quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

16 Somente o pobre sabe amar

Lava-pés - Evangelho 1391 n. 8772 - Armenia - f. 11r
Todo autêntico impulso de amor nos torna pobres. Ele empenha todo o homem, coloca em jogo todas suas forças e todos os seus laços (cf. Mt 22, 37), e tem, como consequência, uma diminuição da segurança e proteção objetiva, situada fora do homem. Por isso, pode verdadeiramente amar somente o homem que é capaz de dar-se «gratuitamente», sem proteção e sem dúvidas, para conservar, depois, esta doação na solitária e dolorosa fidelidade de toda uma vida.

Todo autêntico encontro humano acontece no espírito de pobreza. Porque nós devemos fazer-nos «pequenos», saber esquecer-nos e ficarmos de lado, para que o outro venha a nós na sua unicidade. Devemos saber deixá-lo ser, deixá-lo livre no seu ser próprio que, frequentemente nos arranca de nós mesmos, e nos chama a uma dolorosa conversão. Somente assim prepararemos a ele, e a nós, um autêntico «advento».

Frequentemente nós oprimimos o outro; deixamos chegar até nós somente aquilo que passa pelo filtro da nossa própria existência individual, a qual estamos acostumados: em poucas palavras, somente aquilo que já está em nós. Mas, deste modo, em nós, não chega propriamente o outro, o mistério beatificante e salvador do seu ser único; somos, ao contrário, nós que recaímos sobre nós mesmos, e pagamos o preço de uma solidão dolorosamente corrosiva, poruqe não ousamos a pobreza do encontro e fizemos desta ocasião unicamente uma nova e desesperada tentaiva de autoafirmação e autoidolatria. Aquilo que resta é uma sombra de nõs mesmos, o espectro infernal daquela natureza que deveria encontrar a plenitude e esplendor do próprio ser na humilde abertura ao outro, na audácia do «perder-se» pelo seu amor.

J. B. Metz, Povertà nello spirito, 58-60.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

15 Reconhecer a própria miséria para encontrar misericórdia

Lázaro e o rico que não via os pobres, à esquerda Abraão sentado com a alma de Lázaro no colo! Essa imagem de Céu como "colo" é fascinante! Portal da igreja de Moissac, séc. XIII, França.
Não existe verdadeira vida espiritual fora do amor de Cristo.

Possuímos uma vida do Espírito somente porque somos amados por Ele. E a vida espiritual consiste no receber o dom do Espírito Santo e a sua caridade, porque Jesus dispôs, no seu amor, que vivêssemos do seu Espírito, deste mesmo Espírito que procede da Palavra e do Pai, e que é o amor de Jesus por seu Pai.

Se conhecemos o quanto é grande o amor de Jesus por nós, não teremos nunca medo de caminhar para Ele, em toda nossa pobreza, nossa fraqueza, nossa miséria e nossa enfermidade espiritual. Mas, ao contrário, quando chegamos a compreender de que gênero seja o seu amor por nós, preferimos andar para Ele em vestes de pobres miseráveis. Não nos envergonharemos nunca mais de nossa miséria. A miséria se torna a nossa vantagem, quando não buscamos outra coisa que a misericórdia.

Podemos estar contentes de nosso estrado de indigência, se estamos verdadeiramente convencidos que a potência de Deus opera na nossa enfermidade.

O sinal mais seguro de que recebemos uma compreensão espiritual do amor que Deus tem por nós é o apreciar nossa pobreza à luz da sua infinita misericórdia.

Devemos amar nossa pobreza como a ama Jesus. Ela tem tanto valor aos seus olhos, que morreu sobre a cruz, para apresentar nossa pobreza ao seu Pai, e enriquecer-nos com os tesouros da sua misericórdia infinita.

Devemos amar a pobreza dos outros como a ama Jesus. Devemos vê-los com os olhos de sua compaixão. Mas, não podemos ter uma verdadeira compaixão pelos outros, se não estamos dispostos a ser objeto de compaixão e a receber o perdão pelos nossos pecados.

Não sabemos realmente perdoar se não conhecemos que coisa seja o ser perdoados. Deveríamos, pois, estar contentes de que nossos irmãos nos possam perdoar. É o perdão, dado reciprocamente, que torna manifesto, na nossa vida, o amor que Jesus tem por nós, porque no perdoar-nos reciprocamente, nos comportamos como os outros como Jesus se comporta conosco.
Th. Merton, Pensieri nella solitudine, 29-30.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

14 A pobreza é a nossa verdade

O ponto de vista, sob o qual se apresenta o ideal de pobreza evangélica, muito frequentemente, partiu de uma visão de ascese mal compreendida, como se fosse um fim em si mesma, e por isso, pseudo-cristã. A partir de tal ótica, a pobreza aparece como um ato forçado, uma espécie de autodestruição, onde o homem se desfaz de um valor postivo para agradar a Deus.

Na realidade, nos encontramos diante da velha imagem pagã de um Deus ciumento, vingativo, que não suporta o bem-estar nem a grandeza dos homens, o Deus que exige uma espécie de automutilação espiritual em oferta à sua glória. É como uma Deus concorrente do homem, e o será sempre, enquanto o ideal da pobreza for interpretado como descida de um grau superior a um grau inferior. Porque, neste cado, a pobreza consiste, simplesmente, no diminuir nossa auto-realização para aumentar a glória de Deus. Glória dúbia, que não ajuda a aumentar as possibilidades de sobrevivência do discurso da montana!

Não, para compreender a profundidade da mensagem evangélica da pobreza, é necessário mudar, radicalmente o ponto de vista. O ideal da pobreza cristã não consiste no desfazer-nos do que somos para chegar ao que não somos ainda. Trata-se, ao contrário, de revirar a nossa situação irreal, para tornar-nos aquilo que somos de verdade. Antes de ser uma ordem, as palavras e o exemplo de Jesus são, antes de mais nada, um apelo. A pobreza não tem valor em si mesma. Para ser um ideal evangélico, é necessário que o espírito de pobreza nos aproxime, mais que outra coisa, daquilo que o homem deve ser para ser plenamente homem, para que chegue à realidade de homem.

No discurso da montanha, Jesus nos fala desta realidade. Trata-se de uma mensagem que se enraiza sobre o solo de nosso ser. Dizendo: «Sede pobres», Cristo diz, em primeiro lugar: «vós sois pobres». É esta a razão substancial do seu preceito. O que devemos fazer não é outra coisa que a consequência do que somos.

A primeira bem-aventurança coincide, além disso, com a tradição dos «pobres de JHWH», que se encontra nos salmos e nos profetas, estes pobres que não colocam a sua esperança em si mesmos, ou na sua potente posição no mundo.

Eles esperam de Deus somente a vida, a salvação, a felicidade. Por isso, a Escritura os louva, e Jesus nos é apresentado como o pobre de JHWH por excelência. Com efeito, a atitude do pobre coloca na luz a verdade do homem.

