domingo, 15 de março de 2020

34 O Espírito mestre de oração

Jesus e a Samaritana: Orar em Espírito e verdade, Coluna de Bernward, Hildesheim, séc. XI, Alemanha.
Com o diálogo de Jesus com a samaritana, o evangelista João anuncia o novo estatuto da oração cristã: «Crede-me, mulher, chegou o momento no qual nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis, nós adoramos aquele que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas chegou o momento, e é este, no qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; porque o Pai procura estes adoradores. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade» (Jo 4, 21-24). Neste texto encontramos um ensinamento decisivo sobre o que constitui a originalidade da oração cristã, cujo segredo não nos vem revelado através de uma ou outra forma tradicional das práticas de oração. É claro que a função pedagógica dos lugares, dos momenots, dos métodos, permanecerá sempre importante, por causa de nossa condição humana: existirão sempre, para a oração, espaços, tempos e escolas. Mas, quando se trata da oração cristã, o que é fundamental é que ela seja um culto espiritual, um culto no Espírito. O primeiro ator da oração não é aquele que reza,mas muito mais o Espírito, porque é o Espírito que reza nele, que batiza a sua atitude humana, que atravessa a vida do homem, para fazer dela uma oferta, um «culto». Nesta perspectiva, o aprendizado da oração será, antes de tudo, uma educação à acolhida do Espírito Santo. Pode-se falar de disciplina da escuta e de atenção, porque uma disciplina semelhante é necessária a nossa condição humana. Mas, muito mais essencial que essa disciplina será a disponibilidade ao Espírito e à surpresa da sua presença, porque o Espírito sopra onde quer: «O vento sopra onde quer e lhe escutas a voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai: assim é aquele que nasceu do Espírito» (Jo 3, 8). Esta resposta de Jesus a Nicodemos nos mostra como a vida de fé, como a vida de oração sejam sempre possíveis, mas sempre dependentes do dom do Espírito. Eis uma coisa difícil de compreender para um mestre de sabedoria que quisesse tornar-se um discípulo na oração. A oração é uma realidade que foge aos nossos métodos, aos nossos meios. Poderíamos chegar a dizer que a oração cristã é uma oração que se ignora a si mesma. Poderíamos pensar, de fato, encontrar um bom conselho na passagem evangélica, na qual Jesus parece dar uma indicação aqueles que querem rezar: «Quando orardes, não sejais como os hipócritas (...) Tu, ao contrário, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, reza a teu Pai, em segredo; e teu Pai, que vê o que é secreto, te recompensará» (Mt 6, 5-6). Neste texto, a insistência não é tanto sobre o retirar-se à parte, mas quanto ao rezar em segredo. Este «segredo» não é somente a solidão e o silêncio; é a troca misteriosa entre o orante e o Pai, uma troca tão secreta que pode passar desapercebida até para aquele que reza. É o dom do Espírito que é oferecido ao homem de oração, para que ele possa oferecer a própria oração ao Pai. Nós não somos donos da nossa oração: o patrão é o Espírito.
P. Jacquemont, Lo Spirito santo maestro di preghiera, 51-52.

