam pedir uma medida, não somente renovada, mas até mesmo, maior. Todos nós somos «enviados pelo Espírito Santo» (13,4) na medida na qual aceitamos deixar-nos desestabilizar pelos seus apelos. Para poder acolhê-los é necessária uma medida abundante de oração e jejuns, através dos quais possamos abrir o ouvido de nosso coração aos apelos da vida, sem colocar nenhuma resistência. Somente assim poderemos compreender e viver a palavra do Senhor Jesus: «Porque não falei por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, ele é quem me ordenou que eu devia dizer e falar» (Jo 12,49).

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, aprile 2013, 248-249.

terça-feira, 23 de abril de 2013

TP 04 3 O teu nome é Pórtico, Aleluia!

Mosaico no Portal do duomo de Civiltà Castellana, 1210, Itália.
A imagem do «recinto» que nos acompanha nestes últimos dias, parece dar lugar, hoje, á imagem, não menos sugestiva, do «pórtico de Salomão» (Jo 10,23). Justamente quando fazemos memória de como e quando «os discípulos foram chamados, pela primeira vez, cristãos» (At 11,26), somos lembrados que isto não significa, de modo algum, ter medo de abrir-se, ao ponto de fechar-se em um gueto, mas, ao contrário, indica o crescer em uma disponibilidade e ter a coragem, sempre mais audaz, de viver no limiar. A comunidade dos fiéis busca imitar, em tudo, o seu Mestre e Senhor, o qual, mesmo «no inverno» (Jo 10,22) continua a caminhar e passear «no templo», mas não no fechado, e sim «no pórtico» (10,23). E não somente, mas, para os neófitos e para nós mesmos, sermos chamados e sermos cristãos significa ter consciência de uma relação única e profunda, que não fecha, mas continuamente abre e dilata sempre mais a relação, ao ponto de permitir que, no limiar, possamos encontrar os outros e tenhamos a oportunidade de deixar-nos encontrar, serenamente.

O Senhor Jesus afirma solenemente: «Eu e o Pai somos uma só coisa» (10,30) e aqui está a origem do seu ser de todos e com todos, para saber e amar, no pensamento de suas ovelhas, a ideia que «elas me seguem» (10,27) por um motivo simples, mas fundamental: «Eu dou a elas a vida eterna e não se perderão eternamente, e ninguém as arrancará de minha mão» (10,28). A discussão com os judeus não para, ao contrário, se aprofunda. Eles tem finalmente a coragem de lhe perguntar, sem muitos truques: «Até quando nos deixarás na incerteza? Se tu és o Cristo, dize-nos abertamente» (10,24). A resposta do Senhor busca levar seus interlocutores para além das palavras, para abrir-lhes ao acolhimento de uma realidade que é feita de presença, de encontro, de troca... ou seja, de vida: «Já o disse, e vos disse, e vós não acreditais; as obras que realizo, em nome do meu Pai, elas dão testemunho de mim» (10,25).

À luz desta conversa entre Jesus e os judeus, poderíamos buscar compreender melhor que coisa implique o ser «chamados cristãos» (At 11,26). Parafraseando a pergunta colocada pelos judeus a Jesus, não é difícil imaginar aquela que é colocada a nós, como seus discípulos, e que poderia soar assim: «Até quando nos deixareis na incerteza? Sois ou não cristãos?». A resposta a esta pergunta não pode senão fazer referimento, mais que a palavras ou fórmulas, à integridade de uma vida que se deixa inspirar pela lógica pascal de Cristo Senhor. Um dos elementos, não só característicos, mas fundamentais do nosso discipulado, é uma boa dose de «incerteza» que nos torna pessoas em busca, como todos, e que faz de nossa vida, seja a nível pessoal que eclesial, uma realidade de «pórtico». Sob um pórtico nós estamos tanto protegidos como expostos! Unamo-nos no passeio de Jesus, Senhor e Pastor de nossas vidas, mantendo-nos continuamente disponíveis para os encontros e, até mesmo, sermos perturbados. Pois quando se passeia, se presume que se tenha tempo para dedicar não somente a nós mesmos, mas também aos outros.

