terça-feira, 8 de março de 2011

06 Cacos para um mosaico



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Nesta madrugada de carnaval, enquanto no país se desfilava pelos grandes sambódromos, líamos as atas do martírio destas duas santas africanas dos primeiros séculos, Perpétua e Felicidade. Mães de família, cristãs autênticas, de quem o narrador, vencido pela força de sua personalidade, diz que só puderam ser mortas porque decidiram morrer. O relato é belo, e conta de outros mártires também, num espetáculo de sangue e violência, a paz destas pessoas, de quem conseguiram arrancar tudo, menos o seu tesouro mais precioso: sua fé.
Muitas igrejas em Roma são adornadas com mosaicos antigos e belíssimos. Os pavimentos tem verdadeiros tapetes de mármores preciosos. Recordo-me que ficava muito impressionado diante destes arrebatadores pavimentos cosmatescos. Sabia que suas pedras eram reutilizadas de antigos monumentos romanos. Por isso, eram duplamente belos, no mínimo. Tinham adornado grandes palácios e templos romanos, e antes disso tinham vindo de muito longe, carregados por escravos, talvez de outros palácios e templos de outras culturas e religiões. Pedras de cores fortes, de belos veios, de resistente fascínio. Quando o império caiu, aos poucos, elas caíram juntas. A nova civilização surgia, e elas se levantaram com ela. Já eram fragmentos, fruto da decadência e dos terremotos, e foram artisticamente fragmentadas, agora com uma arte precisa, para que contassem aos olhos dos homens, os mistérios do cristianismo. Para mim, elas falavam de múltiplas formas, dentro do discurso de seu artífice e do seu próprio.
Encontrei um pequeno fragmento de um destes mosaicos, no lixo de uma igreja em restauração, no setor histórico de Roma. É pórfiro verde, e veio de muito longe, é muito duro e belíssimo. Ele estava sozinho, exatamente como eu, no dia em que o encontrei. Só Deus sabe em que desenho maravilhoso ele estava, o amor que recebeu de seu artífice, quando o escolheu para aquele exato lugar, onde sua cor e forma eram necessárias para traduzir o intraduzível. Muito mais tarde, ele voltou a fazer parte de um mosaico que realizei na capela do Santíssimo Sacramento da Catedral de Ponta Grossa, ele esperou - e as pedras sabem esperar - sua hora e sua vez!
Terminando o mosaico, lembrava do título e introdução do livro de Adélia Prado: “Cacos para um vitral”, prosa de uma das maiores poetisas da língua portuguesa. «Restos de poesia dão excelente prosa!» diz ela. A autora descreve os acontecimentos prosaicos da vida de uma dona de casa, como pedaços de vidro, coloridos e transparentes, que unidos, formam figuras e beleza inigualável. Nosso irmão, D. Beda, realizou vitrais extraordinários para nosso mosteiro, com restos de vidro colorido que ganhamos de uma firma de vitrais. Nas caixas são coisa poeirenta, mas nos conjuntos, iluminados e juntos, contam coisas que nenhuma palavra poderia conseguir.
Lembrava ainda de um comentário de uma amiga, que viu o mosaico sendo feito e me disse de um filme, onde uma mãe fazia um mosaico sobre uma mesa, com os cacos de toda louça que era quebrada por seus filhos, e que sua filha a criticava por essa mania bizarra, e depois de sua morte, decide continuar o mosaico da mãe...
Pensava em tantas existências que foram destroçadas por tragédias inevitáveis, por perdas irreparáveis, pensava em mim mesmo, feito em pedaços diante de algumas marteladas da vida, na escultura que ela vem realizando, descobri que os pedacinhos perdidos eram úteis! Que depois da desordem vinha a ordem, que a Segunda natureza, reconstituída, ficava mais bonita que a primeira. Que os fragmentos de realidades tão caras seriam úteis, sem deixar sua história para trás, apenas ocultando-a em seu redimensionamento, como meu pórfiro verde, que era feliz pelo que foi e viveu, e pelo que é e pelo que ainda será. Estar quebrado não é para nada agradável, e a sensação de estar separado em caixinhas, menos ainda. Mas descobri, no papel do artífice, o amor que ele tem por cada pedacinho de suas pedras. Ele aprende a amá-las, porque se não as conhece, não poderá descobrir seu melhor lado, aquele que ficará à mostra; outros 5 lados ficarão dentro da parede, cumprindo sua função também. Ele revela um mistério ao mesmo tempo que o vela. Os dedos do artífice passam continuamente pelas suas pedrinhas, até mesmo ferindo-se em suas pontas agudas. Seus olhos aprendem a contemplá-las, em seus variados lados, em suas cores. Todas são importantes, as bem comportadas (cubinhos ) e as “informais”, todas tem seu lugar, no seu tempo. Ele as ama, e reserva algumas para as tarefas especiais, ou porque são muito belas, ou porque são muito tortas.
No dia em que contemplamos, de novo, o martírio destes cristãos africanos, vidas despedaçadas, carnes e roupas rasgadas, batismo de sangue, ao mesmo tempo, vemos o conjunto maravilhoso do testemunho que deram. O Pai, o Eterno Artífice, com os dedos do Espírito Santo, deu forma com estes pedaços, ao belíssimo Rosto de Cristo que vive e sofre nos seus membros, ganha, mesmo perdendo, a batalha contra a superficialidade e o mal no mundo, e permanecem, diante de nossos olhos, obra prima da Criatividade Divina, no paradoxo dos acontecimentos humanos.