A Água pede de beber

O encontro de Jesus com a samaritana é bastante conheci­do (João 4, 1-30) e apresenta um paradoxo: Jesus, a água viva, pede de beber à samaritana. Esse não é o único paradoxo, nem a única “incoerência” desse texto que mistura fonte com poço, perguntas sem respostas e res­postas a perguntas que ninguém fez. Ao beber na fonte cristalina do texto original, pode-se des­cobrir a riqueza de um itinerá­rio iniciático apresentado pelo evangelista, oculto pela subjeti­vidade de muitos tradutores.
Logo no início, ao anunciar a intenção de Jesus de ir da Ju­déia para a Galiléia, as traduções dizem que para tanto: “era-lhe necessário passar pela Samaria (4,4)”, ou “era-lhe preciso” ou “tinha de passar”. Muitos vêem nisso uma obrigação geográfica: o caminho era por ali, não tinha jeito. Não é verdade. Na reali­dade, Jesus nem devia, nem pre­cisava. Poderia tomar outro caminho, como a maioria dos judeus fazia: Por exemplo, seguir o vaie do Jordão — onde água e sombras eram abundantes — e evitar esses heréticos, que eram para os judeus, os samaritanos. Basta olhar um mapa da região e constatar. Jesus mesmo recomenda aos discípulos evitar a Samaria (Mt 10,5). Em Lucas (9, 51-56), os discípulos que atravessam a Samaria são mal recebidos.
Mas Jesus já os distinguia: o único dos dez leprosos curados, que volta reconhecido, era samaritano (Lc 17, 11-19) e na parábola do bom samaritano ele os opõe aos levitas do templo (Lc 10, 30-37). No texto grego origi­nal, Jesus devia, tinha de passar (êdei) no sentido de quem tem um objetivo. Jesus tinha um pro­jeto de ir a Galiléia. A passagem da Judéia na Samaria lembra a profecia de Isaías, em que os reinos separados serão um dia reconciliados. Em Jesus acaba­rá a separação, a divisão de Is­rael e Judá. O rei justo — sobre o qual repousará o Espírito de Deus — “ajuntará os banidos, ou desterrados de Israel, reunirá ou congregará os dispersos de Judá” (Is 11,12 cf. Os 2,2; Jo 3,18; 35,50; Ex 37,1 6-24). E nes­se contexto que se deve enten­der porque Ele deve passar pela Samaria. Seu ensinamento era também para os excluídos, os impuros, os heréticos e os que tentam viver sua fé no meio de nações pagãs. Como nós, nos dias de hoje, cercados pelo ne­opaganismo e pelas heresias.
O episódio é polissêmico, rico em significados, já que, como nos neopagãos de hoje em dia, o ouvido dessa mulher não estava totalmente fechado. Ainda havia abertura, pois ela era habitada pelo desejo. E para ela serão revelados, progressivamente, os mistérios da oração “em espírito e verdade”. Existe um itinerário iniciático, muito bem construído por João, que leva das verdades adquiridas e relativas, contidas em nós, para a Verdade infinitamente mais elevada e vasta que nos contém.
Como numa espécie de séti­mo dia da criação, Jesus descan­sa. Cansado do caminho, ele Senta à beira do poço (4,6). San­to Agostinho diz que é Deus quem se cansou, pois está nessa estrada há séculos, milênios... em busca da humanidade. Deus está em busca do homem. Onde Ele poderia parar, pousar, repou­sar? No poço de nosso coração, na alma de cada um de nós. Tal­vez cada um já tenha vivido o essencial da experiência místi­ca e espiritual: a descoberta de que não somos nós, mas é Deus quem nos busca. Era Deus quem nos buscava esse tempo todo. Mas como é difícil deixar-se achar, deixar-se amar “tal como somos”. A estrada é longa até esse ponto da aceitação total.
E aproximadamente a sexta hora, meio-dia, em que o sol abrupto não deixa sombras, nem lugar para elas. E nessa hora da sede e do desejo. E nesse momento de uma luci­dez que deixa pouco lugar para as mentiras. E quando estamos na beira do poço, em nossa pior hora. É ali que Jesus nos espera. Na fonte (pegé) do nos­so ser. Onde a vida surge, na saída, na sua gratuidade. O poço é o símbolo do coração humano. A vida nos leva a des­cer nas suas profundezas para descobrir a fonte. Estar no fun­do poço exige silêncio. Sen­tar na beira do poço é ficar na escuta, em estado de resso­nância. E o que vamos escu­tar? O silêncio nos prepara para ouvir a voz que murmu­ra no fundo das águas: dá-me de beber. O silêncio nos traz essa experiência.
Paradoxo: a água pede de beber. Jesus é a fonte que tem sede de ser bebida. Corno en­tender esse chamado de Deus? A Fonte pede para ser reconhecida, pede tempo e atenção. Dá-me do teu silêncio, da tua solidão. Essa é nossa água, que podemos ofertar a Deus. Quem está disposto a dedicar para Deus uma parte do tempo de silêncio que entrega à televisão? Deus pede nosso silêncio, atenção e contemplação. É sempre uma surpresa ser cha­mado do fundo do Ser. Sentir-se esperado, desejado, por um Si que é mais que o nosso si-mesmo. Por um Todo Outro que si-mesmo. Pelo Desconhe­cido das profundezas. E desse primeiro despertar nasce o es­panto: Por que eu? Por que “mim”? Isso é outra história, outro paradoxo, que a samari­tana também vai descobrir. Mas hoje nos basta o convite a um pequeno voto de silêncio, como entrega gratuita a um Deus que, no fundo de nosso coração, pede de beber.
Evaristo Eduardo de Miranda “Corpo: Território do Sagrado” ed. Loyola