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, aprile 2013, 239-241.

domingo, 21 de abril de 2013

O Bom Pastor e Batismo



Mosaico de Galla Placídia, Ravenna, Italia 425.

O salmo 22 devia ser aprendido de memória pelos que seriam batizados e cantado durante o batismo, segundo um costume atestado já no séc. III: «O Senhor é meu Pastor, nada me falta. Sobre verdes pastagens me faz repousar, para as águas tranquilas me conduz...». Era explicado aos catecúmenos que as águas tranquilas eram a fonte batismal; as verdes pastagens, as Sagradas Escrituras; no versículo 5, o perfume evocava a unção dada durante o batismo e o cálice que transborda figurava a eucaristia que os neófitos recebiam, pela primeira vez, saindo do batistério. Não surpreende, pois, que a decoração dos batistérios paleocristãos reservasse amplo espaço às imagens pastorais e sobretudo àquela do Pastor que leva a ovelha; os iconógrafos o chamam geralmente «o Bom Pastor»; encontraremos sua imagem desde a primeira metade do séc. III, em Dura Europos e, em seguida, nos batistérios de Roma, Nápoles, Milão, Ravena. Sobre a figura do bom pastor se havia enxertado um rico ensinamento doutrinal[1].

«Eis aqui o tocador de cítara que Davi designava; hoje manifestou-se, porque tocou o coração dos seus e conseguiu produzir os sons que eram necessários para se dar a conhecer a todos»[1]. O instrumento de Davi, diz Quodvultdeus, é «a cítara realizada com a madeira da cruz, com as cordas da sua carne e de seus membros; quando a toca com o plectro do Espírito Santo, cumula todo vivente de bênçãos e obtém, imediatamente, expulsar (como Davi) o diabo do coração de seus inimigos»[2]. Fílon definia o profeta «instrumento sonoro do qual Deus toca invisivelmente as cordas com seu plectro»[3]. «Alma e corpo, instrumento das mil vozes», cada homem, quando é animado pelo Espírito Santo, por Deus, é «uma cítara, uma flauta, um templo»; «uma cítara pela sua harmonia, uma flauta pelo seu sopro, um templo pela sua razão, de modo que a primeira vibra, o outro respira e aquele, hospeda o Senhor»[4].



[1] Agostinho, Sermone 265 B.
[2] Quodvultdeus, Sulle promesse 2, 25, 52.
[3] Fílon de Alexandria, Quis rerum 259.
[4] Clemente de Alexandria, Protrettico, 1, 5, 4.




Oração da Ovelha perdida

Estátua do Pastor, Museo Pio Cristiano, Vaticano, séc III.

«Vem, Senhor Jesus, 
vem buscar o teu servo, 
vem procurar a ovelhinha cansada, 
vem, pastor […]. 
Vem sem necessitar de ajuda, 
sem se fazer anunciar; 
faz muito tempo que espera tua vinda. 
Sei que virás, porque “não esqueci tua vontade”. 
Vem sem bastão, 
mas só com teu amor e o teu espírito de doçura. 
Não hesites em deixar sobre os montes as tuas noventa e nove ovelhas, 
porque aquelas que estão sobre os montes 
não podem ser atacadas pelos lobos ferozes; 
no paraíso, a serpente pode machucar somente uma vez […]. 
Vem até mim, 
que sou assediado pelos ataques dos perigosos lobos. 
Vem até mim que, expulso do paraíso, 
estou ferido de mordidas e venenos da serpente, 
e me perdi longe de teu rebanho, 
que está lá em cima. 
Também me tinhas colocado lá em cima, 
mas os lobos da noite me afastaram do redil. 
Vem procurar-me, 
porque eu te procuro; 
encontra-me, toma-me e leva-me […]. 
Vem, pois, buscar a tua ovelha, 
não mandes os teus servos, 
não envies teus mercenários; 
vem tu mesmo […]! 
Toma-me nesta carne que é caída em Adão […]. 
Leva-me sobre a tua cruz, 
que é a salvação dos errantes, 
o único repouso dos fatigados, 
pela qual todos os que morrem viverão»
Ambrósio, Sul Salmo 118, 22, 28-30.

sábado, 20 de abril de 2013

TP 03 7 O teu nome é Santo, Aleluia!