Cosmatesco é uma palavra que vem dos autores destes mosaicos, a família Cosmato, ou a sua corporação, responsável por muitíssimos trabalhos na Itália nos séculos XIII e XIV.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Ornamentos Armênios


Compartilho este belíssimo site de ornamentos da cultura cristã armena. Em cem folhas podemos ver o que poderia ser um velho tacuíno, ou seja, o caderno de desenhos e cores que todo mestre elaborava ao longo de seu aprendizado e vida, e que lhe serviam de "fonte de inspiração" diante dos trabalhos que fazia. Este era o elemento que servia de elo para a tradição, pois esses cadernos passavam de mestre a discípulo, eram copiados e ampliados, e isto pode explicar esta linguagem comum que encontramos na arte Antiga e Medieval, ao mesmo tempo ajuda-nos a entender a fecunda criatividade com que os mesmos desenhos eram usados por pessoas diferentes. Seguramente eles não tinham a noção, tão contemporânea, dos direitos autorais, pois o artesão se manejava dentro das águas de uma Tradição comum, da qual não se sentia proprietário, mas servidor. Ele mostrava seu gênio utilizando esses elementos da forma mais perfeita, no local concreto ou na obra em que devia trabalhar, adaptando, redimensionando, combinando, e com isso, criando algo novo, do velho tesouro. Poderemos recordar, não muito tempo atrás, que nossas avós tinham cadernos de bordados ou de costura, onde se conservavam, passados de mãe para filha, os riscos que dariam forma aos trabalhos manuais, as amostras de tricô ou crochê, as receitas de bolos e pratos familiares. No link raiz do site indicado, encontramos outros endereços sobre estes ornamentos armênios, incluídos estudos dos mesmos, e sua interessantíssima origem, relacionada, segundo seu autor, às manifestações dos primeiros homens das cavernas. Mais tradicional que isto, impossível!
Este tipo de realidade nos ajuda entender o papel do artista por milênios. Ele não era alguém "sui generis" que devia criar do nada, inventar sempre algo que não tinha ainda sido pensado... mostrar sua genialidade através de sua total originalidade. Se o gênio era verdadeiro, ele o fazia, através da combinação dos velhos elementos, e deste modo, ele entrava para a tradição e suas soluções passavam a fazer parte dos tacuínos. Esses cadernos, a maioria absoluta perdida, eram fruto da decantação e purificação de milênios de história humana! Quê grande conforto para o ser humano artista! ele não estava sozinho diante de uma parede branca, não era um deus nem um maldito, mas simplesmente um servidor.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O teu nome é Luto, aleluia!