Ser pobre em espírito quer dizer, antes de tudo: ter consciência da própria pobreza efetiva. Pobres diante de Deus, isto é o que somos. Por isso, a atitude do possuidor é uma atitude falsa, e mentiroso é o espírito de riqueza. Viver como rico é não ver a realidade.

A mensagem da pobreza toca o núcleo da vida, porque nos revela a nossa situação real. E escava muito mais profundamente a aproximação psicológica ou também, ética, do desapego. Trata-se do nível ontológico de nossa existência: o homem é pobre diante de Deus. Pobre, porque recebeu e porque deve receber. A vida, o sentido último da existência, a salvação, tudo o que é dom. Nós somos radicalmente indigentes.

O nosso ser é recebido naquilo que o constitui como ser. Eis a rocha sobre a qual se ergue o evangelho da pobreza.
P. Schmidt, Credo in Dio creatore..., 50-51.

13 Jesus, pobre por excelência

Crucificado, pintura sobre madeira, séc. XIII, que conversava com Santa Catarina de Sena.
Jesus, pregado na cruz, é o pobre por excelência: pobre de coração, pela comunhão intensa com a vontade do Pai e com o destino de seus irmãos, pobre também pelo despojamento a que foi conduzido na sua incarnação na carne do pecado.

É da união destas duas pobrezas que brota a salvação e que nasce a ressurreição, que salva e enriquece, com toda a Glória de Deus, a humanidade redimida. O texto de Filipenses diz: «por isso Deus o exaltou» (Fp 2, 9). A expressão «por isso» traz em si toda a revelação cristã do mistério da pobreza salvífica. A ressurreição não é somente um episódio que vem depois daquele da cruz: um brota do outro, a ressurreição é fruto da cruz. Porque voluntariamente, na sua «pobreza de coração», o Cristo se empobreceu até esta última indigência, que é a cruz, o Pai o exalta e o faz Senhor. João usa a imagem: «se o grão de trigo não cai por terra e não morre, permanece sozinho, mas se morre, produz muito fruto» (Jo 12, 24). A espiga de trigo vem da putrefação do grão; o «senhorio» de Jesus vem da sua pobreza; a salvação do homem, ligada a este senhorio, vem da kênose[1] de Cristo; o Senhor Jesus vem de Jesus pobre; o Kyrios[2] vem do servo de JHWH[3]. Eis a extrema loucura do poder do ágape do Pai: a pobreza do pecado, assumida com «pobreza de coração» se torna salvação e riqueza do homem. A salvação se realiza inteiramente no universo da pobreza. A salvação é obra de um pobre que vive a sua pobreza, de um modo tal, a libertar, através dela, os seus irmãos das raízes de sua mais oprimente miséria. A pobreza pertence, pois, essencialmente à salvação e ao evangelho. Ela é evangélica no sentido mais forte do termo. Porque é nela e por ela, que se vive o mistério que constitui o coração da boa nova. Jesus nos salva no seu sacrifício de servo que sofre, de servo pobre; «por suas chagas fomos curados» segundo a expressão de Isaías (53, 5), que a primeira carta de Pedro retoma (1Pd 2, 24). A sua ressurreição é a revelação da extraordinária fecundidade da pobreza. O Senhor Jesus não é nenhum outro senão o pobre Jesus, exaltado porque viveu até as últimas consequências, e no amor, a sua pobreza. Desta exaltação, os homens todos devem ser os beneficiários: não somente os oprimidos e famintos, mas também os ricos, na condição que saibam descobrir, em si, a presença radical da miséria, aquela do pecado, e que queiram se libertar dela, radicando no seu coração uma disponibilidade que lhes abra a Deus e aos outros. Eis a suprema generosidade do pobre: através de seu amor, foram salvos aqueles que o maltratavam. Se, antes, nós podíamos dizer que Deus via, no rosto do pobre, a sua própria dor, agora devemos acrescentar que ele encontra no coração de Jesus pobre, o seu próprio amor e sua própria generosidade.

H.J.-M. Tillard, La salvezza mistero di povertà, 27-29.



[1] Esvaziamento voluntário de Deus, em grego.
[2] Senhor, em grego.
[3] Nome impronunciável de Deus, escrito somente com consoantes, para evitar a profanação do Nome.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

11 Conhecer o próprio pecado para conhecer Deus

Três tentações de Cristo, mosaicos do séc. XIII, São Marcos, Veneza, Itália.

«Quem conhece os próprios pecados é maior de quem, com a oração, ressuscita os mortos... quem chora uma hora sobre si mesmo é maior do que aquele que ensina e prega às multidões. Quem conhece a prórpia fraqueza é maior do que aquele que vê os anjos... quem segue Cristo na solidão e na contrição é maior do que aquele que é famoso às multidões nas igrejas». Com este paradoxo, Isaac, o Sírio afirma o caráter especificamente cristão da conversão[1]. O arrependimento cristão não deve se reduzido nem comparado a nenhuma experiência das religiões naturais. Toda tenttativa de comparação comporta, inevitavelmente, o risco de cair no ridículo ou no de precipitar-se no desequilíbrio.

A conversão é fruto do Espírito Santo e é um dos sinais menos contestáveis da sua ação na alma.

Ninguém, com efeito, pode reconhecer o próprio pecado sem ter, contemporaneamente, reconhecido Deus. Não antes, nem depois, mas no mesmo instante, em uma mesma e única intuição espiritual. De tal modo, o pecado, no momento mesmo no qual Deus o perdoa, e no qual vem, por assim dizer, recuperado e restituido na graça, torna-se, inesperadamente o lugar no qual Deus se torna ao coração do homem.

Mas, é necessário acrescentar, também, que não existe outra estrada para encontrar verdadeiramente a Deus e conhecê-lo, fora deste caminho da conversão. Fora dela, Deus não é outra coisa que uma palavra, um conceito analógico, um pressentimento, um desejo, o Deus dos filósofos e dos poetas, mas não é ainda o Deus que se revela na superabundância do seu amor.

O Senhor, de fato, veio para os pecadores, para hospedar-se e comer na casa deles, não na casa dos justos, para buscar o que estava perdido (cf. Mt 9, 13; 18, 11).

Deus se faz conhecer, perdoando. Quanto ao pecador, somente medindo o abismo do próprio pecado descobre o abismo da misericórdia. É neste exato momento que um abismo cumula e submerge o outro.

Este momento constitui a experiência evangélica absolutamente primária e fundamental, aquela dos pequenos e dos pobres em espírito, aquela dos pecadores sobretudo, prostitutas e publicanos, que precedem os outros no Reino dos céus (cf. Mt 21, 31). É neles, e naqueles que são como eles, que Deus decidiu encontrar e salvar o homem.
A. Louf, Repentir et expérience de Dieu, 28-29.




