sábado, 25 de maio de 2013

Silêncio Litúrgico


«O silêncio não se restringe somente no plano das nossas palavras – escreve Madeleine Delbrêl: existe aquele da Palavra de Deus, do Verbo de Deus feito carne, para que possa ser gritada a Palavra de Deus por tudo aquilo que faz de um homem um homem, para que ela seja escrita mesmo na sua carne». Parece fazer eco ao convite da constituição Sacrosanctum Concilium (nº 30), que faz parte das disposições conciliares sobre a participação ativa dos fiéis: «Observe-se, também, no devido tempo, o sacro silêncio». Esta solicitação provém principalmente do desejo dos fiéis de interiorizar palavras e gestos das celebrações comunitárias. Reintroduzir «instantes de silêncio» significa favorecer o recolhimento, a meditação da Palavra ouvida, a oração interior de louvor e de agradecimento. É a instrução Musicam Sacram a indicar a função e a motivação de fundo do silêncio da liturgia: «Observe-se, no devido tempo. O sacro silêncio; por ele, de fato, os fiéis não são reduzidos a participar da ação litúrgica como estranhos e mudos espectadores: e sim se inserem mais intimamente no mistério que se celebra, em força das disposições internas, que derivam da Palavra de Deus que se escuta, dos cantos e das orações que se pronunciam e da união espiritual como o sacerdote que profere as partes que a ele cabem».

A introdução ao Lecionário disciplina este silêncio, prevendo os modos e os tempos. O silêncio deveria encontrar espaço depois da saudação, antes do ato penitencial, e preceder a proclamação da leitura: o leitor, pois, não deve subir ao ambão senão quando os ritos de introdução estiverem concluídos. Deste modo, a assembleia terá todo o tempo para sentar-se e predispor-se à escuta. São previstas breves pausas de silêncio entre as leituras: entre a primeira e o salmo responsorial; entre o salmo e a segunda leitura, entre esta e a aclamação ao evangelho. Neste caso, o diácono ou presbítero deverá esperar alguns instantes antes de levantar-se para a proclamação. Enfim, a liturgia da Palavra prevê uma pausa de meditação depois da homilia, para favorecer a interiorização das leituras e preparar a liturgia eucarística. Um último espaço de silêncio segue a comunhão. Caso singular, o silêncio abre a liturgia na Sexta-feira Santa: «O sacerdote e os sacros ministros chegam ao altar e, feita a reverência, prostram-se por terra, ou se ajoelham: todos, em silêncio, oram por um breve tempo». Como a liturgia, também o local da celebração deve ter um cuidado atento para os próprios espaços de silêncio, que se traduza em estar livre de excessivas decorações, dos múltiplos cartazes e frases escritas, de flores e plantas colocados sem critério, em qualquer lugar: não é multiplicando o número de enfeites, de fato, que se torna melhor o serviço da liturgia. Cultivar o silêncio representa, no fundo, uma explicação vivida do convite de Jesus a adorar o Pai em espírito e verdade(4,21.23-24). O silêncio, vivido com consciente profundidade na eucaristia, pode favorecer também uma «cultura do silêncio», uma espécie de hesicasmo moderno, que seria salutar, sobretudo na vida pessoal e nas relações sociais, nas quais, com frequência, dominam a agitação e a superficialidade: cultivar o silêncio significa exercitar-nos na atenção ao outro, examinar-nos para compreendermo-nos melhor e não nos fecharmos em nosso narcisismo, refletir sobre nossas escolhas e prever suas consequências. O silêncio cristão é, fundamentalmente, a consciência do mistério transcendente de Deus, revelado em Cristo: atitude adorante e maravilhado diante do Deus inefável, que revelando-se não dissolveu o seu mistério, mas o tornou participável.
Semeraro, MichelDavid, Messa quotidiana – agosto, Bologna 2010, 544-545. 

domingo, 19 de maio de 2013

TP 08 1 O envio do Espírito Santo


Ao dar a seus discípulos poder para que fizessem os homens renascer em Deus, o Senhor lhes disse: Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28,19)

Deus prometera, por meio dos profetas, que nos últimos tempos derramaria o seu Espírito sobre os seus servos e servas para que recebessem o dom da profecia. Por isso, o Espírito Santo desceu sobre o Filho de Deus, que se fez Filho do homem, habituando-se com ele a conviver com o gênero humano, a repousar sobre os homens e a morar na criatura de Deus. Assim renovava os homens segundo a vontade do Pai, fazendo-os passar da sua antiga condição para a vida nova em Cristo.

São Lucas nos diz que esse Espírito, depois da ascensão do Senhor, desceu sobre os discípulos no dia de Pentecostes, com o poder de dar a vida nova a todos os povos e de fazê-los participar da Nova Aliança. Eis por que, naquele dia, todas as línguas se uniram no mesmo louvor de Deus, enquanto o Espírito congregava na unidade as raças mais diferentes e oferecia ao Pai as primícias de todas as nações.

Foi por isso que o Senhor prometeu enviar o Paráclito, que os tornaria capazes de receber a Deus. Assim como a farinha seca não pode, sem água, tornar-se uma só massa nem um só pão, nós também, que somos muitos, não poderíamos transformar-nos num só corpo, em Cristo Jesus, sem a água que vem do céu. E assim como a terra árida não produz fruto se não for regada, também nós, que éramos antes como uma árvore ressequida, jamais daríamos frutos de vida, sem a chuva da graça enviada do alto.

Com efeito, nossos corpos receberam, pela água do batismo, aquela unidade que os torna incorruptíveis; nossas almas, porém, a receberam pelo Espírito.

O Espírito de Deus desceu sobre o Senhor como espírito de sabedoria e discernimento,espírito de conselho e fortaleza, espírito de ciência e de temor de Deus (Is 11,2). É este mesmo Espírito que o Senhor por sua vez deu à Igreja, enviando do céu o Paráclito sobre toda a terra, daquele céu de onde também Satanás caiu como um relâmpago (cf. Lc 10,18).

Por esse motivo, temos necessidade deste orvalho da graça de Deus para darmos fruto e não sermos lançados ao fogo, e para que também tenhamos um Defensor onde temos um acusador. Pois o Senhor confiou ao Espírito Santo o cuidado da sua criatura, daquele homem que caíra nas mãos dos ladrões e a quem ele, cheio de compaixão, enfaixou as feridas e deu dois denários reais. Tendo assim recebido pelo Espírito a imagem e a inscrição do Pai e do Filho, façamos frutificar os dons que nos foram confiados e os restituamos multiplicados ao Senhor.

