segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

22 de Dezembro: O Magnificat

O Magnificat traz à tona o conteúdo e o significado da Anunciação, à partir de três situações humanas: aquela religiosa, aquela socio-política e aquela étnica; cada uma das quais, sozinha, não bastaria para interpretar o evento. A conjunção das três linguagens distintas tende, precisamente, a penetrar mais profundamente no Mistério. Cada uma desta aproximações tem vantagens e limites. O filho que Maria leva em seu ventre é a resposta de Deus às aspirações religiosas «daqueles que o temem», às aspirações socio-políticas dos fracos e necessitados, e daquelas nacionais, do povo judaico. Todavia, mesmo respondendo a estas aspirações, vai muito além de suas espectativas.

Aos olhos do evangelista Lucas, é muito significativo que a mãe do Salvador tenha sido escolhida entre as filhas de Israel, que pertença à estirpe de Abraão dos patriarcas, ainda que seja verdade que a salvação, na qual creem os cristãos, não seja questão de carne e sangue. Era preciso que a Salvação universal viesse de Israel, afim de que se manifestasse a fidelidade de Deus às suas promessas e a continuidade, que faz da Igreja, a herdeira de Israel.

É também significativo que a mãe do Salvador tenha sido escolhida no interno de um grupo religioso de tementes a Deus, os quais querem estar inteiramente a seu serviço, mesmo que seja, também verdade, que a Salvação anunciada pelo evangelho não seja reservada somente às pessoas que se distinguem pela sua religiosidade: muito mais que isso, Lucas insistirá sobre o amor de Deus pelos pecadores, os quais são todos chamados à conversão. E não é, enfim, menos significativo que a mãe do Salvador tenha sido escolhida da classe social mais humilde, aquela dos pequenos, dos fracos, tornando-se, assim, a primeira testemunha de uma salvação, cuja boa nova é diretamente destinada aos pobres. E isto não quer demonstrar a idéia de que a salvacão trazida ao mundo por Cristo, seja reservada a uma classe social, mas revela sobretudo a atitude de um Deus que não aceita a injustiça, sobre a qual estão fundadas as sociedades humanas, nas quais a lei do mais forte é sempre a melhor, e as preferências de um Deus que privlegia exatamente aqueles que a sociedade dos homens despreza e rejeita: no Reino deste Deus, os primeiros deste mundo serão os últimos e os últimos, primeiros. (...)

O Deus de quem o Magnificat celebra a santidade, a misericórdia e a força, é certamente o Deus que os «tementes a Deus» servem, todavia a continuação do evangelho nos faz saber, sem dúvida, que a sua solicitude se desdobra de modo particular àqueles que dEle se afastaram. A estes, pede que retornem, para que lhes possa perdoar tudo.

O Deus celebrado no Magnificat é e permanece o Deus de Israel, o Deus que chamou Abraão e cujas promessas, em favor de sua descendência, jamais falharão. Todavia, é também o Deus que quis que todos os homens pudessem se beneficiar da Salvação concedida a seu povo, independentemente de sua origem étnica.

A Salvação, enfim, que Deus quer assegurar a todos os homens, não prescinde das situações concretas de suas existências, mas comporta, de modo essencial, uma reviravolta das situações de injustiça, que agravam sobre os fracos e necessitados. O Deus do Magnificat se coloca, resolutamente, do lado dos pobres e dos que não tem nenhum poder.

O Magnificat não define Deus, mas fala dEle somente em função dos diversos aspectos da intervenção salvífica, iniciada com a Anunciação. E deste evento, Lucas nos apresenta Maria, como a primeira testemunha.

J. Dupont, Le Magnificat comme discours sur Dieu, 338-342.



quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

18 de Dezembro: o Justo José

Anunciação a S.José, têmpera acrílica sobre papel, 2007, Monastero di San Lorenzo, Amandola, Itália.

