sábado, 11 de outubro de 2014

Os olhos abertos de Cristo crucificado

Escultura em madeira, Porta da igreja de Santa Sabina, Roma, século IV

O fato dos olhos abertos do Cristo sobre a Cruz é uma tradição muito antiga. A arte sacra não busca representar uma fotografia momentânea do evento sacro, como ele foi no passado, mas sim o que ele é na verdadeira Realidade, no "Agora" da eternidade, para nós. Por isso, muitos dos Mistérios da Vida de Cristo eram representados segundo modelos herdados da Antiguidade, para mostrar o seu significado profundo, aquilo que eles tem a nos dizer, no "hoje" daquele que o contempla. Por isso, eles sobrepunham passagens bíblicas na mesma cena, para que, na transparência, formassem uma imagem com mais dimensões que o 3D! 
Miniatura do Tetra Evangelho de Rabulla, de origem síria, séc. VI, Biblioteca Medicea, Firenze, Itália.
Bom Jesus de Bouças, Portugal, séc. XIII
O modo de dizer que Jesus morreu na Cruz e ressuscitou, que justamente através do seu aniquilamento Ele venceu a soberba do inimigo e derrotou a morte, que Ele se entregou livremente por nós, era representá-lo vivo e triunfante sobre a Cruz. Um dos modos de mostrar esta vida eram os olhos abertos, outros o gesto generoso e senhoril do corpo todo, com uma paz que emana de todo o conjunto. O Evangelho de João joga simbolicamente com as palavras, para mostrar que, na Cruz, Ele se manifesta como verdadeiro Rei. Como representar o invisível? através de símbolos visíveis! 
Este marfim, que está no Museu do Louvre, e é de 420-430, mostra dois aniquilamentos, o de Judas e o de Jesus,
O primeiro, na Árvore da Vida (note-se o ninho de passarinhos...) encontra a Morte, por não se deixar perdoar,
como o velho Adão, depois do pecado. Alusão esta da bolsa das moedas que tem uma alça parecida com uma serpente.
A Cruz de Jesus é uma Cruz gloriosa, com as pontas que se abrem, e as atitudes são serenas e nobres:
Contempla-se um Mistério! A Beleza provoca a elevação e o silêncio.
Qual é a essência do evento? O sofrimento ou a vitória? Evidentemente é a Vitória, pois milhares sofriam e morriam na cruz, isso era o que se via continuamente, já que a crucifixão foi abolida somente no império bizantino. Não somente representavam com os olhos abertos, mas também vestido finamente, como um sacerdote, pelas razões ditas acima. Estes traços permanecerão uma constante na iconografia da crucifixão por quase mil anos! Olhos abertos ou fechados aparecerão, mas será sempre o conjunto dos elementos a viabilizar o discurso da vitória sobre o mal e a morte.

Afresco em Cimitile, Itália, séc. VIII.
Neste bronze e esmalte do séc. XIII (Limoges) vemos todo o Mistério representado:
A Paixão (pelos cravos e a Cruz), a Ressurreição (pela vestimenta real)
e pelas flores, que são como uma explosão de primavera, e a Ascensão
que nos conecta diretamente com a Eternidade: nosso Rei conhece nossa dor,
conhece de dentro dela, e sua presença nela, assegura a vitória.
Relicário do séc. VII, nos Museus Vaticanos.
Afresco da Crucifixão, São Gaudioso, séc. VI, Nápoles, Itália.
Stauroteca (relicário da Santa Cruz) Fieschi-Morgan - início do séc. VII - Siria
Vemos a unidade do Mistério que une Encarnação, com a Anunciação e Natividade
e embaixo, a Cruz e Ressurreição, com a descida aos infernos para o resgate de Adão e Eva.
Tudo se trata de uma Grande Descida dos Céus dos céus até os abismos, onde nos metemos...
Ícone da Crucifixão, do séc. VII, do Mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai.
Bronze e esmalte, Geórgia, séc. X.