Os Atos dos Apóstolos falam do «luto», ou melhor «do grande luto» (At 8,2) que a comunidade cristã faz pelo diácono e mártir Estêvão e – lendo o discurso sobre o pão – poderíamos dizer que o Senhor Jesus faz o seu «luto» – talvez ainda maior – sobre a nossa incredulidade. A psicologia moderna e pós moderna fala frequentemente da necessidade do «luto» nas várias fases e nos momentos significativos da vida: é necessário metabolizar as mortes, as perdas, os fracassos que atravessam nossa vida, para que não sejam simplesmente tumbas que se fecham sobre nós, paralisando a vida, mas ocasiões de crescimento. De fato, o martírio de Estêvão e a sua piedosa sepultura são vividos pela comunidade cristã como um momento de tristeza, mas também como ocasião para continuar decisivamente o próprio caminho de anúncio do evangelho, tanto que, no final, encontramos o exato contrário daquilo que poderíamos esperar: «E houve uma grande alegria naquela cidade» (At 8,8).
Assim também o Senhor Jesus não tem nenhum temor em chamar a atenção e quase denunciar nossa incredulidade e nossa dureza de coração diante do anúncio do evangelho, e isto, ao invés de nos dobrar sobre nós mesmos, permite-nos nutrir-nos e metabolizarmos – para que dê vida – o «pão» (Jo 6,35) que Ele é para nós. Não se pode esquecer que nenhum tipo de alimento seria capaz de nutrir, se não passasse através do processo de assimilação que exige uma transformação, que acontece sempre através de uma morte e, depois, um «luto». A experiência da primeira comunidade cristã, acompanhada e iluminada pela Palavra do Senhor Jesus, obriga-nos, por um lado, a dar-nos contas das realidades de morte que necessariamente assinalam nossa vida, e por outro, a não pararmos: «Aqueles, porém, que se tinham dispersado, andaram de lugar em lugar, anunciando a Palavra» (At 8,4).
O Senhor Jesus o afirma com força: «Eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6,40), mas – como aconteceu para o Senhor Jesus e o seu discípulos Estêvão, que se fez o primeiro da fila de uma inumerável legião de homens e mulheres que souberam pagar com a vida o penhor da esperança que lhes fazia viver – nenhuma ressurreição é pensável se não passa através do tempo de «luto» como capacidade de englobar a morte, com serena força, no interno das próprias leis da vida. A lamentação do Senhor, que soa nestes termos: «Eu vos disse que, mesmo me tendo visto, ainda assim, não credes» (6,36) coloca o dedo na ferida da nossa incredulidade de fundo, que nasce de uma ignorância misturada com desconfiança naquele que é o mistério e o segredo da vida verdadeira. Somos bombardeados continuamente com propostas e ofertas que buscam iludir-nos com o fato de que possamos receber e ter muito – muitíssimo mesmo – a custo zero, enquanto o Senhor nos recorda que, nas coisas verdadeiras existe sempre um custo... exatamente como aquele que pagou Estêvão, cujo sangue se torna semente e não tumba.
Fra MichelDavide Semeraro OSB, Messa quotidiana – aprile, Bologna 2010, 268-270.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O teu nome é "Se", aleluia!