Em que consiste a justiça de José? Nada nos é explicado sobre a sublime justiça pela qual José acreditou na intervenção divina; ao contrário da Virgem, ele não tem nenhum papel na concepção virginal. A justiça se cumpre quando permite a Deus superar as dificuldades que se criam para um nascimento sem pai, difamante para os homens. Em compensação, José tem um papel capital no nascimento legal. Como Maria obedeceu na qualidade de serva do Senhor para conceber o Filho do Altíssimo, assim também ele deve obedecer para tornar-se o pai. A dúvida que o entrega às suas forças não é relatada por interessar-se em suas angústias pessoais, ou às virtudes morais, mas por revelar como se realiza o plano divino. Somente Deus conduz o desenrolar-se dos acontecimentos, mas nem por isso despreza a participação dos homens. É em nome da estirpe de Davi, em nome de Israel, como representante do Povo Eleito que, por ordem divina, o justo José aceita o mistério da Nova Aliança. Se Lucas, evangelista de Maria, nos conta a concepção e o nascimento do Filho da Virgem, Mateus refere o nascimento do Messias, o Filho de Davi.

José se mostra justo não enquanto observa a Lei que autoriza o divórcio em caso de adultério, nem porque se demonstra bom, nem porque ele deva prestar justiça a uma inocente, mas pelo fato de que ele não queira passar-se por pai do menino, Filho de Deus. Se ele teme tomar Maria como sua esposa, não é por uma razão profana; é porque ele descobre uma «economia» superior àquela do matrimônio que pretendia contrair.

O Senhor modificou o seu desígnio sobre ele; que ele aceite de assegurar o futuro de sua eleita. José se retira, tendo o cuidado, na delicadeza da sua justiça para com Deus, de não «divulgar» o mistério divino de Maria. (...)

José não é somente um modelo de virtude, mas o homem que exerceu uma função indispensável na economia da Salvação. O justo José pode ser comparado a João, Precursor.

João anuncia e indica o Messias; José acolhe o Salvador de Israel. João é a voz que se faz eco da tradição profética; José é o Filho de Davi que adota o Filho de Deus. Por motivo de sua proclamação oficial, João é Elias, o grande profeta; por motivo do humilde acolhimento que ele faz ao Emanuel na sua estirpe, José é o Justo por excelência. Como todos os justos, ele espera o Messias, mas somente ele recebe a ordem de estender uma ponte entre os dois Testamentos; muito mais que Simeão que toma Jesus em seus braços, ele acolhe Jesus na sua própria estirpe. José reage como os justos da Bíblia diante de Deus que intervem na sua história: como Moisés que descalça as sandálias, como Isaías aterrorizado com a aparição do Deus três vezes Santo, como Isabel que se pergunta como a Mãe de seu Senhor venha até ela, como o centurião do evangelho, como Pedro que diz: «Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador» (Lc 5,8).

X.-L. Dufour, Studi sul vangelo, 103-108.

sábado, 11 de outubro de 2014

Os olhos abertos de Cristo crucificado

Escultura em madeira, Porta da igreja de Santa Sabina, Roma, século IV

O fato dos olhos abertos do Cristo sobre a Cruz é uma tradição muito antiga. A arte sacra não busca representar uma fotografia momentânea do evento sacro, como ele foi no passado, mas sim o que ele é na verdadeira Realidade, no "Agora" da eternidade, para nós. Por isso, muitos dos Mistérios da Vida de Cristo eram representados segundo modelos herdados da Antiguidade, para mostrar o seu significado profundo, aquilo que eles tem a nos dizer, no "hoje" daquele que o contempla. Por isso, eles sobrepunham passagens bíblicas na mesma cena, para que, na transparência, formassem uma imagem com mais dimensões que o 3D! 
Miniatura do Tetra Evangelho de Rabulla, de origem síria, séc. VI, Biblioteca Medicea, Firenze, Itália.
Bom Jesus de Bouças, Portugal, séc. XIII
O modo de dizer que Jesus morreu na Cruz e ressuscitou, que justamente através do seu aniquilamento Ele venceu a soberba do inimigo e derrotou a morte, que Ele se entregou livremente por nós, era representá-lo vivo e triunfante sobre a Cruz. Um dos modos de mostrar esta vida eram os olhos abertos, outros o gesto generoso e senhoril do corpo todo, com uma paz que emana de todo o conjunto. O Evangelho de João joga simbolicamente com as palavras, para mostrar que, na Cruz, Ele se manifesta como verdadeiro Rei. Como representar o invisível? através de símbolos visíveis! 
Este marfim, que está no Museu do Louvre, e é de 420-430, mostra dois aniquilamentos, o de Judas e o de Jesus,
O primeiro, na Árvore da Vida (note-se o ninho de passarinhos...) encontra a Morte, por não se deixar perdoar,
como o velho Adão, depois do pecado. Alusão esta da bolsa das moedas que tem uma alça parecida com uma serpente.
A Cruz de Jesus é uma Cruz gloriosa, com as pontas que se abrem, e as atitudes são serenas e nobres:
Contempla-se um Mistério! A Beleza provoca a elevação e o silêncio.
Qual é a essência do evento? O sofrimento ou a vitória? Evidentemente é a Vitória, pois milhares sofriam e morriam na cruz, isso era o que se via continuamente, já que a crucifixão foi abolida somente no império bizantino. Não somente representavam com os olhos abertos, mas também vestido finamente, como um sacerdote, pelas razões ditas acima. Estes traços permanecerão uma constante na iconografia da crucifixão por quase mil anos! Olhos abertos ou fechados aparecerão, mas será sempre o conjunto dos elementos a viabilizar o discurso da vitória sobre o mal e a morte.