sexta-feira, 6 de março de 2020

12 A TRANSFIGURAÇÃO

Mosaico da Transfiguração, Monte Sinai.
Este “estranho espetáculo” é propositadamente relatado pelos sinóticos como o cimo do ministério de Jesus. Em direção deste cume sobem as surpresas e indagações das teofanias precedentes — “quem é este?” e “Para vós, quem sou eu?” — e é dela que parte o caminho para a última Páscoa em Jerusalém. Os milagres anunciavam as energias do Cristo ressuscitado; a transfiguração é a teofania que lhe desvenda o sentido, ou melhor, que já atualiza o que essas energias realizarão em nossa carne mortal: nossa divinização.
No centro do Evangelho, histórica e literariamente, a transfiguração assim aparece motivada pelo seu realismo misterioso: a humanidade de Jesus é o nódulo vivo onde o homem se torna Deus. O Cristo é, realmente, homem! Ora, ser homem não é ser “em seu corpo”, conforme pensam os dualismos impenitentes, mas, segundo a revelação bíblica, é “ser seu corpo” um todo orgânico e coerente. Porque o ser humano é seu corpo, ele está, à imagem de seu Deus, em relação com as outras pessoas, com o cosmo, com o tempo, com Aquele que é a comunhão em plenitude. Ora, depois que o Verbo tomou corpo, formou uma relação “humana” com o Pai e com todos os homens, segundo to-das essas dimensões: o fogo de sua luz abrasa a sarça inteira, toda a sua humanidade é “ungida”, “nele habita toda a plenitude da divindade” (Cl 2,9) . . e Paulo acrescenta: “e nele fostes elevado à sua plenitude” (v. 10).
Que se passou, pois, neste acontecimento repentino? Por que “a fugidia beleza” do Incompreensível transparece por instantes no corpo do verbo? Duas certezas nos podem guiar. Em primeiro lugar a transformação, a “metamorfose” segundo a transcrição do termo grego, não concerne a Jesus. O texto evangélico e a interpretação unânime dos Padres são claros: Cristo “se transfigura, não ao assumir o que não era, mas manifestando o que era a seus próprios discípulos: abre-lhes os olhos e, de cegos que eram, os faz videntes”. A mudança deu-se do lado dos discípulos, e confirma a segunda certeza: o fito da transfiguração, de acordo com o fim de toda a economia revelada na Bíblia, é a salvação do homem. Como na sarça ardente, o Verbo “deixa ver” em seu corpo a luz de sua divindade, não para mostrá-la, mas para fazer viver, para salvar: revela-se ao dar-se e dá-se para nele nos transformar.
Entretanto, se nos é permitido aproximar do mistério, deixando de lado a curiosidade e a gnose indiscreta, por que Jesus terá escolhido, naquele momento, suas duas testemunhas e seus três apóstolos? Que experimentava, pois, em seu coração de homem, Jesus, Filho amantíssimo do Pai e apaixonado por nós? Já alguns dias antes, Pedro fora interiormente iluminado e reconhe¬cera-o como o Cristo de Deus. Jesus começara, então, a erguer o véu sobre o desfecho iminente: deveria sofrer, ser condenado à morte e ressuscitar. Entre este primeiro anúncio e o seguinte toma a iniciativa de subir á montanha. A plenitude da transfiguração aparece assim através do “não dito” dos evangelistas: tendo terminado a catequese preparatória à sua Páscoa, Jesus decide-se a caminhar para a sua realização. Em todo seu ser, por todo o seu “corpo”, está entregue à vontade amorosa do Pai, a ela adere totalmente. Doravante tudo vai traduzir o seu “sim” incondicional ao amor do Pai, até a última luta da agonia á qual os mesmos discípulos serão convidados.
Precisamos, sem dúvida, entrar no mistério dessa adesão de amor para compreender que a transfiguração não é o desvendar impassível da luz do Verbo aos olhos dos apóstolos, mas o momento intenso em que Jesus se torna um só, através de todo seu ser, com a compaixão do Pai. Nesses dias decisivos, ele é mais do que nunca transparente à luz de amor daquele que o entrega aos homens para a sua salvação. Então, se Jesus se transfigura, é porque o Pai faz explodir a sua alegria. A irradiação de sua luz no seu corpo de compaixão é como o vibrar do Pai que responde ao dom total de seu Unigênito. Assim se explica a voz que atravessa as nuvens: “Esse é o meu Filho muito amado! nele encontro a minha complacência! . . . ouvi-o!”
Compreende-se, com efeito, o espanto de Moisés e de Elias: eles que vislumbraram a proximidade da glória divina, impaciente por salvar os homens, eis que a contemplam no corpo do Filho do homem. “Eu vi, eu vi a aflição de meu povo . . . ouvi os seus clamores . . . resolvi livrá-los . . .“ (Ex 3,7); “ouvi-me, Senhor, ouvi-me . . . estou devorado de zelo pelo Senhor Iahweh, porque os filhos de Israel te abandonaram (lRs 18,37; 19,10): já não são palavras divinas nem palavras de homens, mas o próprio Verbo em sua humanidade; não mais uma promessa e uma expectativa, mas o evento, a “realidade: é o corpo de Cristo!” (Cl 2,17). Moisés e Elias podem sair da gruta do Sinai sem cobrir o rosto: contemplam a fonte da luz no corpo do Verbo.
Quanto aos três discípulos, ficam inundados, durante alguns segundos, por tudo que lhes será dado receber, compreender e viver a partir de Pentecostes: a luz divinizante que emana do corpo de Cristo, as energias multiformes do Espirito que dá a vida. Naquele momento, o que os derruba é perceber que “Este” é não somente “Deus com os homens”, mas Deus-homem: nada pode ir de Deus ao homem e do homem a Deus senão pelo seu corpo. E a outra certeza será por Pedro testemunhada em suas cartas e por João, em seus escritos: a participação nesta vida do Pai que se irradia do corpo de Cristo é proporcional à fé do homem. Nessa luz de fé que iluminou seus olhos de carne consiste a novidade da transfiguração. Graças a ela, aproximando-se do corpo de Jesus, “apalpam a Palavra da vida” (lJo 1,1).
Doravante não há mais distância entre a matéria e a divindade: no corpo de Cristo nossa carne está em comunhão com o Príncipe da vida, sem embaraço nem separação. Do que o Verbo inaugurou em sua encarnação e manifestou desde o seu batis¬mo através de seus milagres, sua transfiguração faz entrever a plenitude: o corpo do Senhor Jesus é o sacramento que dá a vida de Deus aos homens. Quando nossa humanidade consentir em unir-se á humanidade de Jesus, participará, então, da natureza divina (2Pd 1,4), será divinizada. Se todo o sentido da economia da salvação consiste nisso, compreendemos que a Liturgia é, afinal, a sua realização. A divinização do homem será participação no corpo de Cristo.
CORBON, J., Liturgia de fonte, 66-69.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