[1] Discurso 34

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

10 Perder a vida para ganhá-la

tentação de Cristo, Arcabas, Igreja Saint Hughes de Chartreuse :
«Converter-se» quer dizer: seguir Jesus, andar com Ele, no seu camino. Mas insistimos ainda sobre o fato de que seja Deus a nos converter. A conversão não é uma auto-realização do homem, e o homem não é o arquiteto de sua própria vida. A conversão consiste, essencialmente, nesta decisão: o homem deixa de ser seu criador, cessa de buscar somente a si mesmo e a sua auto-realização, mas aceita que esta dependência seja a verdadeira liberdade, e que a liberdade da autonomia emancipada do Criador não seja liberdade, mas ilusão e engano. Fundamentalmente, existem somente estas duas possibilidades de opções essenciais: a auto-realização, na qual o homem busca criar-se a si mesmo, para possuir o seu ser completamente, para ter a totalidade da vida exclusivamente por si e a partir de si; Do outro lado, a opção da fé e do amor. Esta opção é, ao mesmo tempo, a decisão pela verdade. Sendo criaturas, não o somos por nós mesmos, nem à partir de nós mesmos; somente se «perdemos» a vida podemos ganhá-la. Estas opções correspondem ao conteúdo das palavras «ter» e «ser». A auto-realização quer ter a vida, porque considra a vida como uma possessão a ser defendida contra os outros. A fé e o amor não pretendem possuir nada contra os outros. A fé e o amor não visam a possessão. São a opção pela reciprocidade do amor, pela magestade da verdade. In nuce esta alternativa corresponde à escolha fundamental entre a morte e a vida: uma civilização do ter é uma civilização da morte, de coisas mortas; somente uma cultura do amor é também uma cultura de vida: «quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas que perder a própria vida... a salvará» (Mc 8, 35).

Podemos dizer, também, que a alternativa entre auto-realização e amor corresponde à alternativa das tentações de Cristo: a alternativa entre o poder terreno e a cruz, entre uma redenção consistente no seu bem estar e uma redenção que se abre e se confia ao infinito amor divino. (...)

«Converte nos, Deus salutaris noster». A rejeição da auto-realização e o primado da graça, resumidos nesta oração, não pretendem um quietismo, mas muito mais, uma força nova e mais profunda da atividade humana. A auto-realização atropela a vida, interpretando-a como uma posse, e assim, coloca-se ao serviço da morte; a conversão é um ato da opção à reciprocidade do amor, a disponibilidade a deixar-se formar pela verdade, para tornar-se «cooperador da verdade», como diz S. João (III Jo 8). Consequentemente, a conversão é o verdadeiro realismo, que nos torna capazes para um trabalho realmente comum e humano. «Converter-se» quer dizer: não buscar o próprio sucesso, não buscar o próprio prestígio, a própria posição. «Converter-se» significa: cessar de construir a própria imagem, não trabalhar para construir um monumento a si mesmo, que termina, frequentemente, por tornar-se um falso deus. «Converter-se» quer dizer: aceitar os sofrimentos da verdade. A conversão exige que, não só geralmente, mas dia por dia, nas pequenas coisas, a verdade, a fé, o amor se tornem mais importantes que a nossa vida biológica, que o nosso bem estar, nosso sucesso, prestígio, nossa «vida tranquila». De fato, sucesso, pretígio, tranquilidade e comodidade são aqueles falsos deuses que, na maioria dos casos, impedem a verdade e o verdadeiro progresso na vida pessoal e na vida social. Aceitando esta prioridade da verdade, seguiremos o Senhor, tomaremos a nossa cruz e participaremos da cultura do amor, que é a cultura da cruz.
J. Ratzinger, Il cammino pasquale, pp. 19-20.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

09 Recomeçar (André Louf)

Não podemos jamais fazer parte daquela categoria de pessoas das quais Jesus disse «que não tem necessidade de conversão» (Lc 15,7) porque se creem justos: pois, em tal caso, não teríamos necessidade de Jesus. Talvez estaríamos ainda no caminho para Deus, mas sozinhos, no sentido mais «solitário» do termo, irremediavelmente sozinhos, continuamente em presa de nós mesmos, sob uma aparência de santidade que buscaríamos, em vão, realizar; estaríamos profundamente frustrados porque não encontraríamos nunca o amor verdadeiro. 

É uma grande ilusão achar-se convertido de uma vez para sempre. Não, não somos nunca simples pecadores, mas pecadores perdoados, pecadores-em-via-de-perdão, pecadores-em-conversão. Não existe outra santidade aqui embaixo, porque a graça não pode agir de modo diferente. Converter-se significa recomeçar sempre esta reviravolta interior, por meio da qual a nossa pobreza humana – aquela que Paulo chama a carne – se volta para a graça de Deus. Da Lei da letra se passa à Lei do Espírito e da liberdade, da ira à graça. Esta reviravolta não termina nunca, porque não faz outra coisa que recomeçar sempre. Santo Antão, o Grande, patriarca de todos os monges, dizia isto, de modo lapidar: «Cada manhã digo a mim mesmo: hoje recomeço». E o Abba Poimén, o mais famoso dos padres do deserto, depois de Antão, quando estava moribundo, estava sendo louvado por ter vivido uma vida beata e virtuosa, que o colocava em condições de apresentar-se a Deus com extrema tranquilidade, respondeu: «Devo começar, estava apenas iniciando a converter-me», e chorou.

A conversão, de fato, é sempre uma questão de tempo: o homem tem necessidade de tempo, e também Deus quer ter tempo conosco. Faríamos uma imagem completamente equivocada do homem se pensássemos que as coisas importantes, na vida de uma pessoa, pudessem realizar-se imediatamente e de uma vez por todas. O homem é feito de tal modo que tem necessidade de tempo para crescer, amadurecer e desenvolver todas as próprias capacidades. Deus o sabe, melhor que nós mesmos e, por isso, espera, não desiste, é indulgente, longânime: «A bondade de Deus te impele à conversão» (Rm 2,4). Não a cólera, mas, ao contrário, “to chrestón”, o seu afeto, a sua bondade, a sua paciência. No prólogo da sua regra, Bento faz um comentário impressionante: Deus está, cada dia, à procura do seu operário, e o tempo que nos dá é “ad inducias”, é uma prorrogação, um dom, um tempo de graça, concedido gratuitamente. É um tempo que podemos utilizar para encontrar Deus, ainda uma vez, para encontrá-lo sempre melhor, na sua estupenda misericórdia. Será somente mais tarde, depois de nossa morte, que poderemos viver fora do tempo, e para sempre. Hoje o tempo nos é concedido para conhecer sempre melhor a Deus: é sempre um tempo de conversão e de graça, dom da sua misericórdia.
A. Louf, Sotto la guida dello Spirito, 11-13.