Afresco em Cimitile, Itália, séc. VIII.
Neste bronze e esmalte do séc. XIII (Limoges) vemos todo o Mistério representado:
A Paixão (pelos cravos e a Cruz), a Ressurreição (pela vestimenta real)
e pelas flores, que são como uma explosão de primavera, e a Ascensão
que nos conecta diretamente com a Eternidade: nosso Rei conhece nossa dor,
conhece de dentro dela, e sua presença nela, assegura a vitória.
Relicário do séc. VII, nos Museus Vaticanos.
Afresco da Crucifixão, São Gaudioso, séc. VI, Nápoles, Itália.
Stauroteca (relicário da Santa Cruz) Fieschi-Morgan - início do séc. VII - Siria
Vemos a unidade do Mistério que une Encarnação, com a Anunciação e Natividade
e embaixo, a Cruz e Ressurreição, com a descida aos infernos para o resgate de Adão e Eva.
Tudo se trata de uma Grande Descida dos Céus dos céus até os abismos, onde nos metemos...
Ícone da Crucifixão, do séc. VII, do Mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai.
Bronze e esmalte, Geórgia, séc. X.

O século XIII trará grandes mudanças na sociedade e na teologia e espiritualidade cristã. O advento das
Ordens mendicantes e sua pregação, colocarão grande ênfase na humanidade de Jesus, sem negar a divindade, evidentemente. O Santo Corpo do Senhor começa a pender da Cruz, no peso do ser humano, os personagens também manifestam a dor de forma sempre mais intensa. O silêncio ainda se experimenta, e a Vida triunfa sobre a morte, mesmo com as mudanças de linguagem.
No séc. XIV, o Corpo do Senhor se esvazia, no grande Mistério da Quênose (não se apegou à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de Servo), pende sempre mais, os sinais da dor ficam evidentes, ainda que a luminosidade do corpo, e a paz continuem presentes, mostrando que este não é o fim!
Quando acontecerão mudanças drásticas na história da humanidade e na teologia e espiritualidade, as imagens vão seguir o mesmo caminho, perdendo seu aspecto mistérico-simbólico pouco a pouco, dando espaço a um emocionalismo sempre maior, e consequentemente, a um naturalismo e sensualidade crescentes, com o fim de provocar a sensação e emoção diante da dor do Senhor: Sentir-se pecador diante do sacrifício do Senhor! 
Têmpera sobre madeira dourada, séc. XIV. O drama e a dor, os contrastes humanos, as potências do Céu, fazem ver que definitivamente, algo mudou, não o Mistério, que continua o mesmo, mas os caminhos para ele são vários: o da contemplação silenciosa, mas também o da emoção pessoal que vagueia entre a indignação contra os soldados que crucificaram Jesus, a presença de S. Longinus que reconhece a divindade dEle, Maria Madalena que beija os pés ensanguentados, a Virgem Maria que desfalece de dor, as mulheres que a sustentam, os anjos que recolhem o Santíssimo Sangue, e se contorcem de sofrimento.
O século XV levará a reflexão adiante, e a Crucifixão torna-se uma reflexão sobre a Bondade Divina e a maldade humana. Esse quadro do renascimento alemão, mostra o naturalismo crescente, o grotesco dos corpos, o perfeccionismo nos detalhes, tudo é um drama e também uma cena composta. A banalidade se mistura com o sagrado, e o Mistério é diluído em humanidade, e sobre a cena se "sente" e se "pensa", mas sempre como um espectador externo, cada vez mais longe.