02 O retorno do exílio


O retorno do filho pródigo, nos confessionários da Igreja da Divina Misericórdia, San Bartolomeo al Mare, Liguria, Italia

A parábola do filho pródigo nos mostra o tempo do arrependimento como o retorno do homem do exílio. O filho pródigo, como sabemos, partiu para um país distante, e lá dissipou tudo quanto possuia. Um país longínquo! Esta é a única definição da nossa condição humana, que devemos assumir e tornar nossa, quando começamos a encaminhar-nos na direção de Deus. Um homem que nunca tenha feito esta experiência , ainda que por breve tempo, que não se sentiu jamais exilado, longe de Deus e da verdadeira vida, não compreenderá jamais o que é o cristianismo. E aquele que se sente perfeitamente «em casa» neste mundo e na vida deste mundo, e que nunca foi ferido por uma saudade irrefreável de uma outra realidade, não compreenderá que coisa é o arrependimento.
O arrependimento é frequentemente identificado com uma enumeração fria e «objetiva» de pecados e transgressões, com a «confissão de culpabilidade» diante de uma acusação legal. Confissão e absolvição são vistas como atos de natureza jurídica. Mas esquece-se de uma realidade essencial, sem a qual nem a confissão, nem a absolvição tem o mínimo significado real ou a mínima eficácia: o sentimento de alienação de Deus, da alegria da comunhção com ele, da verdadeira vida que é criada e doada por Ele. É fácil, de fato, confessar que não jejuei nos dias prescritos, que esqueci-me das orações ou que fiquei muito irritado. Toda uma outra coisa é, ao contrário, render-me contas de que eu perdi e deturpei a minha beleza espiritual, que estou bem longe de minha verdadeira morada, da minha verdadeira vida, e que alguma coisa de muito precioso, de puro e de belo foi irremediávelmente quebrado na mesma trama de minha existência. Exatamente isto é o arrependimento, e somente isto, e por isso mesmo, é também um desejo profundo de retornar, de operar uma inversão de marcha, de reencontrar a casa perdida. Recebi de Deus riquezas maravilhosas: antes de tudo a vida e a possibilidade de desfrutá-la, de dar-lhe um senso, de enchê-la de amor e de conhecimento; depois, no batismo, a vida nova de Cristo mesmo, o dom do Espírito Santo, a paz e a alegria do Reino eterno. Recebi o conhecimento de Deus, e nEle, o conhecimento de todas as outras coisas e o poder de ser filho de Deus. E, tudo isso eu o perdi; tudo isto eu o perco continuamente, não somente nos «pecados» e nas «transgressões» particulares, mas no pecado de todos os pecados: desviando o meu amor de Deus, preferindo o «país longínquo» (lc 15, 13) à beleza da casa do Pai. (...)

Na liturgia da Igreja do Oriente, nas laudes do domingo do filho pródigo, canta-se o salmo 136, triste e nostágico, o salmo do exílio. Os hebreus o cantavam durante a sua prisão naBabilônia, lembrando-se de Jerusalém, a sua cidade santa. Este tornou-se, para sempre, o canto do homem que se dá conta de seu exílio longe de Deus e que, nesta processo de acordar, retorna a ser homem: um ser que não pode sentir-se plenamente satisfeito por nenhuma coisa neste mundo decaído, e que é, por natureza e vocação, um peregrino do Absoluto. Este salmo mostra a Quaresma como uma peregrinação e arrependimento, como retorno.