Do Tratado contra as heresias, de Santo Irineu, bispo
(Lib. 3,17,1-3:SCh34,302-306)         (Séc.II)

sábado, 18 de maio de 2013

TP 07 7 A unidade da Igreja fala todas as línguas

Claustro do Mosteiro de Silos, séc. XIII, Espanha.


        Os apóstolos começaram a falar em todas as línguas. Aprouve a Deus, naquele momento, significar a presença do Espírito Santo, fazendo com que todo aquele que o tivesse recebido, falasse em todas as línguas. Devemos compreen­der, irmãos caríssimos, que se trata do mesmo Espírito Santo pelo qual o amor de Deus foi derramado em nossos corações.
        O amor haveria de reunir na Igreja de Deus todos os povos da terra. E como naquela ocasião um só homem, recebendo o Espírito Santo, podia falar em todas as línguas, também agora, uma só Igreja, reunida pelo Espírito Santo, se exprime em todas as línguas. Se por acaso alguém nos disser: "Recebeste o Espírito Santo; por que não falas em todas as línguas?" devemos responder: "Eu falo em todas as línguas. Porque sou membro do Corpo de Cristo, isto é, da sua Igreja, que se exprime em todas as línguas. Que outra coisa quis Deus significar pela presença do Espírito Santo, a não ser que sua Igreja haveria de falar em todas as lín­guas?"
        Deste modo, cumpriu-se o que o Senhor tinha prometi­do: Ninguém coloca vinho novo em odres velhos. Vinho novo deve ser colocado em odres novos. E assim ambos são preservados (cf. Lc 5,37-38).
        Por isso, quando ouviram os apóstolos falar em todas as línguas, diziam alguns com certa razão: Estão cheios de vinho (At 2,13). Na verdade, já se haviam transformado em odres novos, renovados pela graça da santidade, a fim de que, repletos do vinho novo, isto é, do Espírito Santo, parecessem ferver ao falar em todas as línguas. E com este milagre tão evidente prefiguravam a universalidade da futu­ra Igreja, que haveria de abranger as línguas de todos os povos.
        Celebrai, pois, este dia como membros do único Corpo de Cristo. E não o celebrareis em vão, se realmente sois aquilo que celebrais, isto é, se estais perfeitamente incorpo­rados naquela Igreja que o Senhor enche do Espírito Santo e faz crescer progressivamente através do mundo inteiro. Esta Igreja ele reconhece como sua e é por ela reconhecida como seu Senhor. O esposo não abandonou sua esposa; por isso ninguém pode substituí-la por outra.
        É a vós, homens de todas as nações, que sois a Igreja de Cristo, os membros de Cristo, o corpo de Cristo, a esposa de Cristo, é a vós que o Apóstolo dirige estas palavras: Supor­tai-vos uns aos outros com paciência, no amor. Aplicai-vos em guardar a unidade do espírito pelo vínculo da paz (Ef 4,2-3). Reparai como, ao lembrar o preceito de nos supor­tarmos uns aos outros, falou-nos do amor, e quando se referiu à esperança da unidade, pôs em evidência o vínculo da paz.
        Esta é a casa de Deus, edificada com pedras vivas. Nela o Eterno Pai gosta de morar; nela seus olhos jamais devem ser ofendidos pelo triste espetáculo da divisão entre seus filhos.
Dos Sermões de um Autor africano anônimo, do século VI
(Sermo 8,1-3: PL 65,743-744)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

TP 07 6 O Espírito é a novidade que age no mundo

Nos últimos tempos, que são os nossos, a potência escondida da ressurreição é o evento da novidade. Deveríamos reler os textos de S. Paulo relativos a esta energia[1] da ressurreição, que finalmente se difunde no mundo através do evangelho. Isto significa, para nós, que em cada evento o Verbo Incarnado, mundo novo, vem ao nosso mundo de morte. Ele entra na morte. Jesus realmente morreu; mas esta invasão do Deus Vivente faz despedaçar as múltiplas correntes que prendiam o homem na escravidão, correntes que são o demônio, o pecado, a morte, a lei, a carne, no senso paulino do termo. A cruz foi a hora da novidade: o eschaton[2], o século futuro, entrou em nosso tempo e fez explodir todas as nossas tumbas. Esta morte é a nossa ressurreição. «Eis que com a cruz a alegria invadiu o mundo inteiro» (Ofício pascal bizantino, sexta ode). Para nós, hoje, a coisa mais urgente é, talvez, redescobrir «qual é a extraordinária grandeza da sua potência sobre nós, os crentes, segundo a eficácia da sua força, que ele manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos» (Ef 1,19-20).

A ressurreição é a inauguração da parusia[3] no nosso tempo, e é por isso que nós podemos esperar, com certeza e impaciência, o cumprimento anunciado por aquele que está sentado no trono (Ap 21,5). Por isso nós «esperamos ardentemente como salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará o nosso corpo de miséria, para conforma-lo ao seu corpo de glória, em virtude da energia que ele há de submeter a si todas as coisas» (Fl 3,20-21).

Como nosso «hoje» pode se tornar o evento pascal, que aconteceu de uma vez para sempre? É graças a aquele que desde a origem e na plenitude dos tempos é o artífice: o Espírito Santo.

Ele é a novidade que opera no mundo, a presença do Deus-conosco, «unido ao nosso espírito» (Rm 8,16); sem ele, Deus está longe, o Cristo permanece no passado, o evangelho é letra morta, a igreja uma simples organização, a autoridade um domínio, a missão uma propaganda, o culto uma simples evocação e o agir cristão uma moral de escravos.

Mas nele, em uma sinergia[4] indissociável, o cosmos é fecundado e geme no trabalho de parto na geração do Reino, o homem está em luta contra a carne, o Cristo ressuscitado está presente, o evangelho torna-se potência de vida, a Igreja significa comunhão trinitária, a autoridade torna-se um serviço libertador, a missão é uma Pentecostes, a liturgia, um memorial e uma antecipação, o agir humano é divinizado.

O Espírito Santo faz vir a parusia em uma epíclese[5] sacramental e misticamente realista, dá vida aos profetas e fala através deles, recoloca cada coisa em diálogo, e na efusão de si mesmo, cria comunhão e impulsiona para o segundo Advento. «Ele é Senhor e dá a vida» (Símbolo Niceno-Constantinopolitano). É graças a Ele que a Igreja e o mundo invocam com todo o ser: «Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22,20).

Inácio IV Hazim, Evento e rinnovamento, 256-258.




[1] Energia, segundo a terminologia teológica do primeiro milênio, quer dizer tudo aquilo que podemos conhecer de Deus, como emanações diretas dele.


[2] Literalmente, os últimos tempos, o final da história humana, o seu cumprimento e desfecho.


[3] Parusia é a segunda vinda de Cristo, no final dos tempos.