Ainda no séc. XV, teremos o primeiro renascimento, no qual os modelos grego-romanos começam a ser utilizados,  ainda que com critérios ligados à Tradição, abrindo espaço ao naturalismo. Esta escultura é de Donatello, feito em 1406, e é conservado na Chiesa della Santa Croce, em Florença, Itália.
Contemporâneo de Donatello, Bruneleschi esculpiu este Crucifixo entre 1410-15, e encontra-se na Chiesa di Santa Maria Novella, na mesma Florença. Ainda que tenham sido duas esculturas escandalosas para a época, pelo seu naturalismo e sensualidade, pouco a pouco, o modela vai fazendo sua estrada.
A idéia é aquela de provocar a experiência de que o Amor ama assim, dando a vida, mesmo no caso extremo, e é uma idéia… na sucessão das mudanças na iconografia, elas conservam muitos traços das anteriores, e somente pouco a pouco muda radicalmente em relação aos primeiros modelos. 
Matthias Grünewald, Políptico de Isenheim: Cristo Crucificado, detalhe, 1515. O naturalismo do renascimento italiano chega nos países do Norte, e na Alemanha, e produz obras de arte de grande valor como esta. Cristo é o homem das dores e do sofrimento, mas aqui nem mesmo a paz se percebe, somente a entrega em meio à violência dos instrumentos da Paixão. Vale a pena ver todo o conjunto, onde está representado todo o Mistério, também a Encarnação e a Ressurreição: http://it.wikipedia.org/wiki/Matthias_Grünewald#mediaviewer/File:Grunewald_Isenheim1.jpg 
Na maioria das imagens do crucificado, vamos encontrar os traços comuns de uma paz e de uma entrega total. Nas mais contemporâneas, nem isto… algumas imagens vão passar estranhas mensagens, sobretudo o contrário daquilo que as primeiras queriam dizer, ou seja, dizem que a morte venceu ou não aconteceu!
No século XVII, em 1630, Diego Velasquez pinta esta Crucifixão. O renascimento e suas reflexões filosóficas passaram, e agora resta a pura emoção diante da serena e sensualíssima atitude do Cristo. As marcas da Paixão são discretas, estamos diante de um modelo que posa para um pintor, pode ser que este quisesse mostrar, deste modo, a vitória sobre a morte, mas o efeito não é exatamente este, pois ainda que tenhamos certeza de que o personagem em questão está vivo, não cremos que ele morreu de fato...
Uma imagem literária simpática é aquela do Leão, que segundo os livros da Antiguidade, dormia com os olhos abertos! O que significava, também por outros motivos simbólicos, que o dito animal tem um poder especial sobre a morte! De fato, segundo os mesmos textos, os filhotes nascem da leoa mortos, e será o bafo quente do leão a ressuscitar os leõezinhos. Nota-se como uma imagem simbólica consegue dizer muito mais que um tratado filosófico. Não por nada, nos primeiros séculos se dizia que Jesus morre como um cordeiro e ressuscita como um leão! Porque a sua morte-ressurreição (inseparáveis) nos dão a verdadeira vida!