O modo como o rabino Nicodemos se dirige ao Senhor Jesus é emblemático: «Rabi, sabemos que vieste de Deus como mestre; ninguém, de fato, pode realizar estes sinais que tu realizas, se Deus não está com ele» (Jo 3,2). Nestas palavras podemos ler uma grande admiração da parte de um membro com autoridade do sinédrio em confronto com este rabino itinerante proveniente da Galiléia. Mas podemos também adivinhar como, para Nicodemos, o critério de discernimento para avaliar uma pessoa esteja ligado aos «sinais» que ele realiza muito mais que – partindo dos sinais externos – buscar compreender o sinal que ele é como pessoa. A isto o Senhor Jesus reage prontamente e, em certo aspecto, brutalmente: «Em verdade, em verdade eu ti digo, se alguém não nasce do alto, não pode ver o Reino de Deus» (3,3). Poderíamos comentar esta resposta do Senhor Jesus a Nicodemos, retomando o texto do salmo responsorial que a liturgia nos oferece: «Ri-se deles o que mora lá nos Céus, zomba deles o Senhor onipotente» (Sl 2,4). É claro que o Senhor Deus não ri de nós, mas como uma mãe que assiste os primeiros passos de seu próprio filho, sustentando-o nas suas inumeráveis quedas, vê e considera como nos custa tanto olhar a realidade desde dentro e não somente do exterior, como também a avaliar e incrementar a nossa mesma vida desde o profundo de nosso coração, e não da exterioridade dos gestos e palavras, tantas vezes maiores que nós, ao ponto de não expressar nada daquilo que verdadeiramente desejamos e do que realmente somos. Como explica Teodoro de Mopsuéstia, falando do batismo: «Quando se trata da geração natural, o seio da mãe é o lugar no qual se forma a criança, mas este se desenvolve até o termino pela potência de Deus que, desde a origem, o criou. Assim também, no evangelho, a água ocupa o lugar da mãe, mas é o Espírito a ser o Criador»[1].

Lá onde Nicodemos busca colocar-se, diante de Jesus, em uma situação de paridade e, até mesmo, com uma pitada de superioridade - «nós sabemos» (Jo 3,2) – o Senhor o chama a si mesmo e ao seu caminho pessoal de crescimento interior, que não se faz «em grupo», mas só e exclusivamente, assumindo o peso da própria solidão e da própria responsabilidade pessoal. Atingir a própria interioridade é o grande convite que o Senhor ressuscitado faz a cada um de nós, para poder, por nosso lado, viver a mesma experiência dos apóstolos e da Igreja nascente: uma abertura à profundidade de si mesmos permite-lhes serem fiéis a si mesmos e a não temer nenhuma ameaça externa. Quando somos capazes de viver à altura de nossa interioridade, então é claro que o Espírito não somente vive dentro de nós, mas nos regenera tão profundamente que a sua ação potente se torna perceptível: «Quando terminaram a oração, o lugar no qual estavam reunidos tremeu, e todos ficaram plenos do Espírito Santo, e proclamavam a Palavra de Deus com franqueza» (At 4,31).

Fra MichelDavide Semeraro OSB, Messa quotidiana – aprile, Bologna 2010, 192-194.


[1] Teodoro di Mopsuestia, Commento su Giovanni II,2.

sábado, 10 de abril de 2010

O teu nome é Ignorância, aleluia!