[4] Sinergia é a comunicação da energia divina na criação.


[5] Epíclese é o gesto que invoca a descida do Espírito Santo sobre as oferendas na missa, para que se tornem o Corpo e Sangue de Cristo, ou no caso dos outros sacramentos, para que Ele realize aquilo que o sacramento significa.

TP 07 5 O Espírito falou por meio dos profetas

Batistério de Albenga, Ligúria, Itália Belíssima imagem da Santíssima Trindade, Séc. VI.
Dizer que o Espírito falou por meio dos profetas significa recordar a sua ação potente, incansável, no decorrer da história da Salvação, a partir da criação do mundo até a obra de Cristo, passando pelas «preparações evangélicas» do primeiro Testamento. O Espírito, em uma verdadeira «Pentecostes cósmica», como dizia Sergej Bulgakov, esvoaça sobre as águas primordiais (cf. Gn 1,2). Deus «sopra nas narinas» do homem um «sopro de vida» (cf. Gn 2,7) que a Bíblia grega identifica com o Espírito Santo, e de quem os Padres dizem ser Ele a fazer do homem «a imagem de Deus». No Antigo Testamento, através de toda uma pedagogia divina de desilusões e superamentos, a revelação do Espírito Santo não cessa de interiorizar-se e universalizar-se. Com os grandes textos proféticos do exílio, o Espírito Santo aparece como potência de ressurreição – vivifica ossos ressequidos (Ez 37,1-14) – e de transformação dos corações, que tem a função de passar da Lei à espontaneidade do amor. O Espírito é a grande unção messiânica e Jesus, quando inaugura a pregação, retoma o anúncio de Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim» (Lc 4,18; Is 61,1).

A encarnação é obra do Espírito, a cristologia de Lucas e de João é fundamentalmente pneumatológica: o Espírito é, de fato, a unção de Jesus, no qual permanece de tal modo, que a existência de Jesus aparece como uma existência no Espírito. Cristo torna a humanidade capaz de tornar-se «pneumatófora»: a sua vitória sobre a morte e sobre o inferno e sua glorificação uniram, para sempre, a divindade e a humanidade, e neste espaço, de agora em diante sem obstáculos, permitiram a inauguração de Pentecostes. A Igreja agora oferece aos homens a potência da ressurreição, que se identifica com aquela do Espírito. A Igreja, agora, é inteiramente profética. No dia de Pentecostes, Pedro anuncia o cumprimento da profecia de Joel: «Nos últimos dias, diz o Senhor, eu efundirei o meu Espírito sobre toda carne... Sobre meus servos sobre minhas servas, naquele dia, efundirei o meu Espírito e eles serão profetas» (At 2,17-18). Parece, no entanto, que a Igreja, em algum momento da história que seria difícil precisar, tenha começado a ter medo do Espírito, e se tenha fechado, no temor da vida e da liberdade pessoal, em um moralismo mais ritualístico no Oriente, e mais jurídico, no Ocidente. Na periferia da Igreja, e algumas vezes, contra ela, são sopradas, então, baforadas do Espírito, em uma imensa exigência de vida criativa, de comunhão e de beleza.

O. Clément, Je crois en l’Esprit Saint, 43-45.

terça-feira, 14 de maio de 2013

TP 07 4 O homem espiritual

O homem espiritual conduzido pelo Espírito, afresco pré-românico, séc. IX, San Quirce de Pedret, Espanha.
A finalidade da vida cristã, dizia São Serafim de Sarov, é a aquisição do Espírito Santo.

A graça sacramental, assimilada pouco a pouco através da ascese e da oração, provoca a espiritualização do coração, este centro de integração e abertura de todo nosso ser, e a partir deste «coração consciente», inflamado pelo fogo do Espírito, a espiritualização de todas as nossas faculdades, nossos sentidos, nosso corpo, e depois, de nosso ambiente histórico e cósmico.

A vida espiritual é a vida no Espírito Santo. A fórmula patrística «Deus se fez homem para que o homem possa tornar-se Deus» se esclarece melhor em uma outra: «Deus se fez sarcóforo, portador da nossa carne, para que o homem possa se tornar pneumatóforo, portador do Espírito» (Atanásio, De incarn., 8). O Espírito desperta, no homem, uma sensibilidade fundamental, que não é somente na ordem do sensível, nem do inteligível, mas do ser no insondável abismo do coração, o que os ascetas chamam a sensibilidade do Espírito. É a capacidade de «sentir» Deus em tudo e para além de tudo. O Espírito atualiza, em nós, a graça batismal, nos faz passar por sucessivas mortes e ressurreições, nas quais nos revestimos do Cristo humilhado e depois do Cristo glorificado. Também a memória dos mortos se torna a memória de Deus, do Deus que se incarna e desce até a morte e nos infernos, a nossa morte e nosso inferno, para fazer brotar a força vivificante do Espírito, a potência de sua ressurreição.

Muitos grandes santos da Igreja Ortodoxa conhecem um batismo do Espírito, uma tomada de consciência pessoal da graça batismal, porque o batismo de água é também batismo do Espírito, dimensão pneumatológica reforçada, clarificada, personificada da unção crismal. Este batismo do Espírito, recebido depois de grandes provas e grandes angústias nas quais o homem encontrou a verdadeira humildade, este batismo do Espírito se identifica, longe de todo triunfalismo carismático, ao dom das lágrimas. Trata-se sempre de água: a água sobre a qual sopra o Espírito, a água do «in principio», a água do batismo, e agora, a água das lágrimas, nas quais se dissolve a dureza do coração, a sclerocardia, quando o coração de pedra se transforma em coração de carne.

O Espírito recria o homem a partir das lágrimas, lágrimas de angústia e de amargor, e depois, lágrimas de gratidão e de maravilhamento, lágrimas de penitência tornadas lágrimas de alegria, que dão ao homem, ao mesmo tempo, força e vulnerabilidade, doçura e ternura, uma infinita capacidade de acolhimento. Então se abre, nele, um respiro do imenso, um sopro unido ao nome de Jesus, participa do Sopro divino que não cessa de anunciar o Verbo. Respira no Espírito, respira o Espírito, que leva ao mundo.

O homem, tornado espiritual, encontra a sua verdadeira natureza, que é dinamismo de assimilação à Graça; as suas virtudes, para além de todo moralismo, são outras tantas participações das energias divinas; e ele desperta e liberta a muda celebração das coisas; os ritmos mesmos do seu corpo, aquele da respiração, aquele do sangue, tornam-se oração, porque é preciso celebrar Deus com a dança, dizem os salmos. Então se manifestam os frutos do Espírito, a percepção da chama das coisas e do ícone de cada rosto, do universo como liturgia, da história como encontro do sacro e do profano. O homem espiritual recebe os carismas da caridade, compreende, assume sobre si a unidade ontológica de todos os homens e recebe o dom da compaixão, da simpatia, no seu sentido forte de «sentir com o outro».