sábado, 29 de março de 2014

Etty Hillesum: reencontrar a vida no turbilhão do Holocausto

Justamente, Alessandro Barban (prior dos beneditinos camaldulenses) e Antonio Carlo Dall'Acqua começam o seu livro sobre Etty Hillesum, intitulado Osare Dio (Cittadella Editrice, 284 páginas), com uma fotografia tirada em 1931. É o retrato de uma família judaica composta por pai, mãe e três filhos, que vive na Holanda, mas poderia ser a de centenas de milhares de outras famílias judaicas de classe média de toda a Europa.
A análise é do escritor e crítico literário italiano Giorgio Montefoschi, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 18-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sabemos que o pai, Louis Hillesum, é um professor de latim e grego, tímido, interessado principalmente nos seus estudos; que a mãe Riva (Rebeca) é de origem russa, emigrou para a Holanda depois de um pogrom e tem um caráter difícil, marcada pela loucura; que os dois meninos, Jaap, de 15 anos, e Mischa, de 11 (se tornarão: um médico, e o outro, um refinado pianista), têm grandes problemas psíquicos; e que Etty, a menina morena de 17 anos, que, com olhos intensos, tem uma péssima relação com os pais e está passando pela "idade ingrata" em que lutamos com nós mesmos.
Tudo isso, porém, tem uma importância relativa. O que conta, no retrato fotográfico em que os Hillesum exibem com confiança o seu decoro burguês, é a sua "normalidade": a homogeneidade de milhões – desta vez – de famílias europeias não judaicas, mais ou menos bem de vida, mais ou menos felizes. Passar-se-iam 12 anos, e os Hillesum, sem saber naquele momento, juntamente com outros seis milhões de judeus ignaros e inocentes, seriam varridos da face da terra.
O percurso espiritual de Etty Hillesum, considerada por muitos como uma das almas mais elevadas do século XX, não pode ignorar a tragédia do povo judeu. Provavelmente ela não teria ocorrido dessa forma, ou até mesmo teria permanecido sem expressão – um "fácil idílio" com Deus, cultivado atrás de uma escrivaninha, em uma cômoda sala com muitos livros e sempre belas flores, e do lado de fora os quietos canais de Amsterdã – se a sua vida não houvesse sido "jogada na dor".
Conhecemo-lo através de um exíguo número de Lettere [Cartas] (publicadas pela editora Adelphi), escritas principalmente do campo de repartição de Westerbork, ao longo de um ano (de 14 agosto de 1942 a 7 de setembro de 1943: data da partida de Etty e dos seus para Auschwitz), e por um interminável Diário de mais de 800 páginas compactas (publicado também integralmente pela Adelphi), que vai do dia 8 de março de 1941 a 12 de outubro de 1942: 17 meses, um tempo muito breve (como observado por Barban e por Dall'Acqua), no qual a lagarta se torna borboleta e se cumpre uma transformação incrível.
O dia 8 de março de 1941 marca um momento fundamental na existência de Etty Hillesum: o encontro com Julius Spier. Spier, judeu alemão de 54 anos, que se refugiou na Holanda depois de ter deixado sua esposa e dois filhos, noivo de uma jovem garota, Hertha (que emigrou para a Inglaterra em 1938), é uma psicoquirólogo (um psicanalista que parte, para a sua análise, do estudo da mão), seguido na sua formação e apreciado por Jung. Não é um homem bonito: é robusto, corpulento, mas tem uma boca extremamente sensual e dois olhos que "transpassam o tempo". Até aquele momento, antes de conhecê-lo, Etty viveu desordenadamente: se formou sem entusiasmo em jurisprudência; teve experiências sexuais e sentimentais que a deixaram insatisfeita (atualmente ela tinha um relacionamento fixo com Han Wegerif, um senhor de nada menos do que 62 anos); desperdiçou os seus talentos. Agora, em determinados momentos, ela sente que as suas ideias são "muito vagas, pendem como vestidos muito largos" do seu corpo; em outros, gostaria de "desaparecer, se dissolver, fundir-se harmoniosamente com a terra e o céu"; sofre pelo caos que reina em si mesma; busca um homem para possuir por toda a vida e, ao mesmo tempo, sabe que essa posse absoluta não é a posse do Absoluto; invoca a Deus, que ela intui que está dentro de si mesma, mas tem a impressão de que é uma fonte coberta por pedras e areia. Spier, que em Amsterdã tem um certo sucesso, é o homem do destino. Os seus métodos terapêuticos, na verdade, são (como destacam Barban e Dall'Acqua) bastante estranhos e, no mínimo, discutíveis. Baseiam-se (além da leitura da mão) na convicção de que corpo e alma estão estreitamente ligados e devem viver em harmonia. Para que os seus pacientes possam alcançar essa harmonia, libertando-se das regressões e dos medos que os bloqueiam, Spier faz uma luta