sábado, 23 de março de 2013

38 Conversão da necessidade em desejo

A posição da orante, anterior ao cristianismo, revelava, como um reflexo no rosto e no corpo, a Realidade invisível que o falecido, ou o que tinha essa experiência mística, "via" no seu encontro com a Divindade.
Livia como orante - I séc. a.C. (Aurea Roma 2000 598)
A oração, como já explicava Santo Agostinho, é uma atividade de conversão: não muda o desígnio de Deus, mas muda-nos, conduzindo-nos a aceitá-lo e consentir nele. É na oração, pois, que se cumpre esta espécie de alquimia, se podemos assim dizer, que transforma as nossas «necessidades» em «desejo». Trata-se não tanto de «desejos» no plural, que poderiam ser somente outras tantas manifestações de necessidades, mas deste único desejo, que consiste no estar tensos na direção do que, sozinho, tranformará o nosso vazio em plenitude; em linguagem cristã, o estarmos tendidos na direção daquele que é o único necessário.

As nossas necessidades nos fazem buscar uma satisfação por nós mesmos; o desejo, ao contrário, é aquela atitude de oferta que nos faz tender na direção do outro, por ele mesmo. O símbolo desta passagem das necessidades ao desejo é o silêncio, no qual, depois de ter feito o pedido de coisas a possuir, para consumir, não recebemos resposta; aceitamos, então, que seja cumulado somente aquele desejo que Deus mesmo colocou no nosso coração, e que seu Espírito não cessa de expressar, com suas aspirações inexprimíveis, às quais nos é pedido, simplesmente, que nos associemos. Libertando-nos de nossas necessidades, libertamos o nosso desejo. O silêncio de Deus, o nosso silêncio de consentimento com o seu silêncio nos libertam da linguagem de nosso egoísmo e colocam em seu lugar a linguagem do amor.

Tais distinções podem nos ajudar a interpretar as infinitas variações sobre temas complementares dos silêncios e das palavras de Cristo e dos cristãos, a que se dedicaram os autores espirituais de todos os tempos. No tempo no qual vive em Maria, «o Verbo eterno se confina no silêncio», «a onipotência é inativa como se nada pudesse» (Guerric d'Igny, In Ann., 3, 4); sobre a cruz, Jesus provará desencorajamento e confiança, ao mesmo tempo. Abandona-se no mesmo instante em que é abandonado; o seu grito é contemporaneamente, segundo Mateus e Marcos, lamento e pedido: «Meu Deus, meu Deus, porquê?», e segundo Lucas, é uma afirmação mais forte que o silêncio do Pai, no momento no qual lhe responde: «Nas tuas mãos, entrego meu espírito...».

Entre o silêncio do infante, que não pode ainda falar, e aquele do moribundo, que logo não poderá mais fazê-lo nesta vida, existe o espaço, no qual estão situadas todas as palavras que Cristo nos dirige para convidar-nos ao amor. Palavras de homem dirigidas a homens. Para expressar o próprio mistério, Jesus fez uso das nossas palavras, da linguagem do seu tempo e de seu ambiente. Partiu das necessidades de quantos lhe estavam em torno, das necessidades de todos os homens, para transformar-lhes em desejo. E, para ensinar-nos a fazê-lo, passou por cima das próprias necessidades, renunciou a satisfazê-las, a começar por aquela, tão profunda em todos, de não morrer. Jesus é estado puro de desejo: consentimento ao desejo do Pai, aceitação da sua vontade a respeito dele.

Jesus mudou as suas imagens, a sua linguagem de mediação das alegrias e dos sofrimentos dos homens, para ensinar-nos a elevar-nos acima deles, partindo deles. Não nos é pedido, na oração, de esquecê-los, e nem menos, parar muito sobre eles, mas de tranformá-los. É normal, é muito natural, que nós comecemos com o falar de nós a Deus, antes de chegar a falar dEle com Ele mesmo.

As nossas necessidades se tornam a ocasião na qual nasce o nosso desejo de encontrá-lo, de cumular o desejo que Ele tem por nós. Neste buscar-se reciprocamente, é Ele quem tem toda a iniciativa.

J. Leclercq, Silence et parole..., 191-192.

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