Schmemann, A., La grande Quaresima, 18-20.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

TQ 00 4 Converter ... em cinzas

Pecado em três momentos: Desobediência, culpando-se a si mesmos, fugindo de Deus.
Iluminura síria, séc. VI, Viena, Nationalbibliotek, ms Theol. gr 31 pictura I

Na oração, com a qual se abençoam as cinzas que serão impostas sobre a cabeça dos fiéis, no início da quaresma, elas são indicadas como «austero símbolo». Como cada símbolo, também as cinzas, com o qual a Igreja latina começa o tempo propício de conversão e de preparação para a Páscoa, tem a função de dar o quê pensar e fazer pensar: «Recorda-te que és pó...» é a fórmula mais tradicional que acompanha este gesto. 
A oração da Igreja não somente nos ajuda a ler o símbolo das cinzas, mas também a interpretá-lo na justa direção soteriológica[1] – como imagem da salvação – e certamente não como atitude de aniquilamento e esvaziamento do homem. A oração acompanha o coração do fiel para assumir o gesto da imposição das cinzas, de modo claramente orientado: «Para que, através do itinerário espiritual da quaresma, cheguem completamente renovados, a celebrar a Páscoa de vosso Filho» (oração da benção). A segunda oração opcional do Missal romano esclarece ainda melhor o horizonte interpretativo do símbolo, quando diz: «O exercício da penitência quaresmal obtenha-nos o perdão dos pecados e uma vida renovada, à imagem do Senhor ressuscitado». 
As cinzas nos revivem o drama das origens (Gn 3,19) e nos rememoram a divina reação ao drama da nossa liberdade, que não pode – nem poderá jamais – fugir do olhar do «teu Pai, que vê o que é secreto» (Mt 6,8). Aquele olhar que tinha acompanhado ternamente a nossa criação e a nossa inserção no mundo – apenas criado por amor a nós e para nossa alegria – fez-se cuidadosa e trêmula pergunta, própria de um coração amante: «Onde estás?» (Gn 3,9). Como explica Pe. Lassus: «É justamente esta voz que, cada ano, ressoa na manhã da quarta-feira de cinzas, quando nos vem recordada a brevidade da vida e o inelutável Dia. 
Não nos podemos mais esconder entre os ramos, nem mimetizar-nos com as folhagens, mas torna-se necessário apresentar-se nus na presença do Vivente»[2]. Neste sentido, a palavra do apóstolo, que nos apresenta este tempo nas vestes mais belas e atraentes de «um tempo favorável» próprio como «o dia da salvação» (IICor 6,2), pode ser acolhida como um convite para reduzir em cinzas todas as máscaras com as quais buscamos conter o «medo» (Gn 3,10) herdado de nosso pai comum Adão. E ainda, acolhendo a afirmação do profeta, que nos recorda como e quanto o nosso Deus «é misericordioso e benigno, tardo na ira e rico de benevolência, e que se compadece daquele que sofre» (Gl 2,13), podemos coroar nossa cabeça com as cinzas de todas as nossas falências, de nossas pobrezas e dos nossos desejos frustrados. Tudo isto que, normalmente temos medo de assumir, pode ser transformado – em virtude e sob o olhar «secreto» (Mt 6,18) do Pai de Jesus – em cinzas que, mesmo recordando nossos mais verdadeiros jejuns existenciais, são sempre cada vez mais, cinzas perfumadas, dignas de homens e mulheres do «rosto» (6,17) sempre mais conforme à «imagem do Senhor Ressuscitado» (oração da benção das cinzas). Não nos resta senão que recebê-las alegres e decididamente no caminho para enfrentar as etapas desta «santa viagem» (Sl 83,6).

Fra Michel Davide, in Messa quotidiana, febbraio 2009, EDB Bologna.
[1] Soteriológico é um tema que está relacionado diretamente com a missão de Salvação de Jesus Cristo. Soter quer dizer salvador.
[2] Lassus, L.-A., «Costruire sa fidélité», in Assemblées du Seigneur 13 1975, 50.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Humildade

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.”