com eles. Uma luta propriamente dita: física, até mesmo violenta. É realmente um método estranho e, se quisermos, no limite da deontologia médica: porque, quando a paciente é uma mulher, é inevitável ou quase que da luta, do contato convulsivo dos corpos, se passe para outros gestos, talvez para carícias relutantes. É exatamente o que acontece com Etty, que muito logo se sente atraída Spier ("A sua boca, de repente, era tão selvagem e demoníaca, e floresceu com sensualidade (...) A carne, eu só queria a carne") e se apaixona. Mas Julius – que é um homem culto, religioso, sensível e honesto no seu desejo para fazer com que emerja em cada indivíduo a parte mais profunda e verdadeira do seu ser – também se apaixona por Etty. Assim, entre os dois, se cria uma situação extremamente complexa e contraditória, feita de pulsões eróticas e inibições, explosões sentimentais e sentimentos de culpa (Spier não quer deixar a sua namorada, Etty continua fazendo amor com Han, até engravida e aborta), na qual, em essência, esse homem e essa jovem mulher que poderia ser sua filha põem a si mesmos como um obstáculo (talvez necessário) para conseguir um amor diferente, ao qual, no entanto, tendem cegamente como a algo misterioso, ainda obscuro, indefinido. Enquanto isso, a situação dos judeus piora. Em junho de 1942, são promulgadas também na Holanda as leis de Nuremberg: começam as perseguições, as deportações. Os judeus devem ser aniquilados, desaparecer. E eis que Deus chama. Desce no coração de Etty: onde já habita. Um dia, de repente, Etty se encontra (não decidiu fazê-lo) ajoelhada no meio da sala. Um dia, lê o trecho da Carta de Paulo aos Coríntios sobre a caridade e sente que essas palavras são "como varas" na dureza do seu coração. Novamente cai de joelhos. As ameaças e o terror crescem, as barbáries se acumulam. E, lentamente, as pedras e a areia se erguem do coração de Etty, e aquela fonte escondida brota com um poder inaudito. É o amor de Deus: que Etty reconhece em todo ser humano, começando pelos seus carnífices, e na vida. Uma vida que, mesmo nesse abismo de desespero, não consegue deixar de considerar como plena de significado e maravilhosamente bela. Uma noite, está no seu leito e, através da janela, olha para o céu e as árvores. E escreve: "A guerra, os campos de concentração (...) tudo isso existe, eu sei, mas, em um momento de abandono, eu me encontro no peito nu da vida, e os seus braços me circundam tão doces e protetores, e as batidas do seu coração eu ainda não sei descrever: tão lento e regular e tão doce, quase abafado, nunca tão fiel, como se nunca tivesse que parar, e também tão bom e misericordioso". Em outra página, ela escreve: "Acho a vida bela e me sinto livre. Os céus se estendem dentro de mim, assim como acima de mim. Acredito em Deus e nos homens, e ouso dizer isso sem falso pudor". Mais adiante, ela escreve ainda: "Uma coisa é certa: deve-se contribuir para aumentar a reserva de amor sobre esta terra. Cada migalha de ódio que se acrescenta ao ódio exorbitante que já existe torna este mundo inóspito e inabitável". Agora, os eventos progridem. Etty poderia se esconder, fugir. Não o faz. Primeiro como empregada do Conselho Judaico, depois como prisioneira destinada ao extermínio, entra no campo de Westerbork. O que ela vê com os seus olhos, o que ouve com os seus ouvidos, é o horror: fome, miséria física e mental, degradação, humilhação de todos os tipos, crianças arrancadas dos berços, esposas separadas dos maridos para sempre. E, todas as segundas-feiras, a chegada daquele trem composto por carros de gado que é preciso encher com seres inocentes e que na terça-feira parte para a morte. Etty não se isenta de nada. Spier morreu de câncer, e o seu amor já é todo pelos outros: pelo seu próximo, sustentado por aquela fonte que continua jorrando no seu coração. Mas Deus está no coração de todos.
"Uma coisa, porém, torna-se cada vez mais evidente em mim", escreve Etty um dia, já diante da inevitabilidade do seu destino, "isto é, que Tu não podes nos ajudar, mas que somos nós que devemos Te ajudar, e desse modo ajudamos a nós mesmos. A única coisa que podemos salvar nestes tempos, e também a única que realmente importa, é um pequeno pedaço de Ti em nós mesmos, meu Deus. E talvez também possamos contribuir para desenterrar-Te dos corações de outros homens. Cabe a nós Te ajudar, defender até o fim a Tua casa em nós".
Estamos no auge do caminho espiritual dessa jovem judaica que lia os Salmos e os Evangelhos: ajudar Deus. Uma ideia maluca e revolucionária, como apontam Barban e Dall'Acqua, que subverte a relação do ser humano com o seu Criador.