André Louf - O que é ser Homem

André Louf (1927-2010) - Monge trapista de Mont-des-cats, França.
«Acredito que, para ser fecundo, o homem deve aprender a reconhecer o que ele é de verdade, e que um tal reconhecimento passa necessariamente pelo facto de acolher a sua própria filiação, a sua herança particular. Não como um fardo, como o peso do passado que pesa sobre os seus ombros, mas sim como uma porta aberta, um convite a inventar o futuro».
André Louf - "A la grâce de Dieu"
Grande monge, simples e erudito, marcou profundamente a espiritualidade do século XX, buscando na experiência dos pais do deserto, nos grandes Padres da Igreja, os fundamentos para a experiência do encontro do homem consigo mesmo, na Luz da Graça Divina, que muda tudo e faz que tudo seja o que deveria ser.
Fr. Denis OCSO, P. André Louf OCSO e D. Ruberval OSB (2007. Roma)
Em 2007, tive a sorte de encontrar-me com ele, que veio até meu quarto, no Colégio Santo Anselmo, para um café. Estava que não me cabia... Por tantos anos, seus livros me ajudaram tanto e, de algum modo muito profundo, me modelaram em uma tentativa, sempre recomeçada, de ser cristão inteiro. Antes de encontrá-lo, temia muito que acontecesse uma decepção... pois o tinha em um espaço alto e talvez tudo desmoronasse, como pode acontecer com um autor favorito, que descobrimos não corresponder exatamente ao que pensávamos. Contudo, ao escutá-lo em uma conferência maravilhosa, ao vê-lo humilde e sóbrio no meio do rodamoinho que o circundava, e a alegria espontânea de alguém que reconquistou a infância perdida, percebi que não eram somente boas idéias o que ele escrevia, e que o resultado de seu "método" de deixar-se levar pelo sopro da Graça funcionava com perfeição. Temos em português um livro ótimo dele: LOUF, André. Mais pode a graça: o acompanhamento espiritual. Aparecida-SP: Santuário; Petrópolis: CIMBRA, 1997.








quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

08 Não tentarás o Senhor teu Deus

Capitel de las tentaciones de Cristo, para la iglesia románica francesa de St Andoche de Saulieu, s. XII

As tentações espirituais, com as quais o diabo ataca os cristãos, tem uma dupla finalidade: que o fiel caia no pecado do orgulho espiritual (securitas) ou sucumba no pecado do desespero (desperatio). Ambos os pecados, porém, reduzem-se ao único pecado da tentação de Deus.

No pecado do orgulho espiritual, o diabo nos tenta, iludindo-nos sobre a seriedade da Lei de Deus e de sua ira. Ele toma nas suas mãos a Palavra da graça de Deus e nos sugere que Deus é um Deus de amor e portanto não levará à serio o nosso pecado. Com isto desperta, em nós, o desejo de pecar confiando na graça de Deus, de julgar-nos perdoados já antes de termos pecado. Faz sentir-nos seguros da graça: somos seus filhos, temos Cristo e a sua cruz, somos a verdadeira Igreja, não nos pode acontecer nada de mal. Deus não nos acusará de nenhum pecado. (...) Esta via termina com a idolatria. O Deus benévolo se torna um ídolo que serve. Mas isto é uma clara tentação a Deus, um desafio à ira de Deus.

À tentação da securitas se opõe aquela da desperatio, da acédia. Não se trata , neste caso, de atacar e colocar à prova a Lei de Deus, mas a graça e a promessa dEle. A este fim, Satanás retira do cristão toda alegria que deriva da escuta da Palavra de Deus, toda esperiência da bondade de Deus; e no seu lugar, enche o coração de medo do passado, do presente e do futuro. Culpas passadas, e esquecidas há muito, improvisamente retornam à mente como se tivessem acontecido pouco tempo faz. Aumenta a oposição à Palavra de Deus, irritação contra a obediência, e todos os desesperos, diante do futuro na presença de Deus, tomam conta do meu coração. Deus nunca esteve comigo, não está comigo, não me poderá perdoar jamais, o meu pecado é demasiadamente grave para ser perdoado; e assim o espírito do homem se revolta contra a Palavra de Deus. Pretende uma experiência definitiva, uma demonstração concreta da graça divina, pois do contrário, desesperando de Deus, não que mais ouvir sua Palavra. (...)

Nestas tentações os nossos pecados vêm à luz e são castigados pela ira de Deus, isto é, em primeiro lugar a nossa ingratidão de fronte a tudo o que Deus fez por nós até este momento: «não esqueçais os seus benefícios». «Quem me oferece um sacrifício de louvor, me glorifica... e eu o farei ver a salvação de Deus» (Sal 50,23). E a nossa atual desobediência, que não quer arrepender-se do pecado não ainda perdoado, e não quer deixar o pecado predileto. E, enfim, o nosso desespero, como se o nosso pecado pudesse ser demasiadamente grande para Deus, como se Cristo tivesso sofrido somente pelos pecadinhos e não pelos verdadeiros grandes pecados do mundo inteiro, como se Deus não tivesse grandes projetos também para mim, como se Ele não tivesse preparado uma herança no Céu, para mim. Devo agradecer a Deus pelo seu juízo acima de mim, porque me mostra que Ele me cura e me ama, e posso reconhecer em tudo isto, que fui empurrado por Satanás na máxima tentação de Cristo sobre a Cruz, quando ele gritou: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?» (Mc 15,34). Mas, onde se manifestou a ira de Deus, ali também se encontrou a reconciliação. Ali onde, atingido pela ira de Deus, perco todas as coisas, agora escuto dizer-me: «a minha graça é abundante, para que o meu poder se mostre perfeito na fraqueza» (2Cor 12,9).

E, enfim, na gratidão pela vitória sobre a tentação, sei também que nenhuma tentação é maior que o não sofrer nenhuma tentação.

D. Bonhoeffer, L'ora della tentazione, 89-95.





terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

07 Na tentação, humildes e certos da vitória

Na tentação concreta do cristão, trata-se sempre de distinguir a mão do diabo daquela de Deus; trata-se, pois, de resistência e de submissão no justo posto; isto é, a resistência ao diabo somente é possível na completa submissão à Mão de Deus.

