sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Adélia Pradro fala da Beleza e da Arte


Neste pequeno vídeo de 9 minutos, a grande Adélia fala da beleza, muito diferente da "boniteza", como algo essencial, além da matéria. Sem dúvida nenhuma uma reflexão que nos orienta neste caos de opiniões, onde predomina o "gosto" pessoal e subjetivo, a racionalização da feiúra, a terapia ocupacional do artista e não o melhor de seu ser. A autora das poesias que tanto consolam nossa alma no seu voo no tempo, ajuda-nos a entrar nas raízes desta vida divina que é a Beleza. No mesmo site do youtube é possível encontrar a segunda, terceira e quarta parte deste belíssimo discurso, que vale à pena escutar e ver.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Os marfins de Salerno


Uma exposição feita em 2007 resultou em uma série de artigos importantes sobre estas pequenas esculturas, refinadas e belíssimas, cheias de conteúdos para a arte, teologia, liturgia e a ciência da iconografia antiga. Até hoje não temos certezas sobre sua original colocação, se em um altar, um retábulo ou algum objeto sacro. Fato é que as imagens tem conexões com outros marfins, espalhados por coleções e museus do mundo. Salerno tem este acervo que forma um conjunto importantíssimo e único no seu gênero. O site criado para a exposição, ainda no ar, tem recursos para a visualização dos marfins em detalhes que seriam impossíveis em um museu, permitindo ver coisas muito interessantes.

domingo, 9 de agosto de 2009

Eucaristia e o Fogo


"Fogo e Espírito no ventre de tua mãe;
Fogo e Espírito no rio em que fostes batizado.
Fogo e Espírito em nosso batismo,
No pão e no cálice, fogo e Espírito Santo.
Em teu pão está oculto o Espírito que não comemos;
Em teu vinho habita o fogo que não podemos beber.
O Espírito em teu pão, o fogo em teu vinho,
Maravilha singular que nossos lábios receberam.

(S. Efrém, Hino de Fide, VI, 17; X, 8)

terça-feira, 16 de junho de 2009

O labirinto


O L A B I R I N T O

O desenho é reprodução de um Labirinto que está na base do campanário, na entrada da catedral de Lucca, Toscana, Itália, feito provavelmente antes do séc. XI.

Partimos do local em que ele costumava estar nas igrejas cristãs: a entrada. Junto com os monstros e animais guardiães, ele tinha a função de alertar sobre a sacralidade do lugar: é um símbolo abstrato da regeneração, do enfrentar a morte e receber de novo a vida, do vencer a força misteriosa que nos ultrapassa e amedronta (monstro) para conquistar um sagrado, de valor infinito. Ninguém entra em uma igreja para sair o mesmo!
Dois elementos fundamentais, cujas explicações não podemos fornecer aqui, mas que deixamos como pressuposto: o círculo representa Deus, a divindade, a perfeição, a realidade eterna, o Céu. O quadrado, seu oposto, representa o mundo, a realidade terrestre, o imperfeito, o limitado, o humano.

Ao lado do desenho original esculpido na pedra, está escrito que esse é o labirinto do rei Minos, da Ilha de Creta, onde entrou e venceu Teseu. Mas, qual seria a finalidade de um elemento pagão em uma igreja cristã? Os cristãos sabiam interpretar os símbolos profundos, vendo-os como figura do grande e único Mistério: a Encarnação Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Sabemos como era e é importante no cristianismo o elemento da peregrinação, o dirigir-se para o lugar sagrado, e entre tantos que haviam, um sempre foi insuperável: o Santo Sepulcro de Jerusalém. Mas nem todos podiam fazer essa viagem tão longa e perigosa, e foi por isso também que começaram a aparecer os labirintos nas entradas das igrejas, como uma miniatura da peregrinação a Jerusalém, naquilo que ela tinha de conteúdo mais essencial: o integrar todo o corpo num itinerário, na direção do Senhor e ao mesmo tempo em companhia dEle. Estamos, pois, diante do símbolo do itinerário espiritual, do caminho para Deus, e por isso mesmo, um caminho místico. Não é retilíneo, mas torto, e isso já nos dá grandíssima alegria, porque é como nós... Mas as curvas nada mais são que movimentos dentro do círculo, logo, divinos! O homem, nas suas muitas voltas, não faz outro que rodear o próprio Deus! Logo de entrada, depois de umas poucas voltas se encontra muito perto do centro, como é comum acontecer aos principiantes na vida espiritual, tendo muitas “consolações” e um sentimento da proximidade de Deus, mas ainda falta muito caminho. Neste labirinto, a proximidade física não corresponde àquela do processo. Ao final, quando falta pouco para chegar ao centro, o viajante dará as voltas mais distantes do centro, e não obstante, no processo estará mais perto. A riqueza do símbolo é justamente de unir longe e perto numa mesma experiência. O que importa mesmo é que se esteja dentro, fazendo as voltas, pois “é em Deus que nos movemos e somos”.