O. Clément, Je crois en l’Esprit saint, 33-35.

TP 07 3 A verdade toda inteira

Holy Spirit Coming, by He Qi.
Se Jesus disse aos discípulos: «muitas coisas tenho ainda a dizer-vos, mas no momento não sois capazes de compreende-las» (Jo 16, 12), não significa que a sua instrução terrena deva permanecer incompleta por motivos exteriores – a fraqueza dos discípulos na escuta – e, conseqüentemente, deva ser completada. Isto vem contestado já pelo fato de que o intérprete, o Espírito, realize essencialmente essa instrução «recordando-vos tudo o que vos disse» (Jo 14, 26) E se, do intérprete mesmo se prediz que «dirá tudo o que terá ouvido e vos anunciará as coisas futuras» (16, 23), não parece descabido pensar que «coisas futuras» como referidas, antes de tudo, à sorte que esperava Jesus, à sua glorificação através da Cruz e da Ressurreição, única referência à qual a interpretação da Palavra pode ser feita na totalidade. «As coisas futuras» não indicam, em todo caso, uma revelação profética ligada ao tempo, mas muito mais (como em Is 41,23;42,23;44,7) a abertura da dimensão escatológica, isto é, que, no evangelho, vem chamado de saber ler os sinais dos tempos, saber reconhecer o aproximar-se do fim (Mt 24,32).

«A verdade toda inteira» não significa, então, a síntese de um certo número de verdades isoladas, mas sim, da única verdade da interpretação de Deus, através do Filho, na inexaurível plenitude da sua concreta universalidade. Ela já está presente no momento no qual o Filho, com toda sua existência incarnada, interpreta a verdade do divino amor: tal interpretação é «a glória da plenitude da graça e verdade» (Jo 1,14.17), e é, mesmo, o «verdadeiro testemunho» (Jo 5,31; 8,14). Em um sentido análogo, também o Espírito não comunicará, ulteriormente, somente elementos desta interpretação, mas dará dela o «testemunho» (J0 15,26), ou seja, a sustentará com todo seu ser. Compreendida no seu sentido teológico, tal testemunho é dado não somente diante de alguém, e nem menos, somente para alguém, mas muito mais, como doação, reveladora do que é próprio, a favor de alguém, e até mesmo, no caso de que seja aceita, dentro de alguém. Em João 1,14, a «verdade» é, ao mesmo tempo, «graça». A abertura do espaço do amor entre o Pai e o Filho acontece, no Filho, com sua doação ao mundo; e conseqüentemente, a introdução do Espírito, neste espaço aberto do amor, que é a verdade, é, ao mesmo tempo, a doação do Espírito dentro daqueles que acolhem o seu testemunho. Aqui é necessário recordar sempre que o Espírito é, contemporaneamente, a atestação (objetiva) do amor intercorrente entre o Pai e o Filho (expresso dogmaticamente como «terceira Pessoa») e o fruto interior deste amor recíproco (subjetivo), de modo que se possa chamar Espírito de Amor do Pai e, ao mesmo tempo, Espírito de Amor do Filho (cf. Rm 8,9). A sua obra de introdução na «verdade toda inteira» é então, antes de tudo, algo muito diferente de uma instrução objetiva, já que, muito mais, uma condução a uma participação íntima, a partir de uma participação íntima. Ele tem a força de realizá-lo, como está a demonstrá-lo o termo dynamis, que em Paulo, aparece freqüentemente junto com a pneuma, a ponto de amos os termos sejam intercambiáveis. Graças a Ele, «que escruta as profundidades de Deus» e nos vem comunicado como tal (I Cor 2,10.12), nós aprendemos a conhecer quem seja este Deus-Pai, que «tanto amou o mundo, a ponto de dar seu Filho unigênito» (Jo 3,16), e junto, quem seja o Filho, que se encarrega de revelar tal amor do Pai, até a glorificação sobre a Cruz e o coração transpassado. Com isso, nós somos introduzidos não somente em uma Trindade econômica voltada para fora de si, mas, até mesmo, em sua verdade imanente, pois ao contrário, a introdução realizada pelo Espírito não alcançaria, de fato, «a verdade toda inteira», e restaria, no fundo, ainda, alguma coisa de não comunicado do mistério de Deus. Nós somos introduzidos não somente nas «energias» de Deus, mas também, nos abismos imperscrutáveis da sua essência, que em sua mesma revelação e comunicação, permanecem incompreensíveis.

H. U. Von Balthasar, Nella pienezza della fede, 220-221.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

TP 07 2 A memória, atividade própria do Espírito

Pentecostes, Orcagna, 1365, Firenze, Itália.
Que o Espírito habite, não ao lado da Palavra, mas nela mesma, João o sublinhou com força quando designou a memória como atividade própria do Espírito na história.O Espírito Santo não fala de si mesmo, mas «do que é meu», diz Jesus (Jo 16,14). Ele se reconhece pela sua fidelidade à Palavra uma vez pronunciada. João construiu paralelamente sua cristologia e sua doutrina sobre o Espírito, de modo rigoroso. Também o Cristo, de fato, se caracteriza pelo fato que pode dizer: «A minha doutrina não é minha» (Jo 7,16). E este esquecimento de si mesmo o contradistingue, o fato de que não dê testemunho de si mesmo lhe dá credibilidade diante do mundo. O Anticristo, a contrário, é reconhecido porque fala em seu próprio nome. O mesmo vale para o Espírito Santo: Ele se revela como Espírito Trinitário, Espírito de Deus em três pessoas, e isso acontece justamente porque Ele não aparece por si mesmo, separado e inseparável, mas desaparece no Pai e no Filho. A impossibilidade de desenvolver uma pneumatologia, uma ciência do Espírito em si mesma, depende de sua própria natureza. João formulou decisivamente estas afirmações, no meio da lutas de seu tempo, como um sinal que distingue o Espírito do Antiespírito. Os grandes mestres da gnose suscitavam muito interesse porque falavam em seu próprio nome e se construíam um próprio nome. Eles impressionavam muito porque tinham alguma coisa de novidade, de diferente a dizer, além da Palavra, por exemplo, que Jesus não estava realmente morto, mas dançava com os discípulos, enquanto os homens acreditavam que ele estava suspenso na cruz. A tais novidades gnósticas, a afirmações que não se baseavam senão em seus próprios autores, o quarto evangelho contrapõe, conscientemente, o plural eclesial, o desaparecer daquele que fala por detrás do «nós» eclesial, que, na realidade dá ao homem o seu verdadeiro rosto, e lhe impede de dissolver-se no nada. Nas cartas de João, segue-se o mesmo modelo: o autor se define simplesmente «ancião», enquanto o seu adversário é o proagon, aquele que vai à frente (cf. 2Jo 9).