Etty Hillesum morreu em Auschwitz em novembro de 1943. Do trem, ela conseguiu jogar um cartão postal endereçado à sua amiga Christine van Nooten. Estava escrito: "Deixamos o campo cantando".
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/517842-etty-hillesum-reencontrar-a-vida-no-turbilhao-do-holocausto

Etty e o poço

«Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo. Imagino que há pessoas que rezam com os olhos apontados ao céu. Essas procuram Deus fora de si. Há igualmente pessoas que curvam profundamente a cabeça e a escondem nas mãos, penso que elas procuram Deus dentro de si.»


Etty Hillesum, Diário, 26 de Agosto de 1941, terça-feira à tarde, 112.

terça-feira, 11 de março de 2014

TQ 01 3 Converter ... em efeito

Homem orante com a filha - estela funerária pagã - Kom Abu Bihu séc. III-IV, Egito.
Depois de termos sido como que iniciados, de modo adequado, nas «atividades» quaresmais do jejum e da esmola, eis que hoje o Senhor se faz, para nós, um mestre de oração. Antes de colocar no nosso coração e sobre nossos lábios algumas expressões capazes de traduzir a necessidade da nossa vida e o desejo de nosso coração, o Senhor Jesus nos indica, indiretamente, como a atmosfera mais apta à oração é a moderação e uma espécie de quietude de fundo: «Quando orardes, não useis muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por força das muitas palavras» (Mt 6,7). Os versículos que a liturgia nos oferecem hoje são justo aqueles que são omitidos – quase colocados de lado, para poder dá-los mais adiante – na perícope que lemos na Quarta-feira de Cinzas. Podemos, deste modo, acolher este evangelho da oração, depois de ter meditado, no primeiro domingo da quaresma, o anti-evangelho das pretensões diabólicas que tendem a confundir, em nós, a imagem autêntica do Pai, de que Jesus se mostra filho através da escuta, e não por consequência de privilégio. Quando o Senhor nos diz para não desperdiçar palavras, não quer calar-nos, mesmo porque, imediatamente depois, doa-nos algumas palavras que «nós ousamos dizer» ao Pai, com toda a nossa confiança filial. Muito mais, o Senhor Jesus deseja que a nossa oração tenha, como origem e como meta, a consciência, que ela não força, mas muito mais, coloca-nos nas condições para que o Pai possa agir. De fato, «sabe do que precisais, muito antes que vós o peçais» (6,8). Ter consciência do fato de não poder contar nada a Deus que Ele já não saiba, já é um modo para ir contar-lhe tudo, pela alegria de sentí-lo pai e de sentir-nos filhos. Exatamente como faz uma criança que tem necessidade de contar as mesmas coisas e um pai que conta, cada noite, a mesma fábula, com uma recíproca cumplicidade, na qual se faz de conta que não se sabe como termina, só pelo desejo de prolongar o tempo que se passa junto. Neste sentido, então, a oração segue a mesma lei da palavra de Deus, assim como narra o profeta Isaías: «Como a chuva e a neve descem do céu e não retornam [...] sem efeito» (Is 55,10-11). Quando a oração nos coloca em relação a Deus, recordando-nos docemente quanto ele ame estar em relação conosco e com as nossas necessidades, então atingimos plenamente o seu efeito. Quando entramos neste dinamismo, então a oração se faz, não uma fuga da vida, mas uma escola de vida, porque nos permite curar nossas relações intra-humanas, com algo a mais de compreensão e de acolhimento. Também eu, muitas vezes, não conheço, até o fundo, a necessidade de meu irmão e, do mesmo modo, também ele pode cair na terrível culpa de não compreender as minhas verdadeiras necessidades: então abre-se o espaço do perdão recíproco como respiro inevitável da vida. Agostinho pergunta-se e pergunta-nos, justamente comentando a última petição da oração do Senhor, colocando na boca do Pai, a quem nos dirigimos este pedido: «Quais tuas ofensas? Todas ou somente algumas?» e acrescenta: «Tu responderás “Todas!”», e conclui: «Assim, pois, deverás perdoar todas ao que te ofendeu»[1].
MichelDavide Semeraro

Homem orante de Pedret, séc. IX, o homem que ora é circundado pela "energia divina" e é conduzido pelo Espírito.