Porque todas as tentações dos cristãos são as tentações de Cristo em seus membros, no corpo de Cristo, nós falamos de tentações em analogia com as tentações de Cristo: a tentação carnal, a alta tentação espiritual e a suprema tentação. Mas, para todas as tentações vale o que foi escrito em 1Cor 10,12ss.: «Por isso, quem está de pé, cuide-se para não cair. Nenhuma tentação, das que vos afligem, deixa de ser humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças; com as tentações, Ele vos dará também uma saída boa, e a força para suportá-la». Este passo se opõe, antes de mais nada, a toda falsa segurança e, depois, a todo falso desespero. Ninguém esteja seguro, nem por um momento, de ser poupado da tentação. Não existe tentação que não possa nos atacar, mesmo neste momento. Ninguém pense que Satanás está longe. De fato, em I Pd 5, 8 está escrito «o diabo, como um leão a rugir, está procurando a quem devorar». Nesta vida não estamos seguros de tentações e quedas, nem por um minuto. Por isso, não te orgulhes se vês que outros tropeçam e caem. Uma tal segurança se tornaria uma armadilha para ti. Portando «não te orgulhes, mas teme!» (Rm 11,20). Ao contrário, esteja pronto, em todo momento, a fim de que o tentador não tenha poder sobre ti. «Vigiai e orai, para não cairdes em tentação»(Mt 26,41). Vigiai contra os ataques do astuto adversário, rezai para que Deus vos mantenha firmes na sua Palavra e na sua Graça, eis a atitude do cristão, diante da tentação.

Mas, o cristão não deve, nem menos, temer as tentações. Se elas o atacam, não obstante, sua vigilância e oração, deve saber que pode vencê-las todas. Não existe tentação que não possa ser vencida. Deus conhece as nossas forças e não permite que as tentações as superem. É tentação humana que nos domina, o que significa que não é demasiadamente grave para nós, homens. Deus tem uma dosagem diferente para cada cristão, segundo as suas forças. Isto é certo. Quem perde a cabeça e o animo diante do aparecer improvisa e terrrivelmente da tentação, já se esqueceu o ponto essencial, isto é, que ele vencerá a tentação, sem dúvida, porque Deus não permitirá que ela supere as nossas forças.

Existem tentações que tememos de modo particular, porque nelas já caímos tantas vezes. Improvisamente reaparecem e nós já nos damos por vencidos, logo de cara. Mas, justamente a estas tentações podemos olhar de frente, com a máxima tranquilidade, porque podem ser superadas, como é certo que Deus é fiel. A tentação deve encontrar-nos humildes e certos da vitória.

D. Bonhoeffer, L'ora della tentazione, 71-73.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

06 Cristo é tentado na nossa carne

A tentação de Jesus - Le Miroir de l’humaine condition, Escola francesa séc. XV.
A tentação de Jesus Cristo colocou fim à tentação de Adão. Como na tentação de Adão toda carne caiu, assim, com a tentação de Jesus Cristo toda carne foi arrancada ao poder de Satanás, porque Jesus Cristo tomou sobre si a nossa carne, sofreu a tentação e levou-a à vitória. Por isso, todos nós portamos a carne que, em Jesus Cristo, venceu Satanás. Também nossa carne, também nós vencemos na tentação de Jesus. Dado que Jesus foi tentado e venceu, nós podemos rezar: «não nos deixeis cair na tentação!» De fatom a tentação já aconteceu e foi vencida! Cristo o fez por nós. «Olhai a tentação do teu Filho e não nos deixeis cair em tentação também a nós!» Podemos e devemos estar certos de que somos atendidos nesta oração, e devemos dizer o nosso «Amém», porque foi atendida em Jesus Cristo. De agora em diante, não estaremos mais expostos à tentação, e toda tentação ainda existente é a tentação de jesus Cristo nos seus membros, na sua comunidade. Não somos tentados, mas Jesus é tentado, em nós.
Porque Satanás não conseguiu fazer cair o Filho de Deus mesmo, ele o persegue, agora, nos seus membros, com todo tipo de tentação possível. Mas estas tentações não são outra coisa que um último assalto daquela tentação de Jesus sobre a terra; o poder da tentação foi despedaçado na tentação de Jesus. Os seus discípulos se encontram nesta tentação e isto quer dizer que o Reino é deles. E a palavra fundamental dita por Jesus aos seus seguidores: «agora vós sois aqueles que prseveraram comigo nas minhas provas; e eu dsponho que vos seja dado um Reino» (Lc 22, 28-29). Não são as tentações dos discípulos a obter esta promessa, mas a participação na história e nas tentações de Jesus. As tentações dos discípulos passam por Jesus, e as tentações de Jesus passam aos seus discípulos.
Mas participar nas tentações de Cristo quer dizer, ao mesmo tempo, participar de sua vitória e seu triunfo. Não que as tentações de Cristo cessem, e que os discípulos não devam saber mais nada; tudo ao contrário, provarão ainda tentações, mas serão as tentações de Jesus Cristo que provarão. Assim, Cristo levará à vitória também estas tentações.
É exatamente porque os seus discípulos são participantes das suas tentações que Jesus quer preservá-los de outras tentações: «vigiai e orai, para não cairdes em tentação» (Mt 26, 41). Qual tentação ameaça os discípulos nesta hora no Getsêmani, senão aquela de escandalizarem-se com a Paixão? Por isso Jesus pensa no pedido do Pai Nosso: «não nos deixeis cair em tentação». O mesmo, no fundo, se diz em Hb 2, 18: «exatamente porque foi colocado à prova e ter sofrido pessoalmente, ele está em grau de vir em ajuda daqueles que se encontram na prova». Não se trata da ajuda que pode dar somente aquele que conheceu, por experiência própria, preocupações e dores; o verdadeiro sentido é que nas minhas tentações, somente a sua tentação pode servir-me de ajuda verdadeiramente; participar da sua tentação é a única ajuda na minha tentação. Por isso, não devo ver, na minha tentação, nada mais senão a tentação de Jesus Cristo. Na sua tentação está a minha ajuda, porque somente aqui existe a vitória e o triunfo.