Todo o evangelho de João, assim como as cartas, não pretendem ser senão uma mobilização da memória, e é neste sentido que é o evangelho do Espírito Santo. E é nesta medida, na qual não se inventa um novo sistema, mas recorda, interiorizando, ele é fecundo, novo e profundo. A natureza do Espírito Santo, unidade do Pai e do Filho, é o esquecimento de si mesmo; nisto consiste a memória. É a autêntica renovação. Uma Igreja pneumática é uma Igreja que, recordando, penetra mais profundamente na Palavra, tornando-se assim, mais viva e rica. Verdadeiro esquecimento de si mesma, desapego para «entrar no Tudo»: eis o contrasinal do Espírito, reflexo da sua natureza trinitária.

J. Ratzinger, Le Dieu de Jésus Christ, 118-120.

domingo, 12 de maio de 2013

TP 07 1 Ascensão

Ressurreição e Ascensão. Marfim do séc. V, Roma.

Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo
(Sermo de Ascensione Domini, Mai 98,1-2:PLS2,494-495)             (Séc.V)

Ninguém subiu ao céu a não ser aquele que de lá desceu
        Hoje nosso Senhor Jesus Cristo subiu ao céu; suba também com ele o nosso coração. Ouçamos as palavras do Apóstolo: Se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar ascoisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres (Cl 3,1-2). E assim como ele subiu sem se afastar de nós, também nós subimos com ele, embora não se tenha ainda realizado em nosso corpo o que nos está prometido.
        Cristo já foi elevado ao mais alto dos céus; contudo, continua sofrendo na terra através das tribulações que nós experimentamos como seus membros. Deu testemunho desta verdade quando se fez ouvir lá do céu: Saulo, Saulo, por que me persegues (At 9,4). E ainda: Eu estavacom fome e me destes de comer (Mt 25,35).
        Por que razão nós também não trabalhamos aqui na terra de tal modo que, pela fé, esperança e caridade que nos unem a nosso Salvador, já descansemos com ele no céu? Cristo está no céu, mas também está conosco; e nós, permanecendo na terra, estamos também com ele. Por sua divindade, por seu poder e por seu amor ele está conosco; nós, embora não possamos realizar isso pela divindade, como ele, ao menos podemos realizar pelo amor que temos para com ele.
        O Senhor Jesus Cristo não deixou o céu quando de lá desceu até nós; também não se afastou de nós quando subiu novamente ao céu. Ele mesmo afirma que se encontrava no céu quando vivia na terra, ao dizer: Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu (cf. Jo 3,13).
        Isto foi dito para significar a unidade que existe entre ele, nossa cabeça, e nós, seu corpo. E Ninguém senão ele podia realizar esta unidade que nos identifica com ele mesmo, pois tornou-se Filho do homem por nossa causa, e nós por meio dele nos tornamos filhos de Deus.
        Neste sentido diz o Apóstolo: Como o corpo é um só, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo (1Cor 12,12). Ele não diz: “assim é Cristo”, mas: assim também acontece com Cristo. Portanto, Cristo é um só, formado por muitos membros.
        Desceu do céu por sua misericórdia e ninguém mais subiu senão ele; mas nele, pela graça, também nós subimos. Portanto, ninguém mais desceu senão Cristo e ninguém mais subiu além de Cristo.
        Isto não quer dizer que a dignidade da cabeça se confunde com a do corpo, mas que a unidade do corpo não se separa da cabeça.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

TP 06 6 O teu nome é Companhia, Aleluia!

Nas palavras do Senhor Jesus se respira um ar de grave saudade que se faz promessa: «Eu vos verei de novo e o vosso coração se alegrará e ninguém poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16,22). Justo no momento em que a separação se faz mais eminente e sempre mais grave, o Senhor Jesus se faz intérprete desta separação e a transforma em uma real e grande oportunidade. Sempre as relações, sobretudo e antes de tudo aquelas que mais nos tocam, tem necessidade de reviver o drama de um parto renovado. A imagem da mulher, que «quando deve dar à luz, é na dor que o faz, porque chegou a sua hora» (16,21), torna-se para o Senhor Jesus a imagem mais adequada para falar da necessária transformação que deve acontecer na sua relação com os discípulos e do seu modo de relacionarem-se entre eles. O mistério pascal cria uma distância e obriga a viver uma separação que, mesmo na sua inevitável dose de dor, torna-se a ocasião irrenunciável para crescer e ir além do que já se viveu e amou.

A cruz se ergue como juízo e representa o eixo cartesiano, que permite o discernimento e a orientação que, inevitavelmente, comporta também acolher os inevitáveis sofrimentos: «Vós chorareis e gemereis, mas o mundo se alegrará. Vós estareis tristes, mas a vossa tristeza se mudará em alegria» (16,20) A experiência pascal não é a morte, mesmo se passa através da morte! Ela é o lugar de profundas transformações que permitem um ganhar liberdade, a tal ponto que a alegria do final, diferentemente daquela dos inícios, «ninguém poderá» (16,22) tirá-la. A presença e a companhia do Senhor na nossa vida de discípulos não será diminuída pela experiência pascal, mas será radicalmente transformada, tanto que «naquele dia não me perguntareis mais nada» )16,23). Na primeira leitura podemos bem entender como tudo isto se realize na vida da Igreja nascente e na experiência pessoal de todos aqueles que se colocam no seguimento do Senhor Jesus Cristo, com generosidade e decisão firme. Ao final, vemos que ainda uma vez, Paulo «embarca» (At 18,18), e não sozinho, mas «em companhia de Priscila e Áquila». Não obstante o peso tão exigente da perseguição, das surras, das humilhações e das rejeições entre os discípulos, gera-se sempre mais uma companhia, que se funda sobre a fé comum e sobre uma esperança compartilhada, que se realiza em uma ardente caridade. Esta se expressa em uma crescente capacidade de caminhar juntos e viajar para novos portos, na espera de um novo modo de proceder unidos, que possa fazer nascer, não somente no nosso coração mas, através de nós, para a alegria de a vida de todos. As palavras do Senhor Jesus no cenáculo, como a experiência narrada por Lucas, sobre os primeiros passos da Igreja, recordam-nos que a companhia com o Senhor e entre nós não é um simples sentimento de proteção quentinha, mas um estímulo a andar sempre além do que nos conhecemos e vivemos.

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, maggio 2013, 104-105.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

TP 06 5 O teu nome é Alegria, Aleluia!