Cora Coralina, poetisa goiana.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O homem conservador

de Titus Burckhardt Tradução de Luiz Pontual

Deixando de lado quaisquer matizes políticos que a palavra possa ter, o conservador é alguém que procura conservar. E para dizer se ele está certo ou errado deveria ser suficiente analisar o que é que ele quer conservar. Se as formas sociais que defende — pois sempre se trata de formas sociais — estão em conformidade com o objetivo mais elevado do homem e correspondem às suas necessidades mais profundas por que não deveriam ser elas tão boas quanto — ou mesmo melhores — que qualquer coisa de novo que a passagem do tempo possa trazer à luz?
Pensar desta maneira seria normal, mas o homem de hoje já não pensa normalmente. Mesmo quando não despreza automaticamente o passado e vê o progresso técnico como fonte de todo bem da humanidade, ele normalmente tem um preconceito contra qualquer atitude conservadora, pois, consciente ou inconscientemente, está influenciado pela tese materialista de que todo “conservar” é inimigo da vida em constante mudança e assim leva à estagnação.
O estado de necessidade em que hoje se encontra toda comunidade que não acompanhou a marcha do progresso técnico parece confirmar essa tese; mas as pessoas se esquecem que isso não é tanto uma explicação quanto um estímulo para um desenvolvimento ainda maior. Que tudo deva mudar é um dogma moderno que busca sujeitar o homem à própria mudança; e é avidamente proclamado, mesmo por aqueles que se consideram cristãos sinceros, que o próprio homem está nas garras da mudança; que não somente os sentimentos e pensamentos passíveis de serem influenciados pelo ambiente estão sujeitos à mudança, mas também o próprio ser do homem.
Dizem que o homem está a caminho de se desenvolver mental e espiritualmente até se transformar em um super-homem, e, consequentemente, o homem do século XX é visto como ume criatura diferente do homem de antigamente. Em meio a tudo isso, esquece-se a verdade, proclamada por toda religião, de que o homem é o homem, não meramente um animal, porque tem dentro de si um centro espiritual que não está sujeito ao fluxo das coisas. Sem este centro, que é a fonte da capacidade humana de tecer julgamentos — e portanto pode ser chamado de órgão espiritual que veicula o senso da verdade —, não poderíamos nem mesmo reconhecer a mudança no mundo que nos rodeia, pois, como disse Aristóteles, aqueles que declaram que tudo, inclusive a verdade, segue um fluxo constante se contradizem: pois se tudo muda, sobre qual base eles podem formular uma afirmação válida?
É preciso dizer que o centro espiritual do homem é mais do que a psique, sujeita como ela está a instintos e impressões, e também mais do que o pensamento racional? Há algo no homem que o liga ao Eterno, e este algo encontra-se precisamente no ponto aonde “a Luz que ilumina todo homem que vem ao mundo” (João, 1, 9) toca o nível das faculdades psico-físicas.
Se esse cerne imutável no homem não pode ser captado diretamente — como também não o pode o centro sem dimensões de um círculo — as vias de aproximação a ele podem não obstante, ser conhecidas elas são como os raios que correm em direção ao centro de um círculo. Essas vias de aproximação constituem o elemento permanente em toda tradição espiritual e, como linhas mestras tanto para a ação quanto para aquelas formas sociais que se dirigem para o centro, constituem a verdadeira base de toda atitude verdadeiramente conservadora. Pois o desejo de conservar certas formas sociais só tem sentido — e essas formas só podem perdurar — se elas dependerem do centro intemporal da condição humana.
Em uma cultura que, a partir de suas próprias fundações (graças à origem sagrada), está dirigida para o Centro espiritual e portanto para o eterno, a questão do valor ou da ausência de valor de uma atitude conservadora não se coloca; a própria palavra para isso não existe. Em uma sociedade cristã, os homens são cristãos — mais ou menos consciente e deliberadamente —, em uma sociedade islâmica eles são muçulmanos, em a uma sociedade budista eles são budistas, e assim por diante; se alguém não o é simplesmente, não pertence à sua respectiva comunidade e não é parte dela, antes coloca-se fora dela ou lhe é secretamente inimigo.
Uma cultura como essa vive de uma força espiritual que imprime sua marca em todas as formas, desde a mais elevada até a mais contingente, e ao fazer isso ela é verdadeiramente criativa; ao mesmo tempo, ela tem necessidade de forças de conservação, sem as quais as formas logo desapareceriam. Basta que tal sociedade seja mais ou menos integral e homogênea para que a fé, a lealdade à tradição e uma atitude conservadora espelhem-se umas às outras como círculos concêntricos.