Cristo, particular do afresco de Masaccio, séc. XVI, Igreja NSra do Carmo, Florença, Itália.
Poderíamos fazer, hoje, uma particular experiência de leitura ao contrário. Começamos da última palavra do evangelho hodierno para chegar, gradativamente, sempre neste sábado do tempo pascal, ao início da primeira leitura. Em um dos mementos mais delicados do quarto evangelho, encontramos, finalmente, a profissão de fé de Pedro, que nos sinóticos é evocada em tempos e circunstâncias diferentes: «Tu és o Santo de Deus» (Jo 6,69). Esta profissão de fé evoca a palavra com a qual o demônio debocha do Senhor na sinagoga, no manifestar-se do poder regenerador de vida da parte de Jesus de Nazaré (Mc 1,24). Aqui, esta mesma expressão tem todo um outro teor. Pedro não debocha e, em um momento de grande crise para o grupo que se formou ao redor de Jesus, eis que se delineia, pela primeira vez, e de modo muito significativo, o referimento aos «doze» (6,67). A estes, dos quais o evangelista João não narra nenhum momento de constituição ou eleição, diferente dos sinóticos, é colocada a questão mais exigente e embaraçante de todo o evangelho: «Quereis ir-vos também?» (6,67).

A liturgia não nos faz ler, neste dia, o outro referimento aos «doze» que se encontra a três versículos adiante desta solene evocação: «Por acaso não vos escolhi eu mesmo aos Doze? E mesmo assim, um de vós é um diabo! Ele falava de Judas, filho de Simão Iscariotes: este, de fato, planejava traí-lo, um dos Doze» (6,70). Tudo isto nos ajuda a compreender, de modo mais profundo, a palavra de Pedro, que reconhece em Jesus, «o Santo de Deus» e, justamente confessando isto, aceita continuar a seguir o Mestre, para aprender com ele a abrir-se a uma santidade difícil. Este tipo de santidade não é simplesmente observância de algum preceito particular ou prática de alguma devoção especial, mas um deixar-se nutrir pela companhia de Jesus, até o ponto de deixar-se transformar completamente, exatamente como faz o alimento que tomamos cada dia, para viver e não morrer. Se continuamos na leitura do texto, encontramo-nos confrontados pela reação dos «muitos discípulos» (6,60). Provavelmente, eles tinham sido entusiasmados pelo gesto da multiplicação dos pães e dos peixes e, ao mesmo tempo, profundamente escandalizados, porque sacudidos e interrogados pela atitude e pelo discurso de Jesus, depois que tinha realizado este sinal: «Esta palavra é dura! Quem pode suportá-la?» (6,60). Parece que o Senhor não esperasse outra coisa, para esclarecer a situação entre eles – ao que parece, não somente eram muitos, mas talvez, até mesmo demasiados – os que continuavam a segui-lo.

Olhemos a primeira leitura, na qual nos parece quase assistir o dinamismo contrário: a comunidade se dilata sempre mais, também por motivo dos sinais realizados pelos apóstolos, e Pedro levanta da morte «Tabitá» (At 9,40) depois de ter alçado de sua «maca» (9,33), Enéas. Mas, a primeira palavra da primeira leitura soa assim: «A Igreja estava em paz» (9,31). Parece que a paz que se vive no interno da comunidade seja o segredo da fecundidade da comunidade. A santidade se comunica e se revela através da paz.

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, aprile 2013, 207-209.