Neste caminho de vida o importante é não retroceder nem parar, já que ele vai como uma “pista única”, rumo ao centro. Cada pessoa o faz segundo sua velocidade, estilo e ritmo. Agora, não é simplesmente caminhar, já que tem reviravoltas bruscas, que revertem a direção mesma da rota. As pequenas e fortes curvas, que parecem nos mandar de volta, que nos dão a impressão de retroceder, formam uma cruz que abraça todo o labirinto, ainda que não a percebamos à primeira vista. Seria como uma grande cruz no centro do mundo e de Deus, unindo essas duas realidades, mostrando como Deus entra no mundo, e ao mesmo tempo, o caminho do homem, do mundo até Deus. Será sempre a cruz a mudar nossos rumos, mas de maneira transfigurante, já que faz parte da dinâmica divina (redondo). “Quanto a mim, Deus me livre de gloriar-me, a não ser na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo , pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.”[1]

Enfim, muitas outras coisas podem ser descobertas dentro deste antigo e rico símbolo que se revela, pouco a pouco ao olhar atento. Olhá-lo com calma pode ser de ajuda para treinar o olhar interior na contemplação da natureza e sobretudo dos finos dedos da Mão de Deus na História. Um momento de parada na vida, uma celebração viva da liturgia pode ser este “ver o labirinto de cima”, intuir-lhe o sentido, alegrar-se com sua beleza, retomar as forças para continuar caminhando. “Não que eu já tenha alcançado o prêmio, ou que já seja perfeito, mas prossigo a minha carreira para ver se de algum modo o poderei alcançar, visto que fui apreendido por Jesus Cristo. Irmãos, não penso havê-lo já alcançado, mas uma coisa eu faço: esquecendo-me do que ficou para trás e avançando para o que está adiante, prossigo em direção do alvo para obter o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.[2]


[1] “Gl 6, 14.

[2] Flp 3, 12-14.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Stellarium


Um dos pontos fundamentais para compreensão da linguagem simbólica é a contemplação da natureza, seja no grande, o Macrocosmo, seja no pequeno, o microcosmo, que somos. Olhando o movimento e o comportamento das estrelas, os homens, por milênios, encontravam um senso para o seu caminhar nesta terra, em relação vertical com o que acontecia no céu. Como as plantas, o ser humano cresce para cima, para luz, para as alturas a que se sente chamado. Não por nada, as cidades, os templos e depois as igrejas, assim como a simples choupana do homem do campo, eram contruídas seguindo os pontos cardeais, a inclinação do eixo de rotação da Terra, a forma das constelações, as fases da lua. O grande calendário-relógio do universo marcava as festas e estações, as plantações e colheitas, os tempos de trabalho e repouso, época do cruzamento dos animais e de suas crias. O movimento circular associado ao eixo que centraliza tudo está na base de tudo que o homem possa elaborar de linguagem simbólica. Um programa de astronomia,o Stellarium, gratuito e open source, pode ajudar-nos, pobres mortais, privados da contemplação do céu real, pela excessiva luz em nossas cidades, a "entender" um pouco de sua dança, seus movimentos perfeitos, harmonia e beleza original e originante. Os cristãos dos primeiros séculos nunca foram ingênuos em pensar que o céu material visível fosse o Céu! Mas eles entendiam que ele poderia ser dele, um apropriado símbolo.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Geometria Sagrada


Esta obra preciosa para a compreensão das leis universais que regem a beleza no mundo da natureza, e que foram utilizadas para a construção dos templos e das catedrais, assim como das obras primas que embelezam o mundo. Robert Lawlor fez uma profunda pesquisa e oferece um trabalho de muitos anos, pleno de ilustrações e referências interessantes. Ele tem um acento teosófico, ou seja, que vê a religião mais como uma filosofia que outra coisa, mas isso não tira o mérito de suas pesquisas, que seguramente enriquece todos aqueles que se interessam pela relação entre o Sagrado e a arte. O pdf do livro está disponível para ser descarregado, caso não funcione, entrem em contato.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O Simbolismo do Acanto

Uma planta mediterrânea, que há milênios vem acompanhando o homem, em suas lutas e vitórias, ganhando novos significados e formas, no passar silencioso do tempo. Mesmo em países tropicais como o nosso, estas folhas verdejantes comparecem nas esculturas e arquitetura barrocas, a perpetuar o itinerário de uma planta inspiradora de movimentos e significados profundos e belos. A apresentação foi feita no curso de iconografia da Univ. Fed. de Vitória, no Espírito Santo.