A atitude conservadora só se torna problemática quando a ordem da sociedade, como na Europa moderna, já não é determinada pelo eterno; a questão então se coloca, seja qual for o contexto, de saber quais fragmentos ou ecos da ordem outrora oniabarcante mereceram ser preservados. Em toda configuração da sociedade (e uma configuração hoje segue-se à outra em uma sucessão cada vez mais rápida), os protótipos originais nela estão refletidos de uma ou de outra maneira. Mesmo se a estrutura anterior é destruída, alguns de seus elementos individuais continuam efetivos; um novo equilíbrio — por mais deslocado e incerto que seja — é estabelecido depois de cada rompimento com o passado. Certos valores centrais são irremediavelmente perdidos; outros, mais periféricos em relação ao plano original, tomam a dianteira. A fim de que estes também não sejam perdidos, pode ser melhor preservar o equilíbrio existente do que arriscar tudo em uma tentativa incerta de renovar o todo.
Tão logo esta escolha se apresenta, a palavra “conservador” entra em cena — na Europa, ela foi adotada pela primeira vez na época das guerras napoleônicas —, e o termo fica marcado pelo dilema inerente à própria escolha. Todo conservador é imediatamente suspeito de querer apenas preservar seus privilégios sociais, por pequenos que sejam. E nesse processo a questão de saber se o objeto da preservação vale a pena ser preservado é deixada de lado. Nas por que a vantagem pessoal deste ou daquele grupo não poderia coincidir com a Justiça? E por que determinadas estruturas e determinados deveres sociais são poderiam ser proveitosos para uma certa inteligência?
Que o homem raramente desenvolve a inteligência quando carece dos estímulos exteriores correspondentes é provado pelo pensamento do homem comum de hoje em dia; só muito poucos — em geral, somente aqueles que em sua juventude experimentaram um fragmento da “velha ordem”, ou que tiveram a oportunidade de visitar uma cultura oriental ainda tradicional — podem imaginar quanta felicidade e paz interior uma ordem social estratificada de acordo com as vocações naturais e as funções espirituais pode oferecer, não somente às classes dominantes, mas também às classes trabalhadoras.
Em nenhuma sociedade humana, por mais justa que ela possa ser como um todo, as coisas são perfeitas para todo indivíduo, mas há uma prova segura de se uma dada ordem oferece ou não felicidade à maioria: esta prova é inerente a todas aquelas coisas que são feitas, não com algum propósito material, mas com alegria e devoção. Uma cultura em que as artes são criação exclusiva de uma classe especialmente educada — de maneira que não há mais nenhuma arte popular ou nenhuma linguagem artística universalmente entendida — fracassa complemente a este respeito. A recompensa exterior de uma profissão é o rendimento que sua prática pode assegurar; mas sua recompensa interior é que ela deveria lembrar o homem do que, por natureza e vindo de Deus, ele é e a este respeito não são sempre as ocupações mais bem sucedidas que são as mais felizes.
Cultivar a terra, orar por chuva, criar alguma coisa significativa a partir da matéria bruta, compensar a carência de alguns com o excesso de outros, governar estando ao mesmo tempo preparado para sacrificar a própria vida pelos governados, ensinar por amor à verdade — estas, entre outras, são as ocupações interiormente privilegiadas. Poder-se-ia perguntar se, como resultado do “progresso”, elas aumentaram ou diminuíram.
O homem tornou-se sua própria medida, diriam muitos hoje, quando, como trabalhador, ele posta-se diante de uma máquina. Mas a verdadeira medida de um homem consiste em que ele possa rezar e abençoar, lutar e governar, construir e criar, plantar e colher, servir e obedecer — todas essas coisas pertencem ao homem.
Quando, hoje, certo elemento urbano exige que o sacerdote despoje-se dos sinais de sua função e viva o máximo possível como os outros homem, isto apenas prova que esses grupos já não sabem o que o homem fundamentalmente é; perceber o homem no sacerdote significa reconhecer que a dignidade de sacerdote corresponde infinitamente mais à natureza humana original do que o papel representado pelo homem “comum”. Toda cultura geocêntrica tem uma hierarquia mais ou menos explícita de classes sociais ou “castas”. Isto não significa que ela considere o homem como uma mera parte que só encontre sua realização no povo como um todo; significa, ao contrário, que a natureza humana é em si mesma demasiado rica para que todos a todo momento estejam aptos a realizar todos os seus aspectos. O homem perfeito não é a soma total, mas o cerne ou a essência de todas as várias funções. Se as sociedades hierarquicamente estruturadas puderam se manter por milênios, isto se deve não à passividade dos homens ou ao poder dos governantes, mas ao fato de que tais ordens sociais correspondiam à natureza humana.
Há um erro muito difundido que diz que a classe naturalmente conservadora é a burguesia, que originalmente identificou-se com a cultura das cidades, onde se originaram todas as revoluções dos últimos quinhentos anos. A burguesia, de fato, especialmente como conseqüência da Revolução Francesa, desempenhou um papel conservador, e ocasionalmente assumiu alguns ideais aristocráticos — não, contudo, sem tirar partido deles e gradualmente falsificá-los. Em meio à burguesia, sempre houve conservadores que se baseavam na inteligência, mas desde o começo eles foram minoria.