Catedral de São Pedro, Poitiers, França, séc. XII.
Enquanto em outras Igrejas, diferente daquela brasileira, celebra-se hoje a solenidade da Ascensão do Senhor ao céu, nós escutamos uma palavra que prolonga ainda a espera da realização e plenitude: «em verdade, em verdade eu vos digo: vós chorareis e gemereis, mas o mundo se alegrará» e ainda: «Vós estareis tristes, mas a vossa tristeza se mudará em alegria» (Jo 16,20). Cesário de Arles recorda, de seu modo: «Sei que todos os homens desejam experimentar uma verdadeira alegria. Mas, engana-se muito que deseja gozar das colheitas sem cultivar o seu campo; engana-se a si mesmo quem quer recolher os frutos sem plantar árvores. Não se possui a verdadeira alegria sem a justiça e a paz. Ora, respeitando a justiça e a paz, fadigamos por um breve tempo, como que inclinados sobre um trabalho frutuoso»[1]. A confirmar este dinamismo está a mesma experiência dos apóstolos, assim como é narrada na primeira leitura.

Em poucas palavras, vemos que Paulo, unido aos outros discípulos, deve enfrentar toda uma série de mudanças e encarar as contínuas alterações de situações e de reações por parte daqueles que encontra em seu caminho. Mesmo assim, parece que a perseguição e a rejeição, que chegam mesmo às «injúrias» (At 18,6), não sejam nunca desconectadas de uma experiência de um ainda mais profundo acolhimento amoroso: «Estabeleceu-se na sua casa e trabalhava» (18,3). Talvez muitas vezes confundamos a alegria com a insensatez leviana e, ingenuamente, arriscamos sonhar uma vida sem dificuldades e sem provas a serem enfrentadas seriamente. O Senhor Jesus nos recorda que o segredo da alegria e a sua verdade estão justamente no processo de mudança, que faz da alegria um fruto maduro e consciente. Raramente, enquanto saboreamos o fruto, nos arrependemos do longo processo de transformação que lhe está por detrás! Assim também, quando olhamos a nossa vida e a daquelas pessoas que nos são queridas, arriscamos de desejar para nós uma alegria que não está enraizada na fadiga do crescimento e da transformação, e fazer dela uma quimera.

Ao final da primeira leitura, lemos que «muitos dos coríntios, escutando Paulo, acreditavam e se faziam batizar» (18,8). Penso que seja legítima a pergunta sobre como é possível que, em Atenas, o Apóstolo teve pouquíssimo sucesso e, em Corinto, ao contrário, sua palavra foi acolhida por «muitos». Talvez porque, em Corinto, a vida das pessoas fosse mais difícil e mais marcada pelo sofrimento de uma cidade portuária, muito menos aristocrática que Atenas, em seu tempo. Neste contexto, a palavra e o testemunho de Paulo foram capazes de gerar a esperança de uma alegria possível, mas não evidente. Esta é a alegria que nos é prometida pelo Senhor Jesus: não como um toque de varinha mágica, mas coo um desafio que nos compromete radicalmente, porque é ligada a um caminho e a um processo: «Mudar-se» (Jo 16,20)!

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, maggio 2013, 94-96.




[1] CESARIO DI ARLES, Discorsi 166.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

TP 06 4 O teu nome é Chave! Aleluia!

Mosaico bizantino normando, Palermo, séc. XII. Itália.
Um longo texto de Simeão o Novo Teólogo pode acompanhar hoje a nossa meditação. Os textos do evangelho que lemos nestes dias pascais se tornam sempre mais insistentes no preparar os nossos corações para acolher o dom do Espírito, que nos «guiará a toda verdade» (Jo 16,13). O risco é de cair no mesmo fechamento dos cultos atenienses, os quais, na realidade, amavam tanto falar, mas não são capazes de escutar, e adiam simplesmente a sua recusa à palavra do apóstolo, porque não tem a coragem de declarar o seu fechamento: «Sobre este tema te escutaremos uma outra vez» (At 17,32). É um modo «sofista» de manifesta o próprio desinteresse, que se funda sobre uma pretensiosa autarquia mental e espiritual.

Assim explica Simeão: «A “chave da ciência” (Lc 11,52) não é outra coisa que a graça do Espírito Santo. Ela é dada pela fé. Com a iluminação, ela gera, de modo verdadeiramente real, o conhecimento de cada coisa. Abre também o nosso espírito obtuso e obscuro, frequentemente com parábolas e símbolos, mas também com afirmações mais claras. Prestai muita atenção ao senso espiritual da palavra. Se a chave não é boa, a porta não se abre. Porque, diz o Bom Pastor, “é a Ele que o guardião abre” (Jo 10,3). Mas, se a porta não se abre, ninguém entra na casa do Pai, porque o Cristo disse: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). Ora, é o Espírito Santo que, em primeiro lugar, abre o nosso espírito e nos ensina o que se refere ao Pai e o Filho. Cristo nos diz ainda isto: “Quando ele virá, o Espírito de verdade que procede do Pai, ele me dará testemunho, e ele vos guiará à toda verdade” (Jo 15,26; 16,13). Vede como, por meio do Espírito, ou mais ainda, no Espírito, o Pai e o Filho se fazem conhecer, inseparavelmente. Se chamamos o Espírito Santo uma chave, é porque, por ele e nele, primeiramente, temos o espírito iluminado. Uma vez purificados, somos iluminados pela luz da ciência. Somos batizados do alto, recebemos um novo nascimento e nos tornamos filhos de Deus, como diz São Paulo: “O Espírito mesmo intercede com gemidos inexprimíveis” (Rm 8,26). E ainda: “Deus enviou nos nossos corações o Espírito de seu Filho que grita: Abbá, Pai” (Gl 4,6). É ele, pois, que nos mostra a porta, porta que é luz, e a porta nos ensina que aquele que habita na casa é também aquele que é inascessível»[1].

O nosso caminho para Pentecostes se faz mais intenso e é necessário que cada um de nós tome em suas mãos a chave para abrir o coração, com se fosse uma casa que acolhe o doce hóspede da alma, e não somente goza de sua presença, mas se deixa tranformar e iluminar por este mestre da «coisas futuras» (Jo 16,13) que está dentro. Não se trata então de adivinhar o futuro, mas de abrir-nos radical e generosamente à novidade de vida, da qual o Espírito Santo é animador.

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, maggio 2013, 86-88.




[1] SIMEONE IL NUOVO TEOLOGO, Catechesi 29.

terça-feira, 7 de maio de 2013

TP 06 3 O teu nome é Meia noite!