O Tetramorfo

Esta apresentação tratou de um tema fascinante que é a quaternidade do mundo e do homem, unificado em quatro seres vivos e atuantes: o Touro, o Leão, a Águia e o Anjo. Companheiros e colaboradores da manifestação do Filho do Homem e Verbo de Deus.

Do Círculo ao Quadrado

A linguagem simbólica joga, basicamente com alguns símbolos fundamentais, que estarão na base de quase todos os outros: o ponto, o círculo, o quadrado e a cruz. Tentamos, na apresentação, mostrar as origens cósmicas deste movimento que consegue contemplar o céu e a terra como uma unidade indissolúvel, completando-se e aperfeiçoando-se, mutuamente.

Os Monstros e o Território do Sagrado


Ainda dentro do curso de iconografia de Vitória, outra apresentação interessante sobre a simbólica dos Monstros dentro da aventura interior do homem, na sua busca do mais alto tesouro, que é Deus mesmo. Faltam textos para as imagens, mas pode ser sempre uma experiência visual, através destes testemunhos que povoavam nossas igrejas cristãs em outros tempos. Fascinante e terrível imagem de um Deus que supera sempre nossos conceitos e esquemas, e que os abre, passo por passo, a horizontes mais amplos e profundos, sem falar do bom humor que está por trás desta busca do sentido último de estarmos nesta vida. basta clicar aqui para descarregá-lo.

A linguagem afetiva

Dentro do recente (maio 2009) curso de iconografia cristã na Universidade Federal de Vitória, apresentamos algumas seleções de slides. A primeira delas foi "A linguagem afetiva", inspirada nos ensinamentos de Gilbert Durand e de P. Charles Bernard SJ. De forma bastante resumida, tantamos entender as atitudes coporais que estão por detrás da formação do símbolo em nosso inteiror. Ela pode ser descarregada e utilizada para fins privados.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Entrada em Jerusalém

Icone da Entrada de Jesus em Jerusalém, Acervo do Mosteiro da Ressurreição, Ponta Grossa Brasil, 2009
Este domingo compartilho um novo trabalho, feito para este dia, para a procissão dos ramos que fazemos no mosteiro, levando o ícone entre as aclamações.

Penso que o programa iconográfico, que copiei de uma imagem do ano 900, já fala por si mesmo, associando as várias “Entradas” de Deus na nossa história: o encontro com Zaqueu é o mais evidente, por ser referir a “entrar” nesta casa, onde por tanto tempo reinou o pecado. Mas a referência das árvores, o lenho, nos remete a um outro entrar: “Hoje entrarás comigo no Paraíso!” dito ao bom ladrão, e a árvore com os frutos e os pássaros confirma esta leitura, além da estrutura em arco, que remete, na parte superior, ao céu, e na inferior, quadrada, à terra. 
Neste contexto estrutural, veremos a cena sobreposta de duas entradas em Jerusalém: a histórica, na semana santa de Jesus, e a Ascensão, quando Ele leva às moradas eternas a nossa humanidade, em seu corpo, o pequeno e humilde asno recorda esta nossa “animalidade” finalmente domada e dócil, obediente, livre (não existem rédeas...) e feliz. Os dois jovens, com caras de criança, estendem seus mantos, referindo à primeira entrada, e os apóstolos do lado esquerdo, apontando para o alto, dizem da Grande Entrada na Jerusalém do Alto, e isto é confirmado pela presença de um arco de fogo e luz, que lembra o arco-íris da Aliança de Noé, mas também a iluminação que o Cordeiro fornece à esta realidade totalmente distinta da atual. Chama-nos a atenção a pequena árvore no centro da cena, sobre a pequena montanha, e não podemos deixar de pensar na Cruz do Senhor sobre o Gólgota, em perfeito eixo com Jesus glorioso acima. 
Visto desta forma, é já o ícone da Paixão e Ressurreição ao mesmo tempo, resumindo o único mistério através das transparências dos símbolos. A estrutura joga com dois “V”, um formado na parte superior, apontando para baixo, trazendo a cena do encontro médico-doente, Salvador-pecador, revelador-curioso, Deus-homem, plena de misericórdia para a terra. Pelo outro lado, da terra, o outro “V” aponta para cima, de nosso quadrado limitado e sofrido, alçamos nosso olhar, “contemplamos aquele que foi transpassado”, nosso anseio por redenção e saudade de Deus convergem em Jesus Cristo, que já está vindo ao nosso encontro, de modo que podemos falar de “Entradas” seja na vertical, nos dois sentidos, e na horizontal, também em dois sentidos, Jesus entra em nossa humanidade e nossa humanidade entra, com Ele, no Paraíso. 
No início da Semana Santa, quando lemos o evangelho da Paixão, começamos este tempo santo, acolhemos aquEle que vem em nome do Senhor, despojamo-nos do velho homem e nos deixamos revestir pelo novo, já começamos nossa Páscoa!
Com esta imagem, gostaria de saudar a todos os amigos, sobretudo aqueles que se dispuseram a caminhar para a Páscoa juntos, acompanhando os textos de cada dia, formando uma “comunidade virtual”, de mais de 400 pessoas, no Brasil, na Europa, no Oriente Médio, África e Américas. Juntos caminhamos, e esperamos e confiamos que também, juntos chegaremos! Com a certeza de que Ele vem ao nosso encontro!