D. Bonhoeffer, L'ora della tentazione, 53-56.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

05 Diante do mal

Acolher o sofrimento não é complacência. Não é amar o sofrimento por si mesmo. É consentir em ser humilhado. É abrir-se ao benefício do inevitável, como um terreno que se deixa penetrar até o fundo pela água do céu.
Existe uma arte do sofrer, que, porém não deve ser confundida com a arte de cultivar o sofrimento, nem com a arte de evitá-lo.
Quem sente piedade de si mesmo e se enternece sobre sua própria dor, perde imediatamente os seus benefícios. Da mesma maneira acontece com quem se dobra sobre suas dores e experimenta um sabor perverso no saborear-lhe o amargor.
Quando o sofrimento se impõe, não é necessário rejeitá-lo nem ceder a ele. Não é necessário nem lutar, nem brincar astuciosamente com ele. Mas é necessário sim, sem auto-complacência, aceitá-lo. Tal aceitação, diga-se de passagem, não é nunca definitiva. Ela constitui também o mais alto exercício da liberdade.
A dor e a alegria têm o mesmo valor. Trata-se de dois correlativos. A dor é o avesso daquele único tecido, cujo direito é, ou será, a alegria. Mas é necessário antes aceitar o avesso, o qual se oferece sozinho, sem querer – coisa, por si mesma impossível – girar o tecido, enquanto não se conhece ainda seu lado direito. Sob a espécie da dor existe já a substância da alegria. É o que aparecerá um dia.
Por acaso, não acontece, aquele que crê, poder saborear a promessa de Jesus, no aqui e agora?
Existe somente um meio para ser feliz: não ignorar o sofrimento, e não fugir dele; mas aceitar a sua transfiguração. «A vossa aflição será mudada em alegria» (Jo 16, 20). A verdadeira felicidade não pode ser senão o resultado de uma alquimia.
Quando estiveres no cúmulo do sofrimento, olha-te, a cada tanto, com humor, e assim escaparás ao veneno que o sofrimento destila. Acredita-me, é o remédio mais eficaz que qualquer outro combate. É também mais fácil, basta que tu sejas um pouco sensível à comédia humana, sem se colocar fora dela.
Para aceitar o sofrimento não é necessário esperar que o escândalo dele tenha passado. Nem é necessário esperar que o mal, contra o qual se luta no profundo de si mesmo, deixe de sê-lo. Não é necessário que se produza uma mudança, seja no objeto, seja no juízo de valor que se é constrangido a viver. Em outras palavras, que o mal desaparecesse ou que não aparecesse mais como tal. Espera inútil e não desejável! Mal objetivo, escândalo que lhe é intrínseco, sofrimento que decorre dele: na medida em que não se pode nada diante dele, é necessário aceitar tudo isso, e não simplesmente sofrer. É a propósito de tudo isso, indistintamente, que é preciso dizer: Fiat voluntas tua! Do contrário, sem que o sofrimento seja aliviado, mal e escândalo pelo mal cumprem em nós a sua obra devastadora. Eles se derramam ilogicamente, com uma ilogicidade inscrita em uma inclinação da nossa natureza, sobre nossa relação com Deus, terminando por perturbá-la. Ao contrário, o mal, se ele foi aceito, torna aquele que sofre mais humilde e caritativo, mais paciente e mais amante; desapega-o e o eleva: é esta a única saída possível para que não que ser infectado com ele.

Lubac, H. de, Paradossi e nuovi paradossi, 89-91.

04 A conversão nasce da esperança

Ícone de Philip Davydov
«A fé que abre ao futuro» é, antes de tudo, uma fé que torna possível a conversão. E a conversão é a prática da esperança vital. Quem não tem esperança, quem não vê diante de si um futuro, não pode converter-se. Antigamente ao invés de se falar em conversão, utilizava-se o termo «penitência». Mas, na nossa língua, este termo tem um sabor de punição: quem faz penitência se pune até que não tenha remediado os erros do passado. Para a Bíblia, ao contrário, penitência é conversão, e conversão é conversão ao futuro: conversão ao Deus vivo e, por isso mesmo, renúncia à morte e a todas as potências que destroem a vida. A esperança no futuro é possível somente quando se reconhece, honestamente, o passado, aceitando-o sem auto-justificar-se. Sem dúvida, cada renúncia, mesmo aquela aos caminhos que levam à morte, é dolorosa, porque siginifica despedir-se de hábitos , que se tornaram inveterados, que são familiares. Mas a alegria pelo futuro da vida é incomparavelmente maior. Conversão é alegria de Deus e dos homens, como nos testemunha o evangelho de Lucas (cf. Lc 15, 10). Com o movimento da conversão, a esperança retorna à vida. Somente através da conversão nós podemos estar certos acerca do futuro.
A conversão envolve a nossa vida inteira, não lhe basta uma mudança no modo de sentir, mas exige uma nova prática de vida. Não são suficientes as boas intenções. Tudo o que vem inserido no movimento de conversão, torna-se pleno de esperança. Tudo o que fica de fora, permanece morto e privado de sentido. Por isso existe também uma conversão política e econômica ao futuro. Quem, no movimento da conversão, quer parar na metade do caminho e a compreende de uma maneira puramente interior, religiosa ou espiritual, bloqueia o seu futuro e destrói a sua esperança. (...)
Quem esperimenta angústia pelo futuro não pode converter-se, ainda que o queira. Quem crê em um fim catastrófico do mundo, não se converterá, porque não haveria nenhum senso. Quem, diante de si, não vê nenhum futuro, continua a andar para frente, como sempre, até que cairá para trás, no buraco que ele mesmo cavou para si. Para converter-se, é necessário ter a força de uma esperança que transforma a vida e vence o mundo. Mas nós descobrimos a força de uma semelhante esperança somente quando encontramos e reconhecemos claramente o fundamento desta mesma esperança. Aqui, não pretendo referir-me às argumentações que, pesadas e repesadas, nos ofereceriam a esperança. Entendo aqui a fonte vital da qual esta força promana, e a fonte vital da esperança está em um fututro, do qual nos vem continuamente um novo tempo, uma nova possibilidade e uma nova liberdade. É o futuro que encontramos em Jesus Cristo. É Ele o nosso futuro, é Ele a nossa esperança. Na conversão, que a fé torna possível, nós encontramos Ele, o nosso futuro e a nossa esperança.

J. Moltmann, Esperienze di Dio, 38-39. 43-44.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

03 A conversão, novo modo de existência

A participação ao corpo teândrico[1] de Cristo, à unidade existencial da comunhão dos santos, não é assegurada pelo mérito pessoal, pelas “virtudes” exteriormente reconhecidas do indivíduo, mas pela conversão, pela nova atitude de confiança em Deus, pelo entregar a vida inteira, aquela mesma vida pecadora e falida, a Cristo, na Igreja. A conversão não significa simplesmete o “melhoramento” ou ainda um “aperfeiçoamento” dos comportamentos individuais, dos sentimentos psicológicos individuais, um refortalecimento do querer individual. Todas estas coisas podem acontecer e mesmo assim o homem pode permanecer prisioneiro de sua individualidade autônoma, incapaz de amar e de participar da comunhão de amor que é a verdadeira vida. A conversão é uma mudança do modo de existência: o homem cessa de confiar em sua própria individualidade, porque compreende que existir como individualidade (até mesmo uma individualidade virtuosa) não o salva da corrupção e da morte, de sua atormentada sede existencial de vida. Por isso, ele se refugia na Igreja, onde existe como amante e como amado. Os santos o amam, dão-lhe um “nome” de alteridade pessoal e o acolhem na comunidade de seu amor, mesmo sendo pecador, e ele mesmo se esforça de amar os outros, mesmo sendo pecador, para viver livre das necessidades de sua natureza mortal. Luta para vencer suas resistências individuais, suas vontades individuais e seus impulsos autônomos, não para “melhorar-se” como indivíduo, mas para corresponder ao “amor louco” de Cristo e dos santos, aos pressupostos da vida pessoal e não da sobrevivência natural.
Assim o cristão não teme o pecado com aquele temor psicológico da culpa individual, com aquela aflição complexada pela transgressão individual que diminui o “valor moral” do seu ser individual. Ele sabe que Cristo, a Virgem Maria e os santos o amam ainda que pecador; sabe que Cristo o amou na sua condição de pecador “até a morte de cruz”. Sabe que dentro da Igreja o seu pecado se torna ponto de partida para viver o milagre da sua salvação da parte de Cristo; sabe que a condição humana ainda que nas suas fases mais “virtuosas” é toda pecado – insucesso e falência – “somente Cristo é sem pecado”. Teme o pecado somente como privação da possibilidade de corresponder ao amor de Cristo. Mas um semelhante “temor” já é um princípio de amor.