Starry night, Van Gogh, Museu de Arte Moderna, Nova York, EUA 1889 
Na tradição, não somente naquela bíblica, o tempo mais propício para as passagens e manifestações divinas parece ser o coração da noite. Não por acaso que cada ano, ainda hoje, celebremos as duas festas principais do ano em vigília e oração, ao ponto de iluminar as trevas mais espessas com a oração e o amor. Na primeira leitura nos é relatado uma das desventuras de Paulo e Silas, que se conclui de modo muito preciso: «Atirou-os na parte mais interna do cárcere e prendeu-lhes os pés aos cepos» (At 16,24). Parece que agora não haja mais nada a fazer, como também parece que a resistência ao anúncio do evangelho tenha vencido e que o próprio evangelho esteja preso, de uma vez por todas, como e com os pés dos apóstolos: apertados com correntes. Mesmo assim, existe alguma coisa que é mais forte que os cepos e correntes, e é a fé de quem não deixa de crer e esperar, mesmo na parte mais interna e mais obscura da prisão, demonstrando, assim, ter um coração tão livre que não pode ser acorrentado por nada nem ninguém: «Pela meia noite, Paulo e Silas, em oração, cantavam hinos a Deus, enquanto os prisioneiros estavam escutando-os» (16,25).

Preciosíssimo versículo, que remete ao dúplice mistério da oração de louvor que é possível – poderíamos dizer, até mesmo, necessária – também no momento da desolação e do anúncio do evangelho, que passa simplesmente através deste canto dos apóstolos, canto capaz de criar, na prisão, habituada muito mais a outros clamores, uma atmosfera de paz tão profunda ao ponto de desmantelar, até às vísceras da terra, todas as feiuras: «Improvisamente aconteceu um terremoto tão forte que foram sacudidos os fundamentos da prisão; súbito se abriram todas as portas e caíram as correntes de todos» (16,26). Estamos diante de uma das mais belas parábolas capazes de dizer sobre a eficácia do evangelho de Cristo. Antes de tudo a memória que Deus intervém à «meia noite» e «imprevisivelmente», e que a sua passagem – como aquela da Páscoa – é sempre uma passagem para a libertação. À memória da Páscoa, vivida pelo povo no Egito, se acrescenta um elemento que é próprio da páscoa de Cristo e que é expressa pela palavra que Paulo dirige ao carcereiro: «Não te faças mal, estamos todos aqui» (16,28). A libertação deve ser para todos e não existe mais a lógica, segundo a qual, é necessário que alguém perça para que um outro viva, como acontece no Mar Vermelho. Para a Páscoa de Cristo, existe vida para todos, até mesmo para o carcereiro, para o qual, a estranha bondade de Paulo e Silas que, com a sua oração, criam as condições para a liberdade de todos, é um verdadeiro terremoto interior que muda a sua vida desde os fundamentos: «Depois, fez-lhes subir em casa, pôs a mesa e estava pleno de alegria, junto com os seus, por ter acreditado em Deus» (16,34). À luz de tudo isto, podemos deixar decantar no nosso coração, a palavra do Senhor, que busca levar-nos um pouco mais longe: «Mas eu vos digo a verdade: é bom para vós que eu vá, porque, se não vou, não virá para vós o Paráclito; se ao contrário, vou, eu o mandarei a vós» (Jo 16,7). Um verdadeiro terremoto, que preludia a uma nova meia noite!

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, maggio 2013, 77-79.

sábado, 4 de maio de 2013

TP 05 7 O aleluia pascal

Passagem do Mar Vermelho, entre a Quaresma e o Tempo Pascal, acrílico sobre tela 1991.
Toda a nossa vida presente deve transcorrer no louvor de Deus, porque louvar a Deus será também a alegria eterna de nossa vida futura. Ora, ninguém pode tornar-se apto para a vida futura se, desde já, não se prepara para ela. Agora louvamos a Deus, mas também rogamos a Deus. Nosso louvor está cheio de alegrias, e nossa oração, de gemidos. Foi-nos prometido algo que ainda não possuímos; porém, por ser feliz quem o prometeu, alegramo-nos na esperança; mas, como ainda não estamos na posse da promessa, gememos de ansiedade. É bom perseverarmos no desejo, até que a promessa se realize; então acabará o gemido e permanecerá somente o louvor.

Assim podemos considerar duas fases da nossa existência: a primeira, que acontece agora em meio às tentações e dificuldades da vida presente; e a segunda, que virá depois na segurança e alegria eterna. Por isso, foram instituídas para nós duas celebrações: a do tempo antes da Páscoa e a do tempo depois da Páscoa.

O tempo antes da Páscoa representa as tribulações que passamos nesta vida. O que celebramos agora, depois da Páscoa, significa a felicidade que alcançamos na vida futura. Portanto, antes da Páscoa celebramos o que estamos vivendo; depois da Páscoa celebramos e significamos o que ainda não possuímos. Eis porque passamos o primeiro tempo em jejuns e orações; no segundo, porém, que estamos celebrando, deixando os jejuns, nos dedicamos ao louvor de Deus. É este o significado do Aleluia que cantamos.

Em Cristo, nossa cabeça, ambos os tempos foram figurados e manifestados. A paixão do Senhor mostra-nos as dificuldades da vida presente, em que é preciso trabalhar, sofrer e por fim morrer. A ressurreição e glorificação do Senhor nos revelam a vida que um dia nos será dada.

Agora, pois, irmãos, vos exortamos a louvar a Deus. É isto o que todos nós exprimimos mutuamente quando cantamos: Aleluia. Louvai o Senhor, dizemos nós uns aos outros. E assim todos põem em prática aquilo que se exortam mutuamente. Mas louvai-o com todas as vossas forças, isto é, louvai a Deus não só com a língua e a voz, mas também com a vossa consciência, vossa vida, vossas ações.

Na verdade, louvamos a Deus agora que nos encontramos reunidos na igreja. Mas logo ao voltarmos para casa, parece que deixamos de louvar a Deus. Não deixes de viver santamente e louvarás sempre a Deus. Deixas de louvá-lo quando te afastas da justiça e do que lhe agrada. Mas, se nunca te desviares do bom caminho, ainda que tua língua se cale, tua vida clamará; e o ouvido de Deus estará perto do teu coração. Porque assim como nossos ouvidos escutam nossas palavras, assim os ouvidos de Deus escutam nossos pensamentos.

Dos Comentários sobre os salmos, de Santo Agostinho, bispo
(Ps 148,1-2:CCL 40,2165-2166) (Séc.V)

sexta-feira, 3 de maio de 2013

TP 05 6 O teu nome é Bem! Aleluia!