[1] Agostinho, Sermões 83.

domingo, 9 de março de 2014

TQ 01 1 Converter… a suspeita


Pecado da desconfiança, mosaico Basílica de San Marco, Veneza, séc. XII.
A liturgia da Palavra de hoje nos introduz neste tempo quaresmal, ajudando-nos, antes mesmo de fazer um programa de penitência e conversão, a dar-nos conta daquela que é a estrutura fundamental do mal, o seu modo de funcionar. Neste trabalho de compreensão profunda, somos ajudados pelo apóstolo Paulo, o qual, refletindo sobre o mistério do mal, não consegue pensá-lo senão como uma forma de contagio: «Por causa de um só, todos morreram» (Rm 5,15). A pergunta pode surgir espontânea nos nosso coração: «Porque por causa de um todos devem morrer?», e a pergunta se torna ainda mais dramática se, entre estes «todos», muitos são inocentes...! Mas, eis que, justamente enquanto nos estamos fazendo semelhante pergunta, acabamos de cair na armadilha da «serpente» (Gn 3,1), deixando-nos enrolar estreito pelas voltas daquela astúcia que nos torna estultos e deixamo-nos atravessar por aquela suspeita que nos torna escravos do medo.
De fato, a serpente introduz, no mundo e na história, o seu maior motor, que é a pergunta, a capacidade de perguntar e perguntar-se. Poderíamos dizer que é mérito da serpente ter introduzido, na Escritura, pela primeira vez, o ponto de interrogação: e isto é uma graça! Mas, existem dois modos de questionar-se e questionar. Um deles é fundado na suspeita: «... ao contrário, Deus sabe que no dia em que vós comerdes do fruto, vossos olhos se abrirão e sereis com Deus, conhecendo o bem e o mal» (3,5). O outro modo, ao invés, é fundado na confiança, semelhante àquela com a qual a criança pergunta ao próprio pai ou à própria mãe, para orientar-se, gradualmente, no mundo e na vida, com a profunda certeza de que, mesmo as proibições estão a serviço de seu crescimento gradual. O mal e o pecado não são outra coisa que o fruto da suspeita contra Deus e de tudo o que Ele criou, incluídos nós mesmos. O deserto, no qual Jesus «foi conduzido pelo Espírito» (Mt 4,1) é o lugar, o estado, no qual, cada um de nós, não podendo contagiar ninguém, projetando o próprio mal sobre o outro – porque estamos sozinhos – somos chamados a curar do vírus da suspeita, respondendo ao veneno do diabo com o antídoto da memória da Palavra, na qual Deus se revela como Pai cheio de misericórdia e ternura.

Entremos pois, neste tempo sagrado, retomemos o combate espiritual que acompanha toda a vida, armando-nos de confiança, porque «muito mais a graça de Deus, e o dom concedido na graça de um só homem, Jesus Cristo, foi derramada em abundância sobre todos» (Rm 5,15). Deixemo-nos tocar pela confiança e, possivelmente, busquemos contagiar, com a confiança, o mundo no qual somos chamados a mover-nos e vivermos, sem nunca desejar ser mais daquilo que nós somos, sem querer ultrapassar os limites que a natureza e a história nos estipularam, talvez para evitar que façamos muito mal a nós mesmos e aos outros: orientemos todo o nosso desejo a nãos querer ser«como Deus, conhecendo», mas ser «como Deus» conhecendo-nos e amando-nos por aquilo que somos. O caminho da conversão é justamente passar da ilusão que abre toda e cada tentação - «Se tu és...» (Mt 4,3) – à consciência de ser «por graça aquilo» (1Cor 15,10) somos, buscando ser o melhor que pudermos, cada um a sua maneira, um «filho de Deus» como o Senhor Jesus, que confia no Pai, mesmo quando este o abandona a si mesmo. Evitemos o contagio do mal, honrando o nosso limite, não querendo «conhecer» mas compreender, e transformando, deste modo, a suspeita em confiança.

Semeraro, M., La messa quotidiana, marzo, Bologna 2011, 124-126.