Ch. Yannaras, La libertà dell’ethos, 36-38.




[1] Teândrico: Theos= Deus; andros= homem; divinoumano, unidade das duas naturezas em Cristo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

01 Cinzas: Converter em sinal


Capela do Monastero San Lorenzo - Amandola - Itália
No caminho de Retorno ao Paraíso (Monastero di San Loranzo, Amandola Itália)

O caminho quaresmal nos é oferecido como sinal que atravessa e transforma a nossa vida, tornando-a um símbolo vivo de conversão e esperança. Sobre nossa fronte ou sobre nossa cabeça, um simples sinal da cruz, feito de nada, feito de cinzas, com a sua sobriedade, é capaz de dizer, com força, o grande combate cotidiano que cada um de nós é chamado a enfrentar e vencer contra o vazio e a vaidade da nossa existência, quando, tomando distância de Deus, na verdade nos distanciamos da vida, porque nos afastamos do amor. Então, o convite da liturgia faz-se intérprete das solicitações mais profundas de desejo de plenitude que habitam o coração de cada homem e de cada mulher. São as palavras do profeta Joel: «Voltai a mim, de todo o coração...» (Jl 2,12), das quais faz eco a exortação do apóstolo Paulo: « Eis o tempo favorável, eis agora o dia da Salvação!» (2Cor 6,2). O mistério da Quaresma começa com uma espécie de imersão nas profundidades dos mistérios de nossa existência, do qual um punhado de pó representa um lugar de reflexão e de tomada de consciência, não tanto e não fundamentalmente de quanto seja nada a nossa vida, mas de quanto ela possa ser assinalada com um sentido de plenitude, na medida em que reencontra e aprofunda a sua íntima relação com o seu Deus. O Senhor Jesus insiste sobre aquela dimensão de «segredo» (Mt 6,4) que subtrai a nossa experiência do perigo da vaidade e das sensações, colocando sua raiz continuamente em Deus.
As cinzas, este símbolo que, liturgicamente, vem de longe e é como sepultado no profundo das diversas culturas e crenças, é a memória de uma árvore – que frequentemente indica simbolicamente o homem – passado através da prova do fogo. Se é verdadeiro que não permanece quase mais nada, é também verdade que permanece o essencial. Como explica Daniel Bourgeois: «Com este simples gesto queremos dizer que mesmo nos apresentando diante Deus como mortos, podemos ainda retornar à vida graças à Ele, como o fogo que dorme sob as cinzas»[1]. A nossa vida é como um pequeno pão que lentamente é assado sob as cinzas, que aceita viver esta lenta e longa processo em um «segredo» que pode custar, e que também promete muito por si mesmo e pelos outros. O jejum quaresmal não pode ser senão um jejum esponsal, feito não de negação de si mesmo, mas de purificação e otimização do desejo do coração. O caminho que começamos tem uma meta e é a experiência do renascimento pascal, o qual exige, do nosso lado, um longo e profundo trabalho de desocupar espaço de tudo aquilo que impede nossa vida de estar à altura da sua mais profunda e verdadeira vocação. São tantas as coisas inúteis e, muitas vezes, perigosas que ocupam o nosso coração, mas talvez são as preocupações as que mais mal nos fazem. A imagem do deserto, a que a Quaresma sempre nos remete, longe de ser aquela de um lugar sofisticado no qual passar umas férias alternativas, é o âmbito de uma redução das necessidades e das exigências, para dar-se contas de que são poucas as coisas essenciais, e isto não somente a nível material, mas também a nível afetivo e emocional. A «recompensa» de que fala o Senhor Jesus no Evangelho de hoje é aquela que, vindo de fora de nós mesmos, ninguém pode nos dar, mas que podemos sentir brotar do profundo do coração, como uma pitada de serenidade, nunca antes imaginada, e que se torna sinal e sonho de uma vida possível. O Senhor Jesus nos dá as indicações para viver como justos, praticando a oração, o jejum e a esmola, que talvez hoje criariam mais gozação que admiração. Mediante estes três pilares da nossa vida de discípulos podemos expressar com o nosso corpo (jejum), a nossa mente (oração) e o nosso coração (esmola) a transformação total do nosso ser em sinal da presença do amor de Deus por cada homem.
Semeraro, M., La messa quotidiana, marzo Bologna 2011, 88-90.


[1] BOURGEOIS, D., Rétraite de Carême, Cerf, Paris 1990.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O homem Merkabah do Senhor