João escuta o Sagrado Coração do Amigo Jesus, grafica digital, 2008.
O início da primeira leitura, que assinala a conclusão da grande discussão no que se refere à questão tão importante da circuncisão, ainda fundamental para o hebraísmo, pode ser tomado como chave de compreensão do modo de agir e de interagir da comunidade dos fiéis com aquelas que são as exigências e perguntas colocadas pela história: «Aos apóstolos e aos anciãos, com toda a Igreja, pareceu bem...» (At 15,22). Sente-se a necessidade de acompanhar a carta com pessoas confiáveis que possam, pessoalmente, ajudar os fiéis a acolher profunda e serenamente as decisões tomadas. Em uma palavra, poderíamos dizer que o «bem» passa sempre através do encontro com pessoas concretas que nos fazem bem e nos fazem sentir-nos bem, isto não pode ser reduzido a frios e impessoais documentos. Esta modalidade eclesial, que deveria ser uma característica do modo de agir na comunidade dos fiéis, encontra o seu fundamento na palavra e na atitude de Cristo. O Senhor Jesus, justamente enquanto transmite aos discípulos o seu «mandamento» (Jo 15,12), ele o encastra, como uma pérola, no anel do dom de uma relação profunda, sem a qual o mesmo mandamento arrisca ser uma palavra morta:«Ninguém tem amor maior que este: dar a vida pelos próprios amigos» (15,13), que se traduz em uma espécie de declaração solene: «Vós sois meus amigos» (15,14).

Não basta usar este título de «amigos»! Cada vez que nós o utilizamos, somos chamados a fazer um longo caminho, que exige uma profunda renúncia a tudo o que pode impedir a recíproca compreensão e acolhimento. O caminho escolhido pela Igreja primitiva, sua inspiração do Espírito Santo que continuamente guia os passos concretos nos tempos e lugares reais da história, foi aquele de aliviar, mais que fazer pesados, limitando-se rigorosamente às coisas «necessárias» (At 15,28). O Senhor Jesus nos leva ao coração do que é verdadeira e absolutamente necessário: «Não vos chamo mais servos, porque o servo não sabe aquilo que faz seu patrão; mas vos chamei amigos» (Jo 15,15). O dom de Cristo é aquele de nos fazer entrar em uma comunhão de rara intimidade, da qual brota um profundo e real envolvimento: «Para que andeis e produzais muito fruto e o vosso fruto permaneça» (15,16).

Por três vezes, no texto dos Atos se faz referimento a este «bem», que puderam discernir juntos e que se deseja que possa ser participado por todos, para que todos possam profundamente gozar. Comentando o Evangelho de João, Clemente de Alexandria se exprime em termos paradoxais: «Pela sua compaixão para conosco, Deus se fez mãe para nós: no seu amor, o Pai se fez mulher e nos doou o grande sinal deste amor, com a geração do Filho, e o fruto nascido deste grande amor, é ele mesmo amor»[1]. O mesmo termo «amigo» remete ao mistério de um amor profundamente reconhecido e sensivelmente percebido: quê coisa nos pode fazer mais «bem»? Quê coisa poderia fazer aos outros mais «bem» do que isto?

Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, maggio 2011, 254-256.

[1] CLEMENTE ALESSANDRINO, Un ricco può salvarsi? 37.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

TP 05 5 O teu nome é Favor, Aleluia!

Mosaico da Igreja de San Clemente, perto do Coliseu, Roma, séc. XII

A palavra de Pedro move o coração da Igreja primitiva para torná-lo mais acolhedor e menos exigente em relação aos irmãos que não vem da circuncisão: «E Deus, que conhece os corações, deu testemunho a seu favor, concedendo também a eles o Espírito Santo» (At 15,8). Na profunda e penosa «grande discussão» (15,7) que sacode a comunidade dos fiéis, não está em jogo – e isto vale ainda naquelas que são as escolhas e as posições que a Igreja é chamada a operar no tecido concreto da história – a ordem externa e visível da comunidade, que corre o risco de identificar-se com a preservação de alguns usos e costumes, mas está em jogo a própria imagem de Deus. Para Pedro, a grande surpresa, que exige uma profunda conversão de atitudes, é que Deus testemunhe «a favor deles», e é esta percepção de um Deus que está de nosso lado e não contra nós que muda tudo, mesmo que tudo pareça igual. No contexto da palavra de Pedro dirigida à assembleia, e que orienta a escolha da primitiva comunidade no que se refere a uma linha mais rigorista ou mais acolhedora e sensível às diversas sensibilidades, a palavra do Senhor Jesus assume todo o seu valos e o seu peso de libertação. Estamos de fronte a duas proposições que exige todo o nosso acolhimento. A primeira permanece fundamental: «Como o Pai me amou, também eu vos amei» (Jo 15,9). 

Somente esta experiência fundamental de um amor, gratuito e unilateralmente oferecido, pode permitir a cada um acolher sem perturbação, ao invés, com alegria «plena» (15,11), expressão que segue: «Se observais os meus mandamentos, permanecereis no meu amor...» (15,10). No coração do evangelho está o convite a permanecer no amor, revivendo na nossa existência de discípulos, exatamente o que está no coração da própria vida do Verbo: «... e permaneço no seu amor» (15,10). Somente esta estabilidade no amor permite a fidelidade dinâmica aos «mandamentos». Estamos prontos a entrar e experimentar a alegria «plena» (15,11) prometida por Jesus e que nasce do enraizar a própria vida em uma relação, não somente significativa, mas capaz de dar qualidade à nossa vida? O segredo da alegria de Cristo que, no seu mistério pascal, nos faz participar, é a sua relação com o Pai e toda a revelação não é outra coisa que um convite a deixar-nos envolver neste fluxo de amor.

Quando Jesus fala de alegria, não fala senão do amor, e quando fala do amor, não pode ser senão da alegria. Assim os apóstolos, chamados a afrontar um grave problema, são impelidos pelo Espírito Santo a passar de uma visão problemática das coisas, que tende a defender as próprias posições, ao colocar em primeiro lugar a alegria dos outros, exercitando um grande amor por todos: «Para que busquem o Senhor também os outros homens e todas as gentes» (At 15,17). Assim diz uma mística do nosso tempo: «Nosso Senhor quis colocar em relevo esta grande verdade da supremacia do amor, da alegria do amor que se doa, da supremacia do amor na nossa relação com Deus. Mais amamos e mais cresce a nossa confiança nEle, e mais Deus encontra a sua alegria em nós»[1]. O Senhor está a nosso favor, está do nosso lado!
Semeraro, M., Messa Quotidiana, Bologna, maggio 2011, 245-247.


[1] MARIE-EUGÈNE DE L’ENFANT-JÉSUS, La joie de la misericorde, Nouvelle Cité, Bruyèresle-Châtel 2008, 28.