domingo, 15 de abril de 2012

O perdão na Cruz


«Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem» (Lc 23,34)
A primeira palavra que nos é dada hoje é uma invocação ao Pai, pelo perdão daqueles que o crucificavam. Este perdão acontece antes da crucificação, antes dos insultos que eles dirigirão ao Senhor e antes mesmo de sua morte. O perdão vem antes de tudo. Talvez não poderíamos suportar escutar o relato da Paixão de Cristo, se não iniciássemos com o perdão. Antes mesmo que pequemos, somos já perdoados. Não precisamos ganhar o perdão, nem mesmo devemos nos arrepender. O perdão está lá e nos espera.
Tudo isto parece muito bonito, mas não poderia ser também um tanto “condescendente”? Pode parecer que o perdão torna nossos atos irrelevantes. Um casal de amigos meus, algum tempo faz, convidou-me para um período de descanso em sua casa. Eles tem dois gêmeos encantadores, e uma teoria, segundo a qual, lhes é permitido fazer o que quiserem. Podiam quebrar objetos, gritar e urrar, mudar de ideia a toda hora. Voltei para casa depois de ter me divertido muito, mas agradecendo pelo fato de ser solteiro. A teoria dos pais era que os filhos crescerão com um profundo senso de segurança, sabendo que seriam amados sempre, em qualquer coisa que fizessem. Perguntei-me: eles não poderiam também chegar ao ponto de pensar que seus atos fossem irrelevantes? Se você sabe que será perdoado em qualquer coisa que faça, então porque buscar ser bom? «Caro velho Timothy, você acabou de matar mais um de teus irmãos. Tudo é tão desagradável, mas o querido Senhor o perdoará, por isso, não tem importância».
O perdão vem antes de tudo. Isto é o escândalo do Evangelho. Mas não significa que Deus não leve à sério aquilo que fazemos. Deus n\ao esquece que crucificamos seu Filho. Nós não podemos afastar este pensamento de nossa mente. Na verdade, na Sexta feira Santa nos reunimos para escutar o relato da paixão e morte de Cristo e para recordar que a humanidade rejeitou, humilhou e assassinou o Filho de Deus. E somente porque existe perdão é que podemos ousar recordar o mais terrível dos erros cometido pelos homens. O perdão não significa que Deus esquece a Sexta-feira Santa, significa que o Pai ressuscita o Filho no Domingo de Páscoa. Se o perdão significasse esquecer, então Deus sofreria da forma mais grave de amnésia, mas é a imaginação criativa de Deus que toma aquilo que fizemos, e o torna frutífero. A imagem medieval do perdão era aquela do florescer da Cruz. A Cruz é o repugnante sinal da tortura. E o símbolo da capacidade do homem de rejeitar o amor e de fazer o que é totalmente estéril. Mas os artistas medievais mostraram a Cruz que florescia no Domingo de Páscoa, como no mosaico absidal da basílica romana de São Clemente, perto do Coliseu. Do madeiro seco da Cruz surgem os ramos e as flores. O perdão faz viver o que estava morto e torna belo o que era horrível. O perdão significa que a Cruz é a nossa nova árvore da Vida, da qual somos convidados a comer os frutos. No quarto século, São João Crisóstomo escrevia sobre a Cruz:
«A Árvore é a minha salvação eterna, o meu nutrimento e o meu banquete. Entre as suas raízes afundo minhas próprias raízes. Sob os seus ramos eu cresço. Fugindo do calor escaldante, plantei a minha tenda em sua sombra e ali encontrei repouso, fresco de orvalho. Floresço com suas flores. Alegria perfeita trazem seus frutos, reservados para mim, desde o início dos tempos, frutos que agora posso comer livremente. Esta Árvore é comida, doce alimento, para a minha fome, e uma fonte para minha sede, é vestimenta para minha nudez, as suas folhas são hálito de vida. Se temo Deus, esta é a minha proteção, se tropeço, este é meu bastão; este é o premio pelo qual eu luto, a recompensa pela minha vitória. Este é o caminho reto e estreito; esta é a escada de Jacó, onde os anjos subiam e desciam, e em cima da qual, está o próprio Senhor»[1].
O perdão significa que ousamos enfrentar aquilo que fizemos. Ousamos recordar tudo de nossa vida, com as falências e os desastres, com a nossa crueldade e a falta de amor. Ousamos arrepender-nos todas as vezes nas quais fomos mesquinhos e avarentos, e nossas ações abjetas. Ousamos recordar não para ficarmos prostrados e esmagados, mas de modo a abrir a nossa vida a esta transformação criativa. Não nos deixa como estamos, como se nada do que tenhamos feito no passado tenha tido alguma importância. Se entramos neste perdão, ele nos mudará e nos transformará. Qualquer coisa estéril e árida dará frutos. Tudo aquilo que não tem senso, encontrará um significado. Ao final do Senhor dos Anéis – do escritor inglês John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) – Sam esparrama sobre todas os campos queimados do condado, o mágico fertilizante que os elfos lhe deram, e na primavera seguinte, toda árvore floresceu. Esta é uma imagem do perdão.