Uma Santa Semana e uma feliz Páscoa!
Ruberval osb

quinta-feira, 19 de março de 2009

S. José da boca fechada


S. José da boca fechada
José é um daqueles seres que me dão medo, e não porque sejam maus e perigosos ou de uma superioridade esmagante, mas porque me parecem misteriosos, como o próprio Deus. José, o homem da boca fechada, o homem interior! Se pelo menos tivesse dito alguma coisa, uma palavra, poderíamos talvez adivinhar o fundo de sua alma, o senso da sua estranha vida. Mas ao contrário, não temos nada, nem no momento da tempestade, do “temporal”, como dizem os nossos irmãos gregos, nem na ocasião do nascimento do Menino, nem em Jerusalém, quando avançava tranqüilamente com as duas rolinhas de nada, que serviriam para resgatar o Cordeiro... Está simplesmente ali, parado, com os grandes olhos, doces e tranqüilos, ainda mais arregalados, ou talvez iguais aqueles de sua cara esposa, permanecendo a escutar o canto do velho Simeão, que está no limiar de morrer, não tendo mais nenhuma razão de continuar desde o momento que viu... Nada no momento da fuga para o Egito, e nada em Nazaré, nem mesmo quando o Menino foi perdido. E depois, absolutamente nada... o desaparecimento total e definitivo, na ponta dos pés, como os grandes tímidos que não querem que se lhes preste atenção, que se fale deles. Sim, tudo isto dá muito o que pensar!
As primeiras eras do cristianismo não buscaram fender este silêncio. Somente Bernardo colocará uma tímida pergunta: “Quis? Qualis?” “Quem é? Que homem é?” Nada mais. Será necessário esperar os tempos modernos para que todos queiram saber alguma coisa, e até mesmo se abra uma cátedra de “Josefologia” (mas fiquem tranqüilos, que isto é no Canadá!), e José, malgrado toda esta indiscrição , não diz nada, não dirá nada, não fará revelações, permanecerá o homem da boca fechada, o homem do interior. E porque me meto a falar dele? Porque não deixá-lo em seu silêncio, como deixo os peixes no mar? Depois de tudo, se isto lhe agrada, deixa falar e fazer, sem abrir a boca....
Mas não é dele que quero falar, nem espero que me fale. Quero somente contemplar o seu silêncio, mergulhar nele, impregnar-me dele até o ponto de suplicar que não nos diga absolutamente nada, que não nos apareça nunca...
José da boca fechada é o homem do interior; faz parte daquela coorte de silenciosos para os quais, falar é perder tempo, é sobretudo trair o Intraduzível, o Inefável. Naturalmente quando estas pessoas dizem alguma coisa, arriscam de fazer tremer o mundo, como Sto. Tomás de Aquino, aquele boi mudo da Sicília, de quem troçavam os estudantes do mestre Alberto, na Universidade de Paris.
José da boca fechada é o homem que começa onde Jó terminou, quero dizer, nasce com a mão tapando a boca. Tem um senso enorme de Deus, do seu Ser sem medida e de sua loucura de Amor. Não o vejo pedindo explicações ao Inexplicável. A única vez na qual penetra o mundo da dúvida, quis unicamente desaparecer, sem nenhuma palavra: “Vai, amada minha!” O anjo de Deus simplesmente lhe deu um empurrão. Depois de tudo, José é um homem: “Não temas pois de tomar Maria como esposa; o que nela foi gerado é obra do Espírito Santo!” (Mt 1, 20).
Depois do retorno do Egito, José desaparece. Acreditem-me: esta morte, este transitus do beato José não tem nada de triste. Não houve nenhuma declaração, nada de novissima verba desde o momento que tampouco houveram priora verba. O seu silêncio é o mesmo de Deus. É cheio da violência do Amor.
L. –A. Lassus, L. –A., Pregare è una festa, 80-82.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Advertência