O camponês é em geral conservador; ele o é, por assim dizer por experiência, pois ele sabe — mas quantos ainda sabem? — que a vida da natureza depende da constante auto-renovação de um equilíbrio de inumeráveis forças inter-relacionadas, e que não se pode alterar nenhum elemento deste equilíbrio sem comprometer o todo. Basta simplesmente desviar o curso de um ribeirão para alterar a flora de toda uma área ou eliminar uma espécie animal, permitindo imediatamente a outra espécie crescer de maneira devastadora. O camponês não acredita que se possa produzir chuva ou sol a bel prazer.
Seria errôneo concluir daí que o ponto de vista conservador está acima de tudo ligado ao sedentarismo e ao apego do homem ao solo, pois já se demonstrou que nenhuma coletividade humana é mais conservadora do que os nômades. Em todo o seu constante vagar, o nômade está atento em preservar sua herança de linguagem e costumes; ele resiste conscientemente à erosão do tempo, pois ser conservador não significa ser passivo.
Esta é uma característica fundamentalmente aristocrática; neste ponto, o nômade assemelha-se ao nobre, ou, para ser mais preciso, a nobreza que se origina na casta guerreira tem necessariamente muito em comum com o nômade. Ao mesmo tempo, contudo, a experiência de uma nobreza que ainda não foi estragada pela vida da corte e da cidade, que ainda está ligada à terra, assemelha-se à do camponês, com a diferença que ela abrange relacionamentos territoriais e humanos muito mais amplos. Quando, pela hereditariedade e pela educação, a nobreza está consciente da identidade essencial entre as forças da natureza e as forças da alma, ela possui uma superioridade que dificilmente pode-se adquirir de outra maneira; e todo aquele que está consciente de uma genuína superioridade tem o direito de insistir nela, do mesmo modo que em qualquer arte o mestre tem o direito de preferir seu próprio julgamento ao daquele que é inexperiente.
Há que se entender que a superioridade da aristocracia depende tanto de uma condição natural quanto de uma condição ética: a condição natural é que, dentro da mesma família ou tribo, pode-se, em termos gerais, depender da transmissão por herança de certas qualidades e capacidades; a condição ética expressa-se no dito “noblesse oblige”: quanto mais elevado o nível social — e seu privilégio correspondente — maior a responsabilidade e a carga de deveres; quanto mais baixo o nível, menor o poder e em menor número os deveres, até a existência eticamente indiferente das pessoas passivas. Se as coisas não são sempre perfeitas, isto não se deve principalmente à condição natural da hereditariedade, pois esta é suficiente para garantir indefinidamente a natureza homogênea de uma “casta”; o que é muito mais incerto é o cumprimento da lei ética, que exige uma combinação equilibrada de liberdade e dever. Não há sistema social que exclua o mau uso do poder; e se houvesse algum, ele não seria humano, desde que o homem só pode ser homem se ele se conforma simultaneamente à uma lei natural e a uma lei espiritual. O mau uso do poder hereditário, portanto, nada prova contra a lei da nobreza, ao contrário, só o exemplo daquelas poucas pessoas que, quando privadas do privilegio hereditário, nem por isso renunciam à sua responsabilidade hereditária já basta para provar a tendência ética da aristocracia.
Quando, em muitos países, a aristocracia caiu por causa de sua própria autocracia, isto se deu não tanto por que ela foi autocrática para com os níveis inferiores, mas antes porque ela foi autocrática em relação à lei superior da religião, a única que forneceu à aristocracia sua base ética e moderou com a misericórdia o direito dos fortes.
Desde a derrocada, não apenas da natureza hierárquica da sociedade mas de quase todas as formas tradicionais, o homem conscientemente conservador encontra-se por assim dizer em um vácuo. Ele se acha só em um mundo que, com toda sua escravidão opaca, jacta-se de ser livre e, com toda sua uniformidade compressora, jacta-se de ser rico. Gritam-lhe aos ouvidos que a humanidade está desenvolvendo-se continuamente em sentido ascendente, que a natureza humana, depois de se desenvolver por tantos e tantos milhões de anos, passou agora por uma mutação decisiva, que a levará à sua vitória final sobre a matéria. O homem conscientemente conservador encontra-se só entre notórios bêbados, é o único desperto em meio a sonâmbulos que tomam seus sonhos por realidade. Pelo entendimento e pela experiência, ele sabe que o homem, com toda a sua paixão pela novidade, continua fundamentalmente o mesmo, para o bem ou para o mal; as questões fundamentais da vida humana têm sido sempre as mesmas; as respostas a elas são conhecidas desde sempre, e, na medida em que podem ser expressas em palavras, têm sido transmitidas de geração em geração. O homem conscientemente conservador interessa-se por esta herança.
Visto que quase todas as formas tradicionais de vida estão destruídas, raramente se concede a ele participar de um trabalho universalmente útil e significativo. Mas toda perda implica em um ganho: o desaparecimento das formas pede por uma provação e um discernimento; e a confusão no mundo que nos rodeia é um chamado para que, desviando-se de todos os acidentes, voltemo-nos para o essencial.