Como explica um texto admirável de Michel de Certeau , tudo isto acontecia «no mesmo dia» (Lc 24,1). Trata-se do primeiro dia da semana: dia primeiro e último, dia no qual os discípulos parecem resignarem-se ao «fato» da morte de seu Mestre e que, ao invés, é o dia de sua ressurreição, capaz de recolocar em caminho a vida e a história desde um ponto completamente novo e inesperado. Tudo isto torna-se possível porque «Jesus, em pessoa, aproximou-se deles, e caminhava com eles» (24,15), fingindo uma ignorância que provocaria, nos discípulos, a possibilidade de um conhecimento total e completamente novo. Gregório Magno, enquanto comenta este texto, exprime-se assim: «A Verdade, que é simples, não fez nada com duplicidade; ela simplesmente manifestou-se aos discípulos no seu corpo assim como era no espírito deles. A Verdade caminhava com eles; não podiam, pois, permanecer estranhos ao amor e, por isso, ofereceram-lhe a hospitalidade, como se faz com um viajante» . Às mulheres que vão ao sepulcro e lá encontram o Mestre ressuscitado e desejoso de indicar-lhes caminhos novos de vida e de alegria, sucedem, hoje – naquela que poderíamos definir como galeria das testemunhas da Oitava de Páscoa – estes dois discípulos, que – um pouco como o profeta Jonas – vão na direção oposta àquela da Cruz, quase para subtraírem-se, em uma mistura de medo daquilo que lhes poderia acontecer e de uma nostalgia sutil daquilo que poderia, ao contrário, ter sido: «Nós esperávamos que ele fosse aquele que teria libertado Israel» (24,21). É tal a angústia que ferroa o coração dos dois discípulos, que eles tem necessidade de falar com alguém daquilo que lhe sufoca o coração: tomaram a decisão – estão indo longe de Jerusalém – mas a palavra – tão evidentemente absurda – das «mulheres» (24,22) deixou-os «desconcertados» e continua trabalhando-os interiormente, como um cupim. Se é típico das mulheres manifestar e afirmar os próprios sentimentos mais profundos, é próprio dos homens exorcizá-los com os raciocínios. O Senhor Jesus revela-se a partir do modo que cada um tem para enfrentar as grandes passagens da vida, por isso faz-se encontro diante das mulheres, em um face a face exaltante, e diante destes dois homens, caminhando próximo com eles, e subtraindo-se à sua vista, quase para não humilhar as conclusões a que chegaram, com seus raciocínios, repletos de evidências. Não é diferente a situação da qual nos fala hoje os Atos, e que acontece «junto à porta do templo, chamada Bela» onde «com frequência» era colocado um paralítico. Quem esperaria uma cura quando está acostumado receber «esmolas» (At 3,2)? O mistério pascal de Cristo Senhor nos convida a tomar consciência da nossa profunda ignorância sobre aquelas que são as possibilidades da vida, dentro e ao nosso redor. Saberemos, como Pedro e João, ser dispensadores de esperanças sempre maiores, que se exprimem em uma só palavra: «Caminha!»?
Fra MichelDavide Semeraro OSB, Messa quotidiana – aprile, Bologna 2010, 145-147.

O teu nome é Enquanto, aleluia!




Uma outra vez, uma mulher nos abre o caminho para nossa compreensão e imersão no mistério pascal de Cristo Senhor, e é a mesma e diversa Maria de Magdala que, no Evangelho segundo João, assume um papel particular e está como que ao lado e de frente com o discípulo amado, como tipo do que todo discípulo é chamado a se tornar e viver. O contexto da ressurreição não é aquele do « terremoto» (Mt 28,2), assim como o encontramos no Evangelho de Mateus, mas aquele do íntimo tormento de um coração transbordando de amor que não consegue mais encontrar os sinais do amor. Antes de tudo, Maria está só e não em companhia da «outra Maria» (28,1). João prefere apresentar-nos a chegada dos apóstolos em dois ao sepulcro, depois das palavras que Maria pronuncia no cenáculo trancado, enquanto deixa que a mulher chegue sozinha e sozinha se encontre – antes e depois – no jardim que hospeda a tumba do Senhor, e onde poderá reconhecê-lo como ressuscitado somente depois de ter aceitado ser chamada pelo nome e levada para alem das doces margens da morte, nas quais esta mulher – como frequentemente cada um de nós arrisca fazer – deixou-se levar em um tipo de dor de auto complacência. Deste modo é colocado no seu relato, o quarto evangelista: «Maria estava no externo, próximo ao sepulcro, e viu dois anjos em vestes brancas, sentados um à cabeceira e outro aos pés, onde tinha sido colocado o corpo de Jesus» (Jo 20,11).