«O beato profeta Ezequiel narra uma visão e uma aparição divina e gloriosa que contemplou ( cf. Ez 1,1s; 10,2s), e a descreveu plena de mistérios inefáveis. Viu, de fato, na planície, um carro de querubins, quatro eram os viventes espirituais, dos quais, cada um tinha quatro faces: a primeira era de leão, a segunda de águia, a terceira de touro e a quarta de homem. Cada face era provista de asas, de modo que não se distinguiam nem a parte anterior, nem a posterior. O seu dorso era coberto de olhos, e também o seu ventre, e não havia neles nenhum lugar que não estivesse cheio de olhos, e ao lado de cada face, existiam rodas, encaixadas umas nas outras; e, nas roda, havia um espírito. E viu uma aparência de homem sentado sobre elas; o escapelo de seus pés tinha a aparência de uma safira. O carro levava o querubim, e os seres vivos levavam o Senhor-Condutor que os conduzia. Onde quer que andasse, era sempre na direção de um dos rostos. E viu sob o querubim como que uma mão de homem, que o sustentava e o carregava.
O que o profeta percebeu como real era verdadeiro e indubitável. Todavia , a visão deixava entrever uma outra realidade e figurava uma coisa misteriosa  e divina, um mistério escondido, na verdade, por séculos e gerações (Cf. Col 1,26), mas que tornou-se visível nos últimos tempos (Cf. 1Pd 1,20) através da manifestação de Cristo. O profeta, de fato, contemplou o mistério da alma que recebe o Senhor e se torna o trono de sua Glória ( cf. Mt 19,28; 25,31). Porque a alma, julgada digna de comungar com o Espírito na sua luz, e toda iluminada pela beleza de sua glória inefável, que a preparou para que se torne um trono e morada para Ele, esta alma se torna toda ela luz, toda ela rosto, e toda ela olho. Nela não existe mais nada de obscuro, mas tornou-se toda inteira espírito e luz; está toda cheia de olhos, não tendo mais nem parte anterior nem posterior; mas sendo em cada lado, rosto, enquanto é elevada acima de si e, ali, repousa a inefável beleza da glória luminosa de Cristo.
Como o sol é de todos os lados, idêntico a si mesmo, não tendo nem parte posterior nem inferior, mas sendo todo ele resplendente de luz, todo inteiro luz, sem nenhuma diferença entre as suas partes; ou como o fogo, o esplendor mesmo do fogo, é por todos os lados semelhante a si mesmo, não tendo em si, nem face anterior ou posterior, nem alguma coisa de maior ou menos, assim a alma, perfeitamente iluminada pela inefável beleza da glória luminosa do Rosto de Cristo, em comunhão com o Espírito Santo, julgada digna de se tornar morada e trono de Deus, aquela alma se torna toda olhos, toda luz, toda rosto, toda glória e toda espírito. Deste modo, o Cristo a prepara, carrega-a e conduz, sustenta-a e lhe dirige, Ele a arruma e adorna de beleza espiritual. Está escrito, de fato: «uma mão de homem estava sob os querubins» (Ez 1,8; 10,8). Porque aquele que é levado por este carro é, também, aquele que o conduz.
Os quatro seres vivos que levavam o carro eram a figura das faculdades que regem a alma. De fato, como a águia reina sobre as aves, o leão sobre os animais selvagens, o touro sobre os animais domésticos e o homem, sobre a criação, assim acontece com as potências da alma, que reinam sobre as outras. Trata-se da vontade, da consciência (moral), do intelecto e da faculdade de amar. Elas dirigem o carro da alma, e nele, Deus repousa. Mas, segundo uma outra interpretação, a visão de Ezequiel aplica-se à Igreja celeste dos santos. Como este trecho conta que os seres vivos estavam nas alturas, cheios de olhos, e que era impossível enumerar aqueles olhos, assim também medir a sua elevação, porque não era cabível no conhecimento; assim também é dado a todos os homens o contemplar e admirar as estrelas do firmamento, mas não de conhecer nem de precisar-lhes o número; e ainda, como é dato a todos de usufruir das plantas da terra, mas não de poder contá-las, assim também é a Igreja dos santos no céu: entrar ali e saborear as delícias é dado a todos que querem combater, mas conhecer o número e fazer as contas, pertence somente a Deus.
O Condutor vem, pois, conduzido e levado pelo carro e pelo trono dos seres vivos que são todos olhos, isto é, de toda alma que se tornou o seu trono e sede, desde quando se assentou nela e a dirige com as rédeas do Espírito, conduze-a onde lhe parece justo. De fato, como os seres vivos espirituais não podiam andar onde queriam, mas deviam seguir a vontade e as intenções daquele que lhes montava e lhes dirigia, assim é Ele que tem as rédeas da alma e a conduz com o seu espírito; eles, de fato não avançam seguindo a sua vontade; e às vezes, agrada-lhe vir no corpo e nas faculdades; às vezes ainda, agrada-lhe chegar até às extremidades da terra, para conceder-lhe a revelação dos seus mistérios (cf. Rm 16,25). Ótimo, benéfico, único vero Condutor! Os próprios corpos serão honrados no dia da ressurreição, enquanto a alma já é glorificada antes e unida ao Espírito»[1].


[1]Macario il Grande, Hom I, 1-3, PG 34, 451AB; Les homélies spirituelles de saint Macaire, Spiritualité Orientale n. 40, Abbaye de Bellefontaine 1984, 89-91.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Querer tudo e contentar-se com pouco


O dom de saber maravilhar-se está em estreita relação com pobreza: o frescor do olhar depende da capacidade de desembaraçar-se de si mesmo e está ligada à simplicidade de reconhecer que não se tem nenhum direito: quê coisa possuímos que não nos tenha sido dada? (cf. I Cor 4, 7). E, no mesmo sentido, o dom de maravilhar-se é muito próximo do espírito e infância. Não se trata aqui de uma regressão infantil; não se deve tender à infância como uma parada no crescimento ou uma volta atrás, ms caminhar na direção da infância futura, que está na ordem do Reino.
O segredo do espírito de maravilhar-se reside, talvez, na capacidade de conjugar duas atitudes quase contraditórias: aquela de querer tudo e aquela de contentar-se com pouquíssimo.
Mas estas duas atitudes não podem estar uma sem a outra. Querer tudo, agora, é impaciência do desejo, o estágio do lactente. E crescer é aprender a transformar as necessidades em desejos e administra-los. Querer tudo é viver na irrealidade que sempre desilude, porque aquele desejo imediato recai sobre nós, como uma acusação de insucesso e de impotência. Então, é verdadeiramente a morte do maravilhar-se.
Por outro lado, contentar-se unicamente com pouquíssimo é insidiar-se na mediocridade, é ter podado tanto as asas de nossos desejos, que eles não se sustentam mais. Estar satisfeito a preço baixo: atitude do cético, também ela é a morte do maravilhar-se.
Existe, no entanto, em cada uma destas atitudes, alguma coisa de justo: querer tudo corresponde aquele desejo do infinito em nós, é o que nos caracteriza como seres humanos, chamados a ser infinitamente mais do que somos. E isto é sinal de que fomos feitos por Deus para nos tornarmos seus hóspedes e seus amigos. Mas, por isso mesmo, este desejo infinito não deve fixar-se e finalizar-se em outra coisa que não seja Deus mesmo e seu Reino. Desejar infinitamente alguma coisa finita não seria o cúmulo do absurdo? É esta, no entanto nossa eterna tentação. Eis porque – e aqui a fé alcança a psicologia – este desejo deve ser continuamente reconduzido para além de si mesmo.
Por outro lado, ainda, contentar-se com pouco esconde uma sabedoria, um sadio realismo, uma autêntica humildade, a consciência de viver num mundo em transformação e de estar em uma situação de exílio e de êxodo. Já pudemos experimentar o quanto as coisas sejam difíceis e como poucas sejam bem sucedidas, e nunca aos cem por cento. Sim, é sabedoria saber reconhecer o que é positivo, mesmo se está situado mais próximo do nada do que do tudo. Sim, é sabedoria dizer: «não é tudo, mas é mais que nada!».
É igualmente verdadeiro, porém, que este são realismo não pode manter-se como sabedoria autêntica, pobreza espiritual e fonte de maravilha se ele não é substituído pelo desejo infinito, que o eleva e, imensamente, o dilata. Como também, o desejo infinito não pode permanecer abertura sobre o futuro se ele não for substituído pela cotidiana disponibilidade de contentar-se com pouco. E assim, o presente, na sua relatividade, nas suas ambigüidades, não será desvalorizado pela expectativa do futuro, quer dizer, do Reino. Na verdade, querer tudo e contentar-se com pouco é o segredo de uma maravilha que não é nem ingênua nem ilusória.
P.-Y. Emery, Le don d’émerveillement, 200-201.