Reflexão para o 6o sábado do Tempo Comum

Hb 11,1-7; Sl 144; Mc 9,2-13

A liturgia de hoje nos oferece a possibilidade de ler, ainda uma vez, o relato da Transfiguração do Senhor que, a partir da primeira leitura, com a qual se dá uma visão resumida dos onze primeiros capítulos do Gênesis, lidos nos dias passados, pode ser acolhido como uma divina advertência. De fato, como «Noé, avisado divinamente daquilo que ainda não se via, levou à sério o oráculo e construiu uma arca para salvar sua família» (Hb 11,7), assim o Senhor Jesus «tomou consigo Pedro, Tiago e João e os levou sozinhos sobre um alto monte, em um lugar afastado. E transfigurou-se diante deles» (Mc 9,2). Naturalmente a primeira reação de Pedro não podia senão ser estasiada: «É bom estarmos aqui!» (9,5), que poderia ser traduzida com: «Que Bonito!». É a mesma reação que temos diante da arca de Noé, plena de simpáticos animais, que parecem desembarcar sobre a terra, finalmente enxuta e purificada do mal, felizes e contentes. Mas a nota, referida na primeira leitura, leva-nos mais longe, obriga-nos ir muito mais profundo: «A fé é o fundamento das coisas que se esperam e prova daquelas que não se veem» (Hb 11,1). E, para evitar mal entendidos, o texto repete por oito vezes, em sete versículos, o termo «fé» - que neste capítulo da Carta aos Hebreus, aparece por 26 vezes – para que seja claro como «sem a fé, seja impossível ser agradável a Deus» (11,6). A fé, se é estável, porque é «fundamento» (11,1), não é nunca estática, mas um contínuo caminhar com Deus: como Henoc, um aceitar as consequências das próprias escolhas; como Abel, mudar o programa sobre a própria vida; como Noé... acolher um desígnio tão diferente daquele que todos esperavam e que, talvez no coração, fosse o que desearia, como Jesus, que justo «enquanto desciam do monte» (Mc 9,9) revela, uma vez mais, o mistério adorável da sua kênose[1]: «Deve sofrer muito e ser desprezado» (9,12). Justo daquele «santo monte» (2 Pd 1,18) Pedro conserva uma recordação inesquecível até a sua velhice, porque, como Noé, também o seu coração de discípulo, ainda imaturo, foi «divinamente avisado» (Hb 11,7) daquilo que estava para acontecer, para poder atravessar o evento de modo digno e adequado. Este aviso é oferecido no jogo sutil entre luz e trevas, entre alegria e temor, entre clareza e incompreensão, entre palavra e silêncio... naquele «terreno intermediário», que é criado pela correspondência da única ordem expressa, em primeira pessoa, pelo Pai: «Escutai-o!» (Mc 8,7) – e ainda uma vez – o desafio do encontro com Deus não é aquele de ver, mas de escutar. Trata-se, como diz o autor da Carta aos Hebreus, de saber continuamente reler a história dos primeiros pais, para escutar seu ensinamento e acolher, humildemente, o próprio percurso, para receber o testemunho de «ser agradável a Deus» (Hb 11,5). O Senhor Jesus o atesta sobre João, dizendo: «Fizeram com ele tudo o que quiseram» (Mc 8,13), louvando João e preconizando sobre si mesmo «como está escrito» (8,12) e, do mesmo modo, deseja-o para cada um de nós, chamados a tornar-nos herdeiros «da justiça segundo a fé» (Hb 11,7).

Fra Michel Davide OSB


[1] Kênose é um termo grego para expressar o esvaziamento de Jesus, que da sua Glória Eterna, abraça a humilhação máxima, na vida humana, culminando na Paixão e morte.