O século XIII trará grandes mudanças na sociedade e na teologia e espiritualidade cristã. O advento das
Ordens mendicantes e sua pregação, colocarão grande ênfase na humanidade de Jesus, sem negar a divindade, evidentemente. O Santo Corpo do Senhor começa a pender da Cruz, no peso do ser humano, os personagens também manifestam a dor de forma sempre mais intensa. O silêncio ainda se experimenta, e a Vida triunfa sobre a morte, mesmo com as mudanças de linguagem.
No séc. XIV, o Corpo do Senhor se esvazia, no grande Mistério da Quênose (não se apegou à sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de Servo), pende sempre mais, os sinais da dor ficam evidentes, ainda que a luminosidade do corpo, e a paz continuem presentes, mostrando que este não é o fim!
Quando acontecerão mudanças drásticas na história da humanidade e na teologia e espiritualidade, as imagens vão seguir o mesmo caminho, perdendo seu aspecto mistérico-simbólico pouco a pouco, dando espaço a um emocionalismo sempre maior, e consequentemente, a um naturalismo e sensualidade crescentes, com o fim de provocar a sensação e emoção diante da dor do Senhor: Sentir-se pecador diante do sacrifício do Senhor! 
Têmpera sobre madeira dourada, séc. XIV. O drama e a dor, os contrastes humanos, as potências do Céu, fazem ver que definitivamente, algo mudou, não o Mistério, que continua o mesmo, mas os caminhos para ele são vários: o da contemplação silenciosa, mas também o da emoção pessoal que vagueia entre a indignação contra os soldados que crucificaram Jesus, a presença de S. Longinus que reconhece a divindade dEle, Maria Madalena que beija os pés ensanguentados, a Virgem Maria que desfalece de dor, as mulheres que a sustentam, os anjos que recolhem o Santíssimo Sangue, e se contorcem de sofrimento.
O século XV levará a reflexão adiante, e a Crucifixão torna-se uma reflexão sobre a Bondade Divina e a maldade humana. Esse quadro do renascimento alemão, mostra o naturalismo crescente, o grotesco dos corpos, o perfeccionismo nos detalhes, tudo é um drama e também uma cena composta. A banalidade se mistura com o sagrado, e o Mistério é diluído em humanidade, e sobre a cena se "sente" e se "pensa", mas sempre como um espectador externo, cada vez mais longe.
Ainda no séc. XV, teremos o primeiro renascimento, no qual os modelos grego-romanos começam a ser utilizados,  ainda que com critérios ligados à Tradição, abrindo espaço ao naturalismo. Esta escultura é de Donatello, feito em 1406, e é conservado na Chiesa della Santa Croce, em Florença, Itália.
Contemporâneo de Donatello, Bruneleschi esculpiu este Crucifixo entre 1410-15, e encontra-se na Chiesa di Santa Maria Novella, na mesma Florença. Ainda que tenham sido duas esculturas escandalosas para a época, pelo seu naturalismo e sensualidade, pouco a pouco, o modela vai fazendo sua estrada.
A idéia é aquela de provocar a experiência de que o Amor ama assim, dando a vida, mesmo no caso extremo, e é uma idéia… na sucessão das mudanças na iconografia, elas conservam muitos traços das anteriores, e somente pouco a pouco muda radicalmente em relação aos primeiros modelos. 
Matthias Grünewald, Políptico de Isenheim: Cristo Crucificado, detalhe, 1515. O naturalismo do renascimento italiano chega nos países do Norte, e na Alemanha, e produz obras de arte de grande valor como esta. Cristo é o homem das dores e do sofrimento, mas aqui nem mesmo a paz se percebe, somente a entrega em meio à violência dos instrumentos da Paixão. Vale a pena ver todo o conjunto, onde está representado todo o Mistério, também a Encarnação e a Ressurreição: http://it.wikipedia.org/wiki/Matthias_Grünewald#mediaviewer/File:Grunewald_Isenheim1.jpg 
Na maioria das imagens do crucificado, vamos encontrar os traços comuns de uma paz e de uma entrega total. Nas mais contemporâneas, nem isto… algumas imagens vão passar estranhas mensagens, sobretudo o contrário daquilo que as primeiras queriam dizer, ou seja, dizem que a morte venceu ou não aconteceu!
No século XVII, em 1630, Diego Velasquez pinta esta Crucifixão. O renascimento e suas reflexões filosóficas passaram, e agora resta a pura emoção diante da serena e sensualíssima atitude do Cristo. As marcas da Paixão são discretas, estamos diante de um modelo que posa para um pintor, pode ser que este quisesse mostrar, deste modo, a vitória sobre a morte, mas o efeito não é exatamente este, pois ainda que tenhamos certeza de que o personagem em questão está vivo, não cremos que ele morreu de fato...
Uma imagem literária simpática é aquela do Leão, que segundo os livros da Antiguidade, dormia com os olhos abertos! O que significava, também por outros motivos simbólicos, que o dito animal tem um poder especial sobre a morte! De fato, segundo os mesmos textos, os filhotes nascem da leoa mortos, e será o bafo quente do leão a ressuscitar os leõezinhos. Nota-se como uma imagem simbólica consegue dizer muito mais que um tratado filosófico. Não por nada, nos primeiros séculos se dizia que Jesus morre como um cordeiro e ressuscita como um leão! Porque a sua morte-ressurreição (inseparáveis) nos dão a verdadeira vida!

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