Jesus pede ao Pai o perdão não somente por aquilo que fazem a ele. Não é crucificado sozinho: estão com ele outros dois homens, um à direita e outro à esquerda. Eles representam todos os milhões de pessoas que crucificamos ao longo da história. Pensemos no holocausto durante a segunda guerra mundial, da qual tantos cristãos foram cúmplices ou, pelo menos, não se opuseram. João XXIII assim rezou:
«Damo-nos contas de que a marca de Caim está sobre a nossa fronte. Através dos séculos, nosso irmão Abel jazia no sangue que cavávamos, ou derramava lágrimas que causávamos, esquecendo o Teu amor. Perdoa-nos pela maldição que nós falsamente ligamos ao seu nome como hebreus. Perdoa-nos por ter te crucificado uma segunda vez na carne deles. Porque não sabíamos aquilo que fazíamos»[2].
Quem são as pessoas que crucificamos hoje, com o nosso imperialismo econômico que produz tanta pobreza? Quem crucificamos con a nossa violência e a guerra? Quem ferimos até mesmo no interno de nossas casas? Porque sabemos que o perdão vem antes de tudo, podemos ousar abrir os olhos.
Uma cruz de madeira esculpida por Michael Finn, meu amigo, que é também pai de um amigo e irmão na Ordem dominicana, o Pe. Richard. Michael é bem conhecido pelas sua pinturas abstratas, mas nos últimos vinte anos, criou crucifixos de extraordinária potência expressiva. Foram esculpido, frequentemente, com restos de madeira depositados pelo mar, que ele e sua mulher, Cely, recolheram durante seus passeios nas praias perto de sua casa na Cornualha, no sudoeste da Inglaterra[3]. Michael morreu no Domingo de Ramos de 2002, o dia em que Jesus entra em Jerusalém para enfrentar a própria morte.
Se o perdão é a criatividade de Deus, que irrompe e transforma a nós, nossas abjeções e esterilidades, então temos necessidade de artistas como Michael para expressá-la no melhor dos modos. A beleza não é decorativa, mas torna visível a obra da graça na nossa vida. A filósofa francesa Simone Weil (1909-1943) disse que a beleza é um sacramento do sorriso de Deus. A arte pode desvelar como mesmo um objeto sumamente repugnante como é a cruz possa chegar a ser visto como belo. No Sonho da Cruz, uma antiga poesia anglo-saxônica, ela é descrita como uma «admirável árvore triunfante sobre os ares – a mais esplêndida das cruzes – toda circundada de luz», irradiando a luz como um farol recoberto de outro, adornado de joias de rara beleza[4]. Conta-se que Miguel Ângelo tinha encontrado um bloco de mármore que um outro artista, tinha arruinado, depois de ter tentado esculpi-lo, sem o conseguir. Miguel Ângelo tirou dele o famoso e gigantesco Davi, hoje me mostra na Academia, em Florença. Isto é o que faz o perdão de Deus, de um modo que supera nossa capacidade de compreensão. O perdão significa que os nossos pecados podem encontrar um lugar no nosso caminho para Deus. Nenhuma fala deve nos conduzir, necessariamente para um beco sem saída. Por isso, Santo Agostinho (354-430) definia o pecado de Adão e Eva como uma “Felix culpa” (feliz culpa), porque foi a causa da encarnação de Jesus. Quando pecamos, cometemos atos que são estéreis e absurdos, e que minam o significado da nossa vida. O perdão significa que pode-se contar uma história que conduza a alguma coisa, à felicidade.
Um famoso pintor japonês, Katsushita Hokusai (1760-1849), pintou sobre um vaso uma esplendida vista da montanha sagrada de seu país, o Fujiama. Depois, um dia, alguém deixou cair o vaso, que se esfacelou! Lentamente o artista colou os vários pedaços e o reconstruiu. Mas, em recordação do que tinha acontecido com o vaso, sua queda e quebra, inseriu nas junturas das peças um fio de ouro, e agora o vaso ficou muitíssimo melhor e mais belo do que ele era antes.

Timothy Radcliffe OP
Le sette parole di Gesù in Croce
Cinisello Balsamo 2006, 23-28.


[1] Trecho tirado do Breviario em língua inglesa.
[2] Citado in Eliezer Berkovits, Faith after the Holocaust, New York 1973, 26.
[3] Anthony Phillips utilizou admiravelmente as cruzes de Michael Finn para ilustras as suas meditações sobre as Sete Palavras de Jesus sobre a Cruz, no livro Entering into the Mind of God, London 2002.
[4] Poesia Anglo-saxônica, London 1982, 160.

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