Maria vê através do véu das lágrima e por isso pensa não ver senão a própria dor, que se fez «vazio» pela morte do Senhor Jesus. Mas à sua visão vem em socorro a palavra ouvida em forma de pergunta, primeiro através dos anjos e depois pela mesma voz do Senhor Jesus, que lhe propõe, primeiramente, uma pergunta e depois a chama pelo nome. A tumba se torna, desta maneira, o símbolo do coração do discípulo: nela é preciso encontrar o Senhor, mas de um modo completamente novo e bem diferente de todas aquelas que são nossas expectativas que, não raramente, tornam-se ilusões espirituais. O duplo dirigir-se e re-dirigir-se de Maria nos revela qual caminho de conversão interior é necessário fazer para que os lugares da morte se transformem em um jardim, no qual se respirem os perfumes da primavera. Com Maria, primeiro, e depois com Simão Pedro, somos chamados a aprender a arte de deixarmo-nos questionar por aquilo que atravessa a nossa vida e a leva além de tudo aquilo que ela já nos tinha oferecido. Neste contexto, a palavra que Simão Pedro dirige à multidão reunida diante do cenáculo, na manhã de Pentecostes, assume uma nota particular: «Convertei-vos e cada um de vós se faça batizar em nome de Jesus Cristo, para o perdão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo» (At 2,38). Não se trata de «fazer» (2,37), mas de aceitar viver o «enquanto» da nossa vida, como ela é, fazendo dela um lugar de contínua ressurreição, através de uma renovada e sempre mais plena relação com o Senhor Jesus, que não aceita ser prisioneiro de nenhuma tumba, e nos chama a segui-lo nos caminhos da vida, até bastante longe de nossas dores, muitas vezes tão amadas, porque nos dão seguranças. Não é Jesus o que está morto, mas é Maria a estar engalfinhada com a morte, e por isso o convite é lapidar: «Vai!» (Jo 20,17) exatamente lá onde nos encantaria escutar dizer: «Vem!».

Fra MichelDavide Semeraro OSB, Messa quotidiana – aprile, Bologna 2010, 136-138.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Adélia Pradro fala da Beleza e da Arte


Neste pequeno vídeo de 9 minutos, a grande Adélia fala da beleza, muito diferente da "boniteza", como algo essencial, além da matéria. Sem dúvida nenhuma uma reflexão que nos orienta neste caos de opiniões, onde predomina o "gosto" pessoal e subjetivo, a racionalização da feiúra, a terapia ocupacional do artista e não o melhor de seu ser. A autora das poesias que tanto consolam nossa alma no seu voo no tempo, ajuda-nos a entrar nas raízes desta vida divina que é a Beleza. No mesmo site do youtube é possível encontrar a segunda, terceira e quarta parte deste belíssimo discurso, que vale à pena escutar e ver.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Os marfins de Salerno


Uma exposição feita em 2007 resultou em uma série de artigos importantes sobre estas pequenas esculturas, refinadas e belíssimas, cheias de conteúdos para a arte, teologia, liturgia e a ciência da iconografia antiga. Até hoje não temos certezas sobre sua original colocação, se em um altar, um retábulo ou algum objeto sacro. Fato é que as imagens tem conexões com outros marfins, espalhados por coleções e museus do mundo. Salerno tem este acervo que forma um conjunto importantíssimo e único no seu gênero. O site criado para a exposição, ainda no ar, tem recursos para a visualização dos marfins em detalhes que seriam impossíveis em um museu, permitindo ver coisas muito interessantes.

domingo, 9 de agosto de 2009

Eucaristia e o Fogo


"Fogo e Espírito no ventre de tua mãe;
Fogo e Espírito no rio em que fostes batizado.
Fogo e Espírito em nosso batismo,
No pão e no cálice, fogo e Espírito Santo.
Em teu pão está oculto o Espírito que não comemos;
Em teu vinho habita o fogo que não podemos beber.
O Espírito em teu pão, o fogo em teu vinho,
Maravilha singular que nossos lábios receberam.

(S. Efrém, Hino de Fide, VI, 17; X, 8)

terça-feira, 16 de junho de 2009

O labirinto


O L A B I R I N T O

O desenho é reprodução de um Labirinto que está na base do campanário, na entrada da catedral de Lucca, Toscana, Itália, feito provavelmente antes do séc. XI.

Partimos do local em que ele costumava estar nas igrejas cristãs: a entrada. Junto com os monstros e animais guardiães, ele tinha a função de alertar sobre a sacralidade do lugar: é um símbolo abstrato da regeneração, do enfrentar a morte e receber de novo a vida, do vencer a força misteriosa que nos ultrapassa e amedronta (monstro) para conquistar um sagrado, de valor infinito. Ninguém entra em uma igreja para sair o mesmo!
Dois elementos fundamentais, cujas explicações não podemos fornecer aqui, mas que deixamos como pressuposto: o círculo representa Deus, a divindade, a perfeição, a realidade eterna, o Céu. O quadrado, seu oposto, representa o mundo, a realidade terrestre, o imperfeito, o limitado, o humano.

Ao lado do desenho original esculpido na pedra, está escrito que esse é o labirinto do rei Minos, da Ilha de Creta, onde entrou e venceu Teseu. Mas, qual seria a finalidade de um elemento pagão em uma igreja cristã? Os cristãos sabiam interpretar os símbolos profundos, vendo-os como figura do grande e único Mistério: a Encarnação Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Sabemos como era e é importante no cristianismo o elemento da peregrinação, o dirigir-se para o lugar sagrado, e entre tantos que haviam, um sempre foi insuperável: o Santo Sepulcro de Jerusalém. Mas nem todos podiam fazer essa viagem tão longa e perigosa, e foi por isso também que começaram a aparecer os labirintos nas entradas das igrejas, como uma miniatura da peregrinação a Jerusalém, naquilo que ela tinha de conteúdo mais essencial: o integrar todo o corpo num itinerário, na direção do Senhor e ao mesmo tempo em companhia dEle. Estamos, pois, diante do símbolo do itinerário espiritual, do caminho para Deus, e por isso mesmo, um caminho místico. Não é retilíneo, mas torto, e isso já nos dá grandíssima alegria, porque é como nós... Mas as curvas nada mais são que movimentos dentro do círculo, logo, divinos! O homem, nas suas muitas voltas, não faz outro que rodear o próprio Deus! Logo de entrada, depois de umas poucas voltas se encontra muito perto do centro, como é comum acontecer aos principiantes na vida espiritual, tendo muitas “consolações” e um sentimento da proximidade de Deus, mas ainda falta muito caminho. Neste labirinto, a proximidade física não corresponde àquela do processo. Ao final, quando falta pouco para chegar ao centro, o viajante dará as voltas mais distantes do centro, e não obstante, no processo estará mais perto. A riqueza do símbolo é justamente de unir longe e perto numa mesma experiência. O que importa mesmo é que se esteja dentro, fazendo as voltas, pois “é em Deus que nos movemos e somos”.

Neste caminho de vida o importante é não retroceder nem parar, já que ele vai como uma “pista única”, rumo ao centro. Cada pessoa o faz segundo sua velocidade, estilo e ritmo. Agora, não é simplesmente caminhar, já que tem reviravoltas bruscas, que revertem a direção mesma da rota. As pequenas e fortes curvas, que parecem nos mandar de volta, que nos dão a impressão de retroceder, formam uma cruz que abraça todo o labirinto, ainda que não a percebamos à primeira vista. Seria como uma grande cruz no centro do mundo e de Deus, unindo essas duas realidades, mostrando como Deus entra no mundo, e ao mesmo tempo, o caminho do homem, do mundo até Deus. Será sempre a cruz a mudar nossos rumos, mas de maneira transfigurante, já que faz parte da dinâmica divina (redondo). “Quanto a mim, Deus me livre de gloriar-me, a não ser na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo , pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.”[1]

Enfim, muitas outras coisas podem ser descobertas dentro deste antigo e rico símbolo que se revela, pouco a pouco ao olhar atento. Olhá-lo com calma pode ser de ajuda para treinar o olhar interior na contemplação da natureza e sobretudo dos finos dedos da Mão de Deus na História. Um momento de parada na vida, uma celebração viva da liturgia pode ser este “ver o labirinto de cima”, intuir-lhe o sentido, alegrar-se com sua beleza, retomar as forças para continuar caminhando. “Não que eu já tenha alcançado o prêmio, ou que já seja perfeito, mas prossigo a minha carreira para ver se de algum modo o poderei alcançar, visto que fui apreendido por Jesus Cristo. Irmãos, não penso havê-lo já alcançado, mas uma coisa eu faço: esquecendo-me do que ficou para trás e avançando para o que está adiante, prossigo em direção do alvo para obter o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.[2]


[1] “Gl 6, 14.

[2] Flp